O cinismo e a caretice do golpe, por Yuri Carajelescov

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Do Justificando

Um golpe cínico e careta
 
Yuri Carajelescov
 
Neste anno domini de 2016 houve um golpe de estado no Brasil. A sua viabilidade encontra-se em disputa.
 
Um governo eleito diretamente pelo povo foi substituído por outro sem votos, a fim de implementar um pacotaço conservador e regressivo, cujo objetivo é exterminar as conquistas sociais reconhecidas pela Constituição de 1988, aniquilar o incipiente welfare brasileiro, os direitos dos trabalhadores e reinserir o país na comportada órbita de influência dos Estados Unidos, a quem competirá definir o ritmo da exploração das riquezas naturais do Brasil, especialmente o petróleo e a água.
 
Nada que não estivesse nos planos da oligarquia há muitos anos. Nada que também não houvesse sido rechaçado nas últimas quatro eleições presidenciais. Não que isso crie constrangimentos ao projeto do golpe. Na sua particular racionalidade, a questão essencial da legitimidade democrática converte-se em um mero detalhe facilmente superado pela tecnicidade artificial do argumento segundo o qual quem votou na presidente afastada escolheu o presidente provisório.

 
Of course, o cidadão elegeu a petista Dilma para o tucano Serra conduzir a política externa e para o opositor Democrata aprimorar, a seu modo, os programas da pasta da Educação que tanto combateu (Fies, Prouni, cotas nas universidades federais, etc.). A culpa, por essa lógica enviesada e punitivista, seria do eleitor que, ao votar, teria assumido o risco pelo resultado da traição grotesca. Cuida-se de um simples jogo de palavras sem apoio na realidade. O acessório acompanha o principal, mas, convenientemente, não nesse caso.
 
Diferente de outros tempos, não apareceram tanques e coturnos nas ruas. Talvez por isso a revista alemã Der Spiegel referiu-se a um “golpe frio”, e o argentino e prêmio Nobel da paz Adolfo Pérez Esquivel denominou-o “brando”. Assim também o linguista Noam Chomsky.  
Houve um golpe cínico ocultado por procedimentos e prazos, comandado por um consórcio integrado pela mídia oligopolista, parcela da alta burocracia estatal (PF, MP e judiciário), empresários e setores da política tradicional. O impeachment foi apenas um disfarce mal ajambrado, como são os processos conduzidos de trás para frente: escolhe-se primeiro o resultado e depois pescam-se os fundamentos para ampará-lo.
 
O golpe trouxe à superfície todo tipo de dejeto político, em parte reflexo da escória da sociedade que o exigia quando saía às ruas para pedir intervenção militar e outras anomalias, trajada com a mortalha do selecionado nacional estigmatizada pelo vexame na última Copa.
 
Na foto para registro histórico, o ministério provisório traduz com crueza o projeto que se pretende longevo: todos homens, todos brancos, todos (supõe-se) heterossexuais, muitos ricos e, como se isso não bastasse, muitos ainda com contas a acertar com a lei. “O macho, adulto, branco sempre no comando”, diria Caetano. Era como se o flash das câmeras colocasse abaixo a era dos losers, afinal o mesmo Caetano já dera o recado: “Riscar os índios, nada esperar dos pretos”, o que foi levado ao pé da letra pela malta.
 
O governo postiço precariamente instalado recende naftalina. É o passado caretão que ainda oprime em ternos mais ou menos bem cortados. A bomba semiológica da extinção do Ministério da Cultura teletransporta os paisanos de hoje ao governo Figueiredo, o que encerrou o ciclo da última ditadura. Impossível não lembrar Hannah Arendt, referindo-se ao desprezo que os movimentos antidemocráticos nutrem pela iniciativa intelectual e artística: “quando ouço a palavra cultura, puxo o revólver”.
 
A mesma Arendt, para quem “a tomada do poder em qualquer país é apenas uma etapa transitória e nunca o fim do movimento”, remete a uma questão que merece maior investigação. O discurso do golpe já captado pelo mundo não é meramente retórico, pois dele se extraem consequências jurídico-políticas. A fundamental é que o golpe só encontra limites nele mesmo. A cada dia uma nova arbitrariedade se apresenta sem resistência, até que a Constituição e as demais leis entrem por completo em “stand by”.
 
Para o movimento social, o povão, aí incluídos os estudantes, a estrutura de repressão já está montada e nasce da tabelinha perfeita entre um ministro da justiça cujo currículo não se destaca propriamente pela defesa de direitos humanos, mas antes pela truculência da teoria e prática da repressão, e um chefe militar responsável por um repaginado SNI (Serviço Nacional de Informações) e atado por laços de sangue à linha dura do regime de 64.
 
Para os outros, não esperem listas de cassações, dispensáveis, pois os políticos adversários serão inviabilizados pela lei da ficha limpa ou presos e humilhados, enquanto os homens da nomenklatura preservados pelo sistema de justiça “bola nossa”. Não haverá expurgos explícitos nas universidades (vide o que já se passa na UFMG), mas os professores desviantes serão processados por qualquer razão, assim como juízes, procuradores e membros do ministério público democráticos. “São os procedimentos”, dirão e – óbvio ululante – “ninguém está acima da lei”. Quem haverá de negar?
 
Tudo muito bem edulcorado pela mídia parceira de todas as horas, já que, como dizem os manuais, o poder para se sustentar deve mesclar a coerção com o convencimento; a violência física com a simbólica.
 
Neste momento crucial, o país ressente-se de suas mais expressivas lideranças políticas, estranhamente silenciosas, aparentemente sufocadas pelas amarguras, contradições e depressões, e se agarra a manifestações generosas, mas individuais e desarticuladas, por isso mesmo insuficientes. Essas lideranças jamais foram tão imprescindíveis na construção de um espaço possível de resistência. Esperar pela solidariedade internacional, ainda que importante, não desatará por si só o nó. Em outros tempos, Jango e JK, na contramão de Brizola, avaliaram que o golpe não vingaria. Durou 21 anos.
 
Este golpe cínico e careta não pode entrar para o cotidiano, tolerável como o carnê da prestação do carro. Os artistas brasileiros em Cannes deram o tom com seu protesto corajoso e necessário. O recado não poderia ser mais eloquente: o golpe não pode se metastizar e deve ser combatido em todos os fronts. Este é o meio e a mensagem. A sua superação depende de todos, sobretudo dos líderes políticos que precisam urgentemente despertar para a vida e romper o imobilismo.
 
No fim de tudo, um registro: mais cedo ou mais tarde, aqueles que se juntarem aos salteadores do poder popular entrarão para a História na mesma categoria dos colaboracionistas de Vichy. E, vale lembrar, salvo os seus, provavelmente ninguém sente saudade do professor Gama e Silva. Podes crer.   
 
Yuri Carajelescov é Procurador da Assembleia Legislativa de SP e Doutorando em Direito pela USP.
Redação

1 Comentário

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  1. Efeito “clear up stream up”

    Bem lembrado pelo autor. Ainda, através da teoria do caos, uma ação politica “inofensiva” em uma republiqueta, dará embasamento “clear up stream up” para uma 3a guerra mundial ou explosão da união européia. Valeu Yuri!

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