Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Quando a direita golpista encontra o Estado ampliado, por Ion de Andrade

Por Ion de Andrade

Gramsci em sua elaboração sobre a revolução no Ocidente sinalizou nos anos 30 que a presença da Sociedade Civil nos Estados ocidentais condicionaria uma revolução longa, pois essa Sociedade Civil, entendida como uma densa rede de trincheiras, alicerçava a supremacia burguesa sobre o consenso e não sobre a força. A robusta Sociedade Civil dos Estados ocidentais impediria, portanto, qualquer sonho de solução explosiva à esquerda capaz de varrer, por um ato de força, tal poderio burguês sobre o Estado.

Esse raciocínio cristalino, embora hoje já insuficiente, conforme comentei no artigo  “A via brasileira e a Crise do paradigma gramsciano” ainda não foi devidamente apreendido pela direita tupiniquim de matriz golpista, que crê que em qualquer circunstância histórica, pode golpear impunemente soberania popular.

A falta de cultura política faz essa direita entender o poder político como uma espécie trono que, se for tomado, passa a ordenar de forma legítima e completa todo o ordenamento social que deve, a partir de então, curvar-se aos novos senhores. Uma burrice colossal.

O Estado de direito regula uma guerra, permitindo, por meio de instituições cuja legitimidade decorre do voto, a formação de condições mínimas para o exercício do governo e da oposição, que, apesar de minoritária, é possuidora de direitos e prerrogativas inalienáveis. Em torno desse Estado há a tal rede de trincheiras que é a Sociedade Civil que sustenta o próprio arcabouço estatal.

Pelo lado do campo autoritário e atualmente golpista poderíamos citar, como instâncias típicas da Sociedade Civil, a grande mídia, os sindicatos patronais, as grandes corporações profissionais da elite, (magistrados, médicos, dentre outras), os partidos conservadores, as organizações sociais de direita e de extrema direita. No campo democrático poderiam ser citadas instituições como a OAB, a ABI, a CNBB, as Cenrais Sindicais, os diversos sindicatos de trabalhadores dentre os quais petroleiros, bancários, metalúrgicos, professores, o MST, os demais inúmeros movimentos sociais, os partidos do campo democrático, dentre outros…

A cassação do mandato de Dilma, seja qual fosse a capa de legitimidade paraguaia, mergulharia o país numa longa crise de governabilidade sem remédio até que a normalidade institucional, o Estado de direito, estivesse novamente recomposto.

O conflito aberto eclodiria levando o país a um cenário imprevisível e catastrófico.

A direita armou o bote e depois, despertada sabe-se lá por qual conjunto de variáveis premonitórias, reconheceu que teria um preço a pagar.

O peso gravitacional das variáveis que vieram à luz do dia, (manifestações patronais, resistências anunciadas dos movimentos sociais, risco econômico, etc) não me parece suficiente, aliás, para justificar tamanho e tão largo recuo da complexa e cara estratégia golpista montada há meses. Num movimento concertado TODOS os setores golpistas recuaram. Difícil de entender com o que sabemos.

É como se estivesse faltando alguma variável de peso maior capaz de tornar mais inteligível o recuo em curso. Será que a prisão do Almirante Othon precipitou de uma vez a ruptura formal da aliança que os golpistas tinham como certa com as Forças Armadas?

Seja como for, 31 anos depois do fim da ditadura, enlutada e tangida, a direita vai sendo novamente obrigada a conformar-se, e já não era sem tempo, aos ditames do Estado de direito.

O luto é justo. O Estado de direito não é opcional, é obrigatório e é, além disto, a arena históric na qual a cidadania e os trabalhadores construirão vida digna, autoconfiança e emancipação.

A crise atual testou os limites das ambições golpistas e a capacidade de resistência da democracia brasileira.

A guerra segue adiante e sem quartel, mas, ao que parece, as instituições passaram no teste de stress.

O teatro macabro se encerra com o ato do dia 16 que passa a figurar como o gran finale e não mais como o preparador de um golpe a ser perpetrado pelo TCU/Câmara Federal com a rejeição das contas do governo de 2014 ou via TSE com a abertura de um processo de revisão das contas de campanha da presidenta, já aprovadas por unanimidade.

