O apanhador no campo do sentido – Vol.12, por Gustavo Conde

Foto: Ricardo Stuckert

O apanhador no campo do sentido – Vol.12

Por Gustavo Conde

[Continuação]

A voz coletiva que enuncia

Faço questão de reforçar: não há precedente na literatura da arte da oratória para o uso assaz despojado e ao mesmo tempo técnico de um recurso tão sofisticado e tomado por cifras do próprio faber poético – e isso por uma razão delicada, simples e perturbadoramente bonita: a enunciação de Lula brota do povo, é uma voz coletiva condensada em uma só emanação.

Como regente de si mesmo e de todas as vozes que lhe atravessam, Lula perfaz um acontecimento único para os estudos da enunciação e do discurso. Sua fala é uma usina de sentidos políticos, mas também uma pletora de afetos e de insights teóricos para os estudos da linguagem.

O fecho artesanal de Lula para a sequência desse afunilamento semântico que produz densidades múltiplas – inclusive a própria mensagem básica de chamamento subscrita no tecido discursivo de sua fala: que é a mobilização para a congregação de várias tribos em torno de uma causa – é arrebatador: “são muito mais fortes do que a força das metralhadoras, do que a força dos canhões”.

Revolucionário das palavras, não das armas

A tendência pacifista de Lula também compõe a matriz geral de seu sentido político. Lula mobiliza seu ouvinte – que também é partícipe de seu discurso – para agregar o povo, mas não aceita a violência como forma de conquista. Esse é um dos valores e das timias mais consagradas em seu repertório enunciativo: Lula é revolucionário das palavras, não das armas.

Esse traço lhe confere extremo poder sobre seus adversários políticos e estruturais, porque é configurado um espaço inatacável de produção de discurso: ninguém pode acusar Lula de uso da força, porque simplesmente ele não a usa nunca – e rechaça sua suposta eficiência em todos os sentidos.

É relativamente simples de entender porque Lula adotou essa dinâmica, que é ética, mas que se desdobra tecnicamente em estratégia de persuasão. O regime dos contrários que rege grande parte das polêmicas travadas no debate público relega ao adversário de Lula exatamente o uso da força. Ou: para se diferenciar de Lula, na fobia irracional do contraste, o adversário ideológico de Lula é até capaz de mergulhar na defesa do uso da força, apenas para demarcar o território discursivo.

Destaque-se mais um viés da estratégia de Lula neste caso: ele próprio constrói e pressupõe um adversário imaginário – nem tão imaginário assim – que concebe o embate político-social pela via da força bruta. Ele vence o debate antes mesmo de o debate acontecer. Essa é, por assim dizer, uma força muito maior que todas as outras, primárias, físicas, elementares, grotescas. Trata-se, enfim, da força metafórica e da força das palavras.

É o que o trecho que arremata o período deixa entrever com toda a sua ‘força’ retórica. É importante lembrar: todo esse conjunto de operações discursivo-linguísticas é feito por Lula de maneira espontânea, sem quaisquer tipos de lastro escolástico formal, senão apenas a inteligência crua de um franco formulador que faz de sua verve uma profissão de fé.

O fecho de Lula para esse trecho – que não durou mais que um minuto de fala e representa menos de 3% da massa discursiva produzida no ‘acontecimento discursivo’ da Praça Charles Müller –, amplifica ainda mais o leque coesivo de sentidos mobilizado por Lula:

“E vamos conquistar as eleições diretas nesse país. Pra acabar com a fome, pra acabar com o desemprego e pra garantir a cada um de nós o direito à sobrevivência, o direito a voltar a sorrir, o direito a voltar a conversar, o direito a encontrar com os companheiros.” 

É o arremate que busca a desaceleração do sentido, timia que pode ser tecnicamente nomeada por ‘alento’ ou ‘esperança’. Lula projeta desejos genéricos de acabar com o desemprego e com a fome, mas tão logo se conheça sua origem e sua biografia, tais sentidos de generalizações supostamente “fáceis” se transmutam no mais denso e visceral dos sentidos factuais.

Em primeiro lugar, porque Lula sobreviveu à fome e isso é um pressuposto de conhecimento público e notório.

Mas o mais interessante é que o aparente lance de xadrez retórico – de acabar com a fome e o desemprego – tornou-se uma constatação empírica, posto que Lula, de fato, acabou com tais mazelas sociais quando finalmente chegou à presidência da república. É a célebre junção discurso e prática que lhe dá larga vantagem no debate público e lhe legitima ainda mais, a cada fala proferida, como fiador do próprio discurso.

[Continua]

Aqui, os links do ensaio:

O apanhador no campo do sentido – Vol.1

O apanhador no campo do sentido – Vol.2

O apanhador no campo do sentido – Vol.3

O apanhador no campo do sentido – Vol.4

O apanhador no campo do sentido – Vol.5

O apanhador no campo do sentido – Vol.6

O apanhador no campo do sentido – Vol.7

O apanhador no campo do sentido – Vol.8

O apanhador no campo do sentido – Vol.9

O apanhador no campo do sentido – Vol.10

O apanhador no campo do sentido – Vol.11

O apanhador no campo do sentido – Vol.12

O apanhador no campo do sentido – Vol.13

 
Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Lula está preso pelos
    Lula está preso pelos golpistas e provavelmente vai morrer na cadeia. Precisamos acordar para a realidade. As palavras só moviam as coisas na Bíblia. Na realidade, é a força sim, muito obrigado. Deixemos as piruetas retóricas e intelectuais para os poetas. O que a História vai nos cobrar é o que fizemos, não o que falamos. Seremos a geração que assistiu Lula, seu maior líder político, morrer na cadeia, sem qualquer reação. Precisamos nos preparar para o aprofundamento do regime golpista. Não serão tempos fáceis. Precisamos acordar enquanto é tempo.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador