Levando a sério a cobrança de mensalidades na pós-graduação, por Daniel Gama e Colombo

Foto Catraca Livre

Levando a sério a cobrança de mensalidades na pós-graduação

por Daniel Gama e Colombo

A cobrança de taxas ou mensalidades dos alunos de mestrado e doutorado nas universidades públicas é um tema que vem à tona de tempos em tempos. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal decidiu que tais cursos devem ser totalmente gratuitos, podendo essas instituições de ensino cobrar apenas pelos cursos de especialização e similares (a chamada pós-graduação lato sensu). A polêmica foi novamente levantada pelo ex-governador Geraldo Alckmim durante as eleições, que imediatamente recuou após a repercussão negativa de suas palavras. Essa questão afeta não apenas os alunos, mas todo o sistema de financiamento das principais universidades e centros de pesquisa do país. Infelizmente, o debate é corriqueiramente feito sob uma perspectiva rasa, com base em valores abstratos e ideias preconcebidas, sem considerar a realidade da pesquisa e ensino das diferentes áreas de conhecimento, regiões do país e dos estudantes. Tais abordagens usualmente privilegiam respostas simples de lógica binária – proibir ou determinar a cobrança, que pouco contribuem para um desenho institucional voltado a proporcionar melhor qualidade, resultados e equidade.

É importante que se reconheça que não há uma única estratégia ou abordagem correta para o tema, e países com base tecnológica mais robusta que a nossa adotam arranjos distintos. Nos Estados Unidos, Reino Unido e Japão, a maior parte dos programas de mestrado cobra anuidade de seus estudantes (embora existam diversos esquemas de bolsas), invertendo-se a situação no doutorado, no qual a maioria dos alunos recebe financiamento tanto para taxas como para suas despesas pessoais. Já na Alemanha, Noruega e Finlândia, mesmo os cursos de mestrado são gratuitos para estudantes locais ou da União Europeia. Há, portanto, diferentes modelos que podem ser seguidos, e para definir o mais apropriado para o caso brasileiro é necessário discutir as implicações práticas de cada escolha, à luz da realidade de nosso sistema de ensino e pesquisa.

Um requisito essencial para iniciar essa discussão é sabermos ao certo quanto custam os alunos de mestrado e doutorado de universidades públicas, e qual seria a economia para os cofres públicos caso eles tivessem que financiar seus cursos. Surpreendentemente, esses valores não foram sequer levantados. Os números de investimento público em educação divulgados pelo governo agregam todos os alunos do ensino superior indistintamente (ou seja, aqueles que cursam a graduação, mestrado e doutorado), não fornecendo uma base razoável para análise. Estimativas com base no orçamento da CAPES, CNPq e Fundações de Amparo estaduais desconsideram os custos com pessoal e manutenção de infraestrutura, e servem apenas como uma medida agregada, não sendo um parâmetro apropriado para individualizar o valor para custeio de cada programa.

Uma segunda questão é o impacto da cobrança na atração de novos quadros para as atividades científica e de docência. Não é novidade que a vida de um pós-graduando no Brasil assemelha-se a um voto franciscano de pobreza. O valor das bolsas de pós-graduação concedidas pela CAPES e CNPq não é reajustado há 4 anos, e a disponibilidade está muito aquém do número atual de alunos. Nesse contexto em que a pós-graduação já é tão pouco atrativa, é importante investigar se o custo adicional da cobrança não afastaria ainda mais jovens interessados. Estudos empíricos confirmam que a cobrança de mensalidade pode afetar negativamente a procura por esses cursos.

É importante considerar também qual a efetiva demanda por mestres e doutores no país, para que se possa avaliar a relevância de investir recursos públicos na formação desses profissionais, além de dimensionar o financiamento adequado. Um estudo do CGEE apontou que, em 2014, as taxas de emprego formal de mestres e doutores eram de apenas 66% e 76%, respectivamente, sugerindo que o mercado brasileiro tem dificuldade para absorver parcela significativa dessa mão-de-obra. E o desemprego não é o único problema: com o crescimento da pós-graduação em diversos países, especialistas chamam atenção para o problema da ‘sobrequalificação’, caracterizado pelo exercício de atividades que não aproveitem o nível educacional e qualificação dos trabalhadores.

Um desafio a ser vencido neste debate é abandonar a perspectiva agregada, ou a ideia de que precisamos de uma solução única de financiamento que abarque todas as instituições, regiões e cursos de pós-graduação. Cada área de conhecimento possui especificidades e necessidades distintas para funcionamento de um centro de pesquisa. Além disso, o mercado de trabalho e a carência de cientistas e professores variam de acordo com a região e o curso. Dois exemplos extremos bastam para retratar como a pós-graduação brasileira é composta de mundos diversos: em 2018, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) teve o inacreditável número de 728 candidatos participando da fase final da seleção para as 354 vagas de seu programa de pós-graduação, sendo que uma parcela substancial dos aprovados trabalha durante o curso, não demanda infraestrutura ou verba para suas pesquisas, e consegue extrair um retorno de seus títulos em suas atividades profissionais. Já o programa de pós-graduação em Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), fundamental para a produção de conhecimento sobre a biodiversidade daquela região, depende de uma custosa infraestrutura e abre anualmente menos de 40 vagas de mestrado e doutorado. É inadmissível que essas duas realidades sejam tratadas conjuntamente e submetidas ao mesmo arranjo de financiamento, incluindo o valor a ser cobrado dos alunos.

Por fim, devemos considerar os problemas de desigualdade no acesso aos cursos. Estudo recente apontou que os ingressantes de mestrado e doutorado possuem em média renda familiar mais elevada do que o conjunto de egressos da graduação. Novamente, parece fazer pouco sentido ignorar essa questão e tratar todos os estudantes indistintamente. Modelos diferenciados de financiamento podem e devem ser utilizados para corrigir distorções e desigualdades, viabilizando ou gerando incentivos para a participação de alunos de baixa renda ou pertencentes a grupos sub-representados.

A discussão acerca do pagamento de mensalidades pelos alunos de mestrado e doutorado da rede pública ainda precisa ser muito amadurecida, com o levantamento de dados e o desenvolvimento de análises que permitam qualificar e estimar os efeitos das escolhas a serem tomadas. É possível afirmar, no entanto, que a complexidade de nosso sistema e diversidade de programas não permitem respostas simples ou soluções fáceis. Nessa discussão, as “vacas sagradas” à esquerda (ensino público integralmente gratuito) e à direita (privatização ou cobrança de todos os alunos) só prejudicam o debate e a construção de um arranjo que promova eficiência e equidade. E tampouco parece produtivo que esse tema seja decidido no Supremo Tribunal Federal, à luz de critérios exclusivamente jurídicos e por indivíduos que não se dedicam ao estudo de políticas educacionais em toda sua complexidade.

Daniel Gama e Colombo – Doutor em Economia do Desenvolvimento pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), e Mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da USP. Pertence à carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, e atua na Diretoria de Estudos Educacionais do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).

 
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