No Brasil, as penas aplicadas a delatores são baixas? Por Vladimir Aras

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Vladimir Aras

A pena do réu colaborador

No Blog do Vlad

Abdul Baith entrou no comissariado de Polícia de Nice na tarde de 13 de julho de 2016. Estava disposto a contar o que sabia sobre os planos de seu amigo Bouhlel para o dia seguinte.

Em 14 de julho, dia em que a França comemora a Queda da Bastilha, a Promemade des Anglais em Nice foi banhada de sangue. Incontáveis pedestres, entre moradores locais e turistas, foram atropelados por um caminhão dirigido por Mohamed Lahouaiej Bouhlel, supostamente afiliado ao Estado Islâmico (ISIS). Cerca de 84 vítimas perderam suas vidas e centenas de pessoas foram feridas.

O atentado terrorista é real. Ocorreu neste sangrento ano de 2016 na cidade francesa de Nice, mas o colaborador “Abdul Baith” nunca existiu.

Que pena mereceria Abdul Baith, ele que é membro de uma organização terrorista e que ajudou a planejar o terrível atentado de Nice?

Que pena ele mereceria se suas informações houvessem sido capazes de salvar a vida de 84 pessoas e livrar outras tantas de sofrer lesões corporais gravíssimas?

Infelizmente, não houve um Abdul Baith naquele 14 de julho. A alegoria serve para examinarmos o tema das penas que resultam de acordos de colaboração premiada. Qual o produto final para o bem comum?

No Brasil, as penas aplicadas a réus colaboradores são “baixas”? É um debate atual e interessante devido a certos aspectos jurídicos e por revelar um traço da psique de um segmento da doutrina jurídica brasileira.

Muitos dos que se queixam das penas alegadamente “baixas” da colaboração premiada são aqueles que sempre defenderam a intervenção mínima do direito penal, a fixação de reprimendas perto da pena mínima, as sanções alternativas, ou, até mesmo, o abolicionismo penal. Alguns estão entre os que sustentam a possibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal, por decisão judicial, em qualquer caso. São antipenalistas, declaram-se agnósticos, mas não tanto…
O que é uma pena “baixa”? Ou a pergunta correta seria: qual a pena “justa”?

Os critérios dosimétricos de nossa lei são complexos e nunca foi fácil encontrar a pena “correta” ou a pena “devida”, nos casos criminais ordinários. Livros foram escritos sobre isto. Recursos aos borbotões são interpostos todos os anos com este foco. Que pena merece o estuprador condenado? A pena aplicada ao homicida foi justa e adequada?

Ninguém cogita de consenso nesses números, que ficam ainda mais embaralhados quando vemos a falta de senso nos decretos de indulto.

Ninguém ignora que, mais de três décadas depois, persistem perplexidades na interpretação dos critérios de individualização de pena adotados pela parte geral do Código Penal em 1984.

Num instituto novo para o Brasil como a colaboração premiada – que foi construída a partir de 2003 mas se consolidou apenas em 2013 -, esses mesmos desafios e outras incertezas estão presentes.

Alguns países têm regras rígidas e escalonadas, descritas em lei, para a aplicação da pena, deixando pouco espaço de individualização ao juiz. Essas “sentencing guidelines” descem a detalhes e reduzem a margem de contestação dos patamares determinados para as reprimendas, sejam elas negociadas ou não.

Noutros tantos países, vemos premissas mais largas, algumas das quais subjetivas e intervalos penais mais amplos. O papel do juiz sobressai e, nas negociações, membros do MP e advogados têm um espaço dialógico mais amplo.

Quem estuda o assunto para além dos preconceitos (a)teóricos – que não cabem no debate jurídico pretensamente científico – percebe as virtudes e defeitos do modelo dosimétrico hoje vigente, não só no campo do processo penal contraditório, mas também no âmbito do processo penal negocial.