Do lado de cá, no dia 20, a nossa manifestação deve ser a festa cívica de uma nação que se levantou, é crítica ao governo, mas não aceita perder as conquistas democráticas, nem viver novo ciclo autoritário e entreguista.

Festa de bodas a do dia 20 tem que ser grande. Bodas democráticas.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

7 Comentários

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  1.  
    Perfeito Ion de Andrade.

     

    Perfeito Ion de Andrade. Toca o bonde que os meninos amarelos vão dançando a coreografia do coxinha golpista, que deu chabu.

    Orlando

  2. tentando salvar os dedos e os aneis
    Muito boa avaliação de Ion de Andrade.
    Também acho que a miopia da direita golpista acerca da nova realidade da sociedade civil no Brasil, apos 13 anos de governos progressistas, além da arrogância e intolerância inconsequente do grupo politico liderado por Aecio Neves e FHC (este meio na moita) fizeram o golpe inviável.

    “A falta de cultura política faz essa direita entender o poder político como uma espécie trono que, se for tomado, passa a ordenar de forma legítima e completa todo o ordenamento social que deve, a partir de então, curvar-se aos novos senhores. Uma burrice colossal.” (Ion de Andrade) – Muito bom!!

    Acerca das causas do recuo, acho pode ter sido causado mas por um conjunto de fatores alguns publicamente conhecidos e outros não, cristalizando-se em determinado momento um consenso majoritário nos segmentos sociais anteriormente favoráveis ao golpe acerca do preço a pagar pela aventura.
    Além dos fatores mais citados nos últimos dias, como a entrevista do Trabuco e dos o presidentes da FIESP e FIERJ, diversas mobilizações na sociedade civil mais organizada – MST, Centrais Sindicais, macha das Margaridas, abraço ao Instituto Lula, etc – penso que deve ter tido muita influência, sim, a prisão do vice-almirante Othon.
    Como se sabe as Forças Armadas não formam um grupo uniforme de pensamento, embora publicamente se mostre como tal. Há razões para crer que existam setores simpáticos ao atual governo por diversas razões, principalmente o nível e a qualidade de investimento feito no setor, cujo exemplo mais notório é o acordo do Gripen, e o perfil nacionalista do governo, o que pode ser visto com bons olhos por alguns militares.
    A intempestiva prisão do vice-almirante e a forma humilhante como foi feita pode ter sensibilizado setores militares a pular do barco.
    Outro fator que é muito sensível aos golpistas é o bolso, e recentes relatórios revelando queda 8,5% no faturamento em publicidade da mídia tradicional devem ter sua cota no recuo. Afinal, travar duas guerras ao mesmo tempo não é fácil e a mídia patronal já vem sendo fustigada pela Internet em outra “beirada”.
    Outro possível fator que passou meio despercebido: circulou noticia nos últimos dias que Emilio Odebrecht “autorizou” o filho Marcelo a firmar acordo de delação premiada. Teria sido um recado, curto e grosso? Contra quem? Ou, quem se salva?

    Por ultimo, a evidente falta de apoio popular relevante, exceto entre os ultra-radicais, às manifestações de hoje, 16 de agosto, e ao golpe em si, que tendiam já para o fiasco de qualquer jeito.

    Face ao inexorável, melhor pular do barco antes que afunde e tentar salvar, se possível, os dedos e os anéis também.

    Devemos todos continuar cobrando o governo os seus compromissos, sem esquecer de apoiar as medidas necessárias para oferecer condições adequadas para tal, tais como reforma política de verdade com financiamento publico para campanhas e lei de regulação da mídia, principalmente.
    E como bem disse o Ion, vamos todos a rua comemorar as bodas democráticas no dia 20. O que, face o momento, não é pouco.

  3. “Manifestação”

    Parabéns, Ion.

    Análise perfeita. Mas gostaria de lhe pedir espaço para falar uma coisa sobre as manifestações de hoje. 

