Marielle e o país dos desavergonhados, por Gustavo Gollo

Foto: Mídia Ninja

Marielle Franco foi assassinada porque denunciava assassinatos cometidos por policiais. Por aqui, há quem acredite que policiais devam ter autorização para julgar e executar pessoas. Em contrapartida, policiais, aterrorizam e matam.

Relembremos um caso, ocorrido no final de 2016, que ganhou notoriedade por ter sido filmado. Não fosse esse um país de desavergonhados, e não permitiríamos que cenas monstruosas como essa se repetissem.

 

Uma história urbana

As coisas andavam bem para Claudia, tinham entrado nos eixos; seu emprego e o do marido garantiam a comida dos 4 filhos. Pegou o dinheiro e saiu para comprar pão e mortadela, seus meninos estavam sendo criados no luxo.

No meio do caminho, ouviu o primeiro tiro, logo seguido por rajadas, em resposta. Estava no meio dos tiros. Tinha corrido para um lado, melhor ir para o outro. Para onde? Onde se esconder? <Desespero> Pra que lado ir, estando bem no meio dos tiros? Tentou uma fresta, não dava para se esconder ali, mas se protegeria um pouco.

– Ai, o que é isso? <dor> Foi ao chão em meio à confusão; por que não conseguia ficar de pé? – Devo ter levado um tiro –, refletiu. – Mais um tiro –, pensou, desesperada, ao sentir outra dor aguda. A incapacidade de se levantar e sair do meio do tiroteio a desesperava. O barulho ensurdecedor dos tiros, mais que a dor, impossibilitava qualquer clareza; a imobilidade despropositada aumentava o desespero, por que suas pernas não obedeciam logo naquele momento? O tiroteio se estendia mais e mais, não terminava. Mas cessou.

Finda a batalha, tentou avaliar a situação: estava no chão, tinha ido comprar mortadela; devia ter levado um tiro. Dois. Melhor pedir ajuda a alguém, mas ainda tinha polícia ali, melhor se fingir de morta – mas tudo ia ficando nublado, distante, e havia a dor.

Um policial imenso a revirou:

— E essa porra aqui?, e deu-lhe um chute. Que droga é essa?, tava no meio dos traficantes, então é um deles. Que porra, agora vamos ter que levar esse lixo imundo, todo ensanguentado. Mas é bom ter sangue novo no assoalho do camburão pra dar medo. pra ninguém esquecer quem manda.

Pegou a mulher, como se fosse um saco de lixo ensanguentado, e a jogou dentro do camburão; sentia raiva, sentia ódio. A mulher gemia, rezava e implorava desesperada enquanto era jogada no interior do carro escuro. Tabefe! Bolacha na cara para acabar com aquela gemeção.

O trem fantasma partiu com a mulher lá dentro, em meio à escuridão, aos solavancos. Nada para se agarrar no interior do cubículo metálico; restava a ela tentar proteger a cabeça e principalmente as partes feridas, acicatadas pelos trancos sucessivos. O desespero desaparecia momentaneamente, superado pela dor intensa, para ressurgir em seguida. Dor e desespero lutavam pela atenção, pelo controle da mente de Claudia. Uma sensação de distanciamento, de moleza, também se insinuava nela; talvez fosse melhor aceitá-la, mas não podia, tinha 4 filhos.

Curvas e saltos se impunham subitamente em meio à confusão, às trevas, e às batidas dolorosas contra o metal.

De repente, a luz. A luz cruel, ofuscante e apavorante. A tampa do camburão se abrindo repentinamente em meio ao trânsito veloz, depois de uma curva acentuada; nada em que se segurar. O policial acompanhava a cena pelo retrovisor, os olhos grudados em Claudia acompanhando em êxtase o pânico, os gritos, o terror da mulher aprisionada. Acelerou, guinou o veículo rispidamente para um e outro lados forçando passagem entre os carros.

Apavorada pela velocidade, pelos carros ameaçadores seguindo-a logo atrás, a mulher tentou se segurar no metal desnudo, mas um solavanco maior, mais doloroso, uma arrancada forte a jogou para a beira, para a tampa aberta. Desesperada, tentou grudar no metal, se manter presa a ele de algum modo, mas um solavanco maior a impeliu para fora. A tentativa de se manter no veículo teria sido vã, mas foi cruel, crudelíssima. Engastada em uma parte sobressalente do veículo, a mulher ficou presa do lado de fora do carro, arrastada violentamente pelo asfalto.

O policial exultava com os gritos agudos da mulher pendurada no carro, exibindo em êxtase seu troféu, a favelada molambenta sendo arregaçada pelas ruas da cidade para a admiração de todos. Protagonizava espetáculo com orgulho e júbilo. Acelerou, inventou curvas inexistentes entre os espaços abertos pelos outros veículos, até que, forçado a parar em um sinal, percebeu, surpreso, que os olhares estupefatos lançados pelos motoristas não eram de admiração, mas de perplexidade e horror. Surpreso com a recepção de sua ação, envergonhado e confuso, viu-se compelido a descer do carro para recolher o pedaço de carne em que havia transformado a mulher e jogá-lo de volta no camburão. Ao descerem do carro, ele e o parceiro, a vergonha imenso os abateu, ainda que tentassem evitar os olhares atônitos dos motoristas estarrecidos pela monstruosidade.

Tinham perpetrado uma ação heroica: tiroteio com traficantes; aquilo os engrandecia, estimulava. Algo, no entanto, aturdia os policiais, embora não conseguissem compreender o quê. Deveriam estar comemorando a vitória, e tinham estado, até perceberem aqueles estranhos olhares, quando a vergonha superou o júbilo, e uma confusão cruel se instalou em suas mentes. Algo parecia estar errado, mas uma coisa confusa incompreensível. Imersos em dúvidas, embaraço e vergonha, dirigiram-se ao hospital. Chamaram o médico conhecido, o que se encarregava desses casos. Ele mandou esperar, naturalmente.

Entregaram a encomenda com rispidez, ordenaram que retirassem logo o corpo do carro.

Tiveram que cobrir a mulher antes de entrar no hospital, seu estado era lastimável, chamaria muita atenção. Profundamente escalavrada, completamente ensanguentada, parecia um monte de carne de açougue recoberta por uns trapos, mas com cabelos. O médico foi avisado do estado lastimável da vítima, senha para que deixasse esperando sangrar. Deixou.

Um motorista, no entanto, tinha filmado tudo. Imagens avassaladoras, repercutiam no mundo inteiro com cenas brutais de terror.

Cauteloso, o cidadão esconde a filmadora por duas vezes: quando os policiais saem do carro, e quando retornam a ele. Na cidade, todos conhecem a polícia local, e a temem como temeriam monstros.

Claudia Silva Ferreira morreu monstruosamente torturada por policiais, mais por diversão que pelo estorvo causado por obrigá-los a carregá-la e a preencher formulários.

Redação

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