No que diz respeito à justiça penal pactuada, não centremos os olhos apenas na colaboração premiada, meio especial de obtenção de provas que provoca calafrios em alguns e, por causa de preconceitos, chegam a conclusões equivocadas. Olhemos também para os institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995, que introduziu no Brasil a suspensão condicional do processo e, sobretudo, a transação penal, inaugurando os acordos penais. As penas negociadas nessas audiências preliminares acaso são justas, suficientes, proporcionais, adequadas? Cestas básicas bastam? Alguns creem que sim; outros dirão que há desvios na prática dos Juizados Especiais.

Fica fácil perceber que o problema não está na individualização das penas da colaboração premiada, mas nos métodos dosimétricos consagrados no Brasil, aqueles que usualmente são chancelados pela doutrina e pelos tribunais, e que buscam alcançar certos valores legítimos e necessários, entre eles, a redução do encarceramento de acusados, a redução da carga processual do Judiciário e o atendimento aos interesses das vítimas.

No contexto da colaboração premiada, é preciso adicionar pelo menos mais um elemento de checagem ou verificação da sua utilidade e adequação a um programa de Justiça criminal. Qualquer que seja a pena resultante do acordo para o colaborador, não se pode isolá-la dos resultados obtidos em função da colaboração. A mensuração do valor da colaboração dependerá de se saber a extensão ou a amplitude desses resultados no campo da prova, da recuperação de ativos, da proteção dos interesses das vítimas, assim como a capacidade de revelação dos agentes que concorreram para aquele crime ou para outros crimes igualmente graves.

Nesta linha, a correção ou não da redução de pena em tal ou qual quantitativo não pode ser aferida apenas por critérios matemáticos, a partir de certas grandezas numéricas, ou por um mero jogo de frações. O esforço de checagem da proporcionalidade da redução pode e deve ter em conta dimensões subjetivas e objetivas internas e externas ao processo penal a que responde o colaborador. O que se alcançou com sua assistência?

Neste cenário, a pena máxima – não a do hiato legal mas a processualmente possível naquela ação penal – deverá ser decotada a partir de expectativas probatórias que podem, ou não, se confirmar.

Não por outro motivo o art. 4º, §1º da Lei 12.850/2013 estabelece critérios próprios de individualização:

§1º Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.

Assim, a redução “devida” ao colaborador será tanto maior quanto maior for a capacidade probatória ou reparatória efetivamente alcançada pelo Estado em função das provas que o colaborador aportar ou que ele apontar, no necessário procedimento de corroboração a cargo do órgão de acusação, imprescindível para a superação da parêmia “testis unus testis nullius”.

Como se evidencia, a dosimetria sofre abalo e pressões de eventos futuros e incertos, tema para o qual a legislação brasileira (ainda) não tem resposta. Oxalá a praxe forense e os tribunais nos possam valer.

Além das penas privativas de liberdade ajustadas em procedimentos colaborativos, é preciso ter em consideração as multas e reparações acordadas, o confisco patrimonial, a perda da primariedade e as interdições para o exercício de funções ou atividades, como se vê no art. 7º, II, da Lei 9.613/1998:

“II – a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas referidas no art. 9º, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada.”

A causa especial de redução de pena na colaboração pode diminuir a sanção legalmente “devida” em até ⅔ (dois terços). O benefício prometido ao colaborador deve compensar o “waiver”, isto é, tem de recompensar a grave decisão – que deve ser sempre voluntária e tecnicamente assistida – de renunciar-se ao direito ao silêncio, com disposição de cooperar plenamente. A colaboração trará ônus e rótulos extrapenais ao réu, é algo de que temos de lembrar.

Tampouco se pode esquecer que a pena do colaborador que cooperar de forma substancial pode ser “pena alguma”, no perdão judicial, ou, mais do que isto, pode ser “processo penal algum”, como ocorre nos acordos de imunidade. Tanto num quanto no outro caso, vê-se que o intervalo de trabalho do juiz ou o campo de negociação das partes não se situa entre os limites máximo e mínimo do preceito secundário do crime X ou Y. Na colaboração premiada, as escalas “penais”, melhor dizendo, os melhores benefícios alcançáveis pelo colaborador são o perdão judicial (pena alguma) ou o não-processo (arquivamento por acordo de imunidade).