    Aquela cena dos  homens  de bunda e peru  de fora para insultar Dilma, tipo estupro coletivo próprio de correção moral de religião fundamentalista foi sem dúvida a cena mais nojenta e deprimente dessa “manifestação”. Como mulher eu me senti diminuída e enojada. O que pensam as esposas e filhas desses sujeitos?Se concordam com eles, devem ser umas doentes mentais de tanto apanharem na cabeça. As organizações feministas e de direitos humanos de todo o País deviam protestar e o os chefes dessa coisa deviam vir a público e pedir desculpas a nós mulheres brasileiras. Isso equivaleu a um estupro moral e como tal devia ser punido. Compartilheo muitas vezes isso, para ver se chega aos ouvidos de alguém que faça alguma coisa com esses  nojentos, imundos sujeitos .  A Abin devia ter tirado uma foto e o Ministério da Defesa tem que tomar uma providência. Que  ordem política é essa, em que uma Presidenta da República é violentada em rede internacional e nada é feito/ Que futuro queremos? Democracia é o liberdade de expresssão, dentre outras coisas, mas não dá o direito de esfregar genitália em público sem autorização da pessoa. Nem num trem da Central.

  4. Eh! O “velho”Gramsci! Sempre Jovem!

    Perfeito! Perfeito! Perfeito! Quando “crescer” quero escrever e fazer análise assim…(tenho 55 anos…rs, rs, rs).

    A única ressalva a fazer é lembrar que, como o velho Mao gostava de citar, há que se somar ainda ao debate as “contradições no seio do povo”. Louvada seria se a “falta de cultura política” se restringisse apenas ao “patronato coxinha” e à classe média liberal conservadora de caráter semi ou protofascista nos seus exemplos mais extremos. Uma das grandes lacunas das forças populares e democráticas, por parte da sua direção política, foi descobrir que a perspectiva progressista ainda é um verniz fino na consciência de amplas camadas das classe populares. Penso que a grande lição a ser aprendida (e apreendida) neste momento é que casas e geladeiras novas, bem como motos ou carros na garagem, aos quais acrescentaríamos ainda viagens de avião permanentes ou ocasionais e condições para matricular-se a si próprios ou matricular os filhos numa universidade, além de um aumento significativo na empregabilidade e na renda, desmontaram-se como castelos de cartas ao mísero sinal de alguns trocados a mais na luz e no combustível ou na contenção temporal de um consumo não necessariamente essencial. Não faltam exemplos disso nas minhas conversas e observações cotidianas.

    Para mim, estes foram os fatores mais fortes de repercussão nessas camadas do que o veneno produzido pela avalanche “denuncista” e mediática da “corrupção”. Essa construiu a base e a plataforma de ofensiva da direita, decerto, mas com maior ênfase no andar de cima, ainda que também tenha se espalhado de forma difusa e em diversos tons “no andar de baixo”.

    Temos que cniar uma agenda para “repolitizar” – ou politizar de fato – esses setores, base social fundamental de qualquer transformação progressista. Porém, sabemos todos nós que não é e não vai ser fácil na prática real. Eu mesmo assumo que não tenho a noção exata do que fazer a curto e mesmo médio prazo, a não ser, por enquanto, resistir à tempestade. Aliás, ninguém tem, muito embora não faltarão, daqui em diante, discursos “renovadores” e “sinalizadores” oriundo de uma esquerda exclusivamente “academicista”, radical e “isolacionista “. São bem vindos a esta altura, certamente, e também têm muito a nos recordar os erros e a nos ensinar e refletir sobre o futuro, em parte. Mas são insuficientes de construir as bases sólidas de uma agenda para o futuro. Esta, somente a luta prática e real do cotidiano nos mostrará. 

  5. O texto de Ion revela uma

    O texto de Ion revela uma hipóteses pra lá de plausível. A burguesia conservadora brasileira que quer a destitiução de Dilma está com o domínio das instituições. O golpe passaria com “capa de legalidade”. O motivo da  prisão de Othon, nem mesmo todos os militares tem certeza, pode envolver  uma questão de segurança nacional.  Ou não. Mas prudência e caldo de galinha não faz mal a ninguém. Afinal, ironicamente no atual contexto, cabem às Forças Armadas a garantia dos poderes constitucionais,  não é mesmo?

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