Esses são os marcos que se deve ter em vista, muito aquém da pena mínima estipulada abstratamente pelo legislador para esta ou aquela infração penal. Seria esta a tão sonhada “pena abaixo do mínimo legal” sonhada por doutrinadores brasileiros?

Em março de 2009, o Plenário do STF negou provimento ao Recurso Extraordinário RE 597270/RS que pretendia a fixação de pena abaixo do mínimo legal. A tese rechaçada pelo STF também é recusada pela Súmula 231 do STJ, segundo a qual “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.”

Pois bem. Na colaboração premiada, uma circunstância especial pode levar à aplicação de uma sanção muito abaixo do mínimo legal previsto no preceito secundário da norma incriminadora, reduzindo a reprimenda para além dos  ⅔ (dois terços), uma vez que o verdadeiro “mínimo legal” é pena nenhuma, naqueles casos de colaboração substancial com o Ministério Público.

Talvez a solução para as inquietações doutrinárias a respeito do quantum da pena do colaborador resida na adoção de regimes especiais de cumprimento das penas acordadas, que tenham em mira a adesão do colaborador ao compromisso colaborativo estabelecido no acordo escrito, ajuste este que tem a produtividade ou efetividade da colaboração como balizas de proporcionalidade.

Só assim nesta checagem externa, a partir dos efeitos ou resultados do acordo, é que temos condições de aferir se o quantum de cumprimento efetivo da pena foi suficiente ou não, e se a pena “líquida” foi alta ou “baixa”.

Com a colaboração premiada, alcançamos retribuição/prevenção, reparação e confisco?

A diferença disto tudo para um acordo de “impunidade”, estes tão comodamente tradicionais no Brasil, é estratosférica. Na colaboração premiada, ainda que com penas supostamente “baixas”, os culpados são punidos e outros tantos valores da Justiça penal são alcançados.
Por outro lado, naqueles usuais ajustes de impunidade, só o culpado (o culpado impune) se dá bem.

Que pena Abdul Baith mereceria? 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

8 Comentários

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  1. Desconheço

    Esse texto deve aludir à lavajato e outras similares. Não conheço nenhum caso de delação premiada nessas ações da PF, Min. Público  e Judiciário.

    A meu ver o que tem existido é delação sacada por tortura e outros meios ilegítimos. Mais premiada para uns e menos para outros. 

    Faltou para os presos que cederam ter ouvido mais Bezerra da Silva, para não cair nessa esparrela de alcaguetar sobre tortura.

    Quanto custou para a Odebrecht (e para o Brasil) a tal premiada? Pois é. Malandro é malandro, mané é mané! 

    [video:https://youtu.be/J758GW3Bl58%5D

  2. Só sei responder acerca do prêmio que Baith mereceria

    Ele merece um prêmio de 2/3 de liberdade e branqueamento oficial do seu dinheiro sujo. O Baith é uma Madalena arrependida, pois o arrependimento lhe é vantajoso

  3. Alcaguetismo seletivo e promotores estelares
    Podemos mensurar a credibilidade do MPF pelo seu chefe maior: zero!
    Somente uma reforma profunda, que institua punições severas ao uso político da instituição, poderá reconduzir o MPF a respeitabilidade esperada deste poder, atualmente descolado da realidade.
    O doutor Aras fala aos seus, representante que é de uma casta que se regojiza de uma falsa moral.

  4. sendo falsa a premissa (a

    sendo falsa a premissa (a existência do delator, no caso em tela), todas as conclusões, por consequência, serão falsas. Lastimável querer justificar o injustificável, partindo do inexistente.

  5. .

    Primeiramente, após a festa de “passagem”, como de praxe, “devemos” desejar feliz novo ano a todos e todas!

    “Segundamente” que, somente aqueles que querem se “safar” de seus crimes, acusam outros de terem praticado outros crimes, dos quais sabia e não delatou antes, são “alcaguetes”.

    São a escória, não merecem perdão.

    JOSÉ DIRCEU está preso, até hoje, pelo fato de não ser culpado e nem negociar sua liberdade em troca de acusar qualquer outra pessoa para se livrar da prisão.

    O crime compensa!

  6. A delação premiada no Brasil

    A delação premiada no Brasil é parcial posto que tomada as declarações pela polícia ou ministério público partes interessadas no desfeço (favorável) da acusãção a alguém. 

    As declarações deveria sim ser tomadas por um Juiz imparcial.

    Se bem que a nossa legislação preveja que o termo das declarações tomadas seja enviada ao Juiz para examinade das formalidades, regularidades e voluntariedade, podendo, para esse fim, ouvir sigilosamente o colaborador, essa situação raramente é feita pelos Juízes (Teori assim já procedeu??? mesmo diante do quadro prévio das prisões midiáticas e “assassinas de reputação” verificadas na Lavajato???).

    A Delação – instituto antiético – deve ser revestida da maior seriedade e cuidados possíveis.

  7. Minha mãe via o maior bandido

    Minha mãe via o maior bandido ser preso e dizia sentir pena dele. Ver pessoas presas, debaixo de holofotes da imprensa, a título de mover a sociedade a tentar linchá-lo antes de chegar ao cárcere, é deprimente. Deprimente também ver as fotos de Cabral de sua esposa com roupas de prisioneiros, ele com a cabeça raspada, e aquele número horrível de identificação.

    Tenho certeza que muitos brasileiros pensam como eu, em entender que a prisão, por si só, com a imprensa a espetacularizar os fatos, não significam nada, ou quase coisa nenhuma.

    A corrupção, mais antiga que o rascunho da bíblia, escancara-se a cada dia, porque em qualquer tempo seria assim, e não será a Lava Jato a acabar com esse vício existente no mundo inteiro.

    Ficando apenas no caso da Petrobrás, que dúvida pode ter alguém que os malandros, indicados para dirigir a empresa mais importante e rentosa do nosso país, agiram como verdadeiros bandidos, por meio de um gangster chamado Youssef, que tinha por propósito atrair a classe politica, tão sórdida quanto eles todos, para subtraírem as riquezas da Instituição que vinha de vento em põpa, sendo o maior orgulho da nossa Nação. Ninguém, no uso do bom senso pode duvidar da calhordice desse bando de ati-patriotas, contando com os dirigentes, também, das diversas construtoras, como a Odebrecht, que há décadas servia aqui e fora do Brasil, sempre tida como uma das mais significativas do Brasil. 

    As delações, que parece não terem fim, daí a Operação do Fim do Mundo, não nos conforta, porque é o meio fácil de um Youssef, que teria que levar uma dosimetria de mais de 100 anos, estar hoje livre, como já esteve anos passados por fatos semelhantes, e voltou ao crime como qualquer bandido de quinta. O percentual a que tem direito, após a delação, se relaciona ao montante do que ele assumiu ter angariado com suas trapaças. Só por aí se tem a ideia de que qualquer 1% já será suficiente para ele voltar ao lar, doce lar, com meios suficentes para desfrutar de vida mansa.

    O que se quer, não é ver os canalhas livres para se rirem da nossa cara.

    A gente quer é que tudo que foi exttraído da Petrobrás, retorne à Petrobrás, com juros e correção, e que os malandros, cada um com sua função de gente inteligente, com bons currículos, sejam aproveitados na Administração Pública, para desenvolverem seus projetos, e trabalharem  tempo que ficaria preso, mas sem salário, e que sempre estejam na mira na polícia. E que vivam não mais como um bom-vivan, mas como alguém com direito ao básico: num endereço de periferia, ou de subúrbio, como todo pobre brasileiro, pra que eles entendam que sua prisão maior deva ser o de prestar todos e qualquer serviço até morrer, sem onerar os cofres públicos com cadeias, mas sentindo-se presos pelas circunstâncias propostas pela justiça, a mesma que ouviu suas delações.

     

    As delações me lembram o Big Brother, onde a pessoa sabe esatamente que está sendo filmada, e diante das câmeras, pode encenar, e mentir. Pra mim, de uma delação, se extrai um monte de mentiras e omissões. Por isso, sou a favor, mas com parcimônia desse instrumento.

     

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