Os problemas não solucionados pelo julgamento das biografias no STF

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Marcelo Frullani Lopes

No Justificando

Julgamento das biografias é apenas o início das discussões

O Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de decidir a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 4.815, declarando a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil. Através de interpretação conforme à Constituição Federal, entendeu-se que a veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, independe de prévia autorização dos biografados ou de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, caso a pessoa retratada seja falecida).

A decisão é histórica. Nos últimos anos, as divergências entre, de um lado, biógrafos e editoras, e de outro, pessoas retratadas em biografias ou seus familiares, causaram uma insegurança jurídica que praticamente paralisou a produção de biografias.

De fato, enquanto determinados juízes entendiam que havia a necessidade de consentimento prévio para a publicação dessas obras, criou-se uma mercantilização das biografias por parte de pessoas que se consideravam donas das histórias. Editoras negociavam fortunas com biografados ou seus familiares; autores viam anos de trabalho se perderem.

Dessa forma, a decisão resolve um aspecto importante da polêmica envolvendo essas obras. A tendência é que as editoras e os biógrafos passem a investir mais dinheiro e tempo para a realização de obras que tratam da vida de figuras históricas. Porém, engana-se quem pensa que as polêmicas envolvendo essas obras estão superadas.

Na verdade, os problemas estão apenas começando. Como dito no parágrafo anterior, a decisão provavelmente terá como efeito um estímulo à produção de biografias. Sendo assim, problemas não solucionados pela ADI 4.815 se repetirão com ainda maior frequência, bem como novas polêmicas passarão a fazer parte do debate público.

Ou seja, a decisão fixou o seguinte entendimento: não há necessidade de se conseguir autorização prévia de certas pessoas para a publicação de uma obra biográfica. Não ficou decidido, pois não era objeto do processo, se o Judiciário pode realizar o controle prévio dessas obras por outros motivos, como, por exemplo, uma violação grave de direito fundamental por meio de informação inverídica, ou que fira indevidamente a intimidade ou a honra da pessoa retratada.

Apesar de os votos indicarem uma preferência pelo controle a posteriori da liberdade de expressão, o objeto da ADI era apenas a questão da autorização prévia. Portanto, não há decisão definitiva sobre o controle judicial prévio da liberdade de expressão em decorrência de outros motivos.

Além disso, mesmo quanto aos mecanismos de controle posterior, há sérias dúvidas quanto à aplicação dos mesmos. Continua havendo uma lacuna, em nosso ordenamento, em relação à possibilidade de apreensão de livros após a publicação, bem como quanto à remoção de conteúdo em futuras edições.

Deve-se ressaltar que o próprio caso paradigmático envolvendo Roberto Carlos não tratava apenas da questão da autorização prévia, e sim da violação à privacidade e honra em decorrência da divulgação de certos fatos. Isto é, a obra não foi proibida pelo cantor antes da publicação; na verdade, o juiz da 20ª Vara Cível do Rio de Janeiro determinou que os exemplares já publicados fossem retirados de circulação. A decisão do STF não impede esse tipo de entendimento, já que a ADI limita-se à questão da autorização prévia por parte das pessoas retratadas ou de seus familiares.

Ainda não há regulamentação legal tratando disso no Brasil. Em 2014, porém, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n° 393/2011 elaborado pelo Deputado Newton Lima. O projeto altera o artigo 20 do Código Civil, deixando claro, em primeiro lugar, que não se exige autorização para a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidades biográficas de pessoas que tenham “dimensão pública” ou envolvidas em “acontecimentos de interesse da coletividade”.

Por meio de emenda apresentada pelo Deputado Ronaldo Caiado, incluiu-se um parágrafo que autoriza a pessoa que se sentir atingida em sua honra, boa fama ou respeitabilidade, a requerer a exclusão de trecho que lhe for ofensivo em edição futura da obra, sem prejuízo da indenização e da ação penal pertinentes.

Ou seja, esse projeto procura regulamentar a questão do controle judicial posterior à publicação das biografias, permitindo a retirada de determinados trechos em edições futuras, mas não a apreensão de edições já publicadas. Trata-se de uma solução interessante, porém o texto ainda depende de aprovação pelo Senado Federal. Enquanto isso não ocorrer, prevalecerão a insegurança jurídica e as decisões divergentes, dependendo-se demasiadamente do entendimento dos juízes quanto a esse ponto.

Mas há outros tipos de responsabilização posterior que causam polêmica, como o direito de resposta. Após a decisão proferida na ação de descumprimento de preceito fundamental n° 130, que considerou a Lei de Imprensa (Lei n° 5.250/67) não recepcionada pela Constituição de 1988, há uma lacuna no ordenamento quanto à forma como esse direito, previsto no artigo 5°, inciso V, da Constituição Federal, deva ser aplicado. Se a questão já é complexa envolvendo periódicos, fica ainda mais no caso de biografias.

Verifica-se, além disso, a possibilidade de que casos já julgados, ou que tenham sido objeto de acordo para a retirada de circulação de determinados livros, voltem à tona. Em relação à obra que trata da vida de Roberto Carlos, por exemplo, pode-se abrir uma nova disputa judicial com o biógrafo Paulo Cesar Araújo. No caso, após a decisão liminar determinando a suspensão da comercialização do livro, foi feito um acordo por meio do qual o autor se comprometeu a não colocar a obra novamente em circulação. Porém, e se ele acrescentar ou alterar informações?

Ou reescrever totalmente a biografia, com outras palavras, mas contando exatamente os mesmos fatos? Logo após o julgamento, o biógrafo já se manifestou favorável ao lançamento de edição atualizada[1]. Pode haver uma discussão quanto à possibilidade de divulgação dessa obra “nova”.

Há outra questão que deve continuar causando discórdia. Quando se publica uma obra biográfica, seja ela literária ou audiovisual, até que ponto o nome e a imagem da pessoa retratada podem ser explorados comercialmente? Tendo em vista que, na maior parte dos casos, essas obras são publicadas visando-se ao lucro, caberá ao Judiciário estabelecer limites para essa exploração.

Por fim, deve-se ressaltar que essas são apenas algumas das polêmicas envolvendo as biografias, que não serão resolvidas pelo julgamento da ADI 4.815. Não porque haja algum erro por parte da entidade que ajuizou a ação, muito menos do STF, e sim pelo fato de que a discussão é extremamente complexa, não se limitando à questão da autorização prévia.

A decisão da Corte não coloca um ponto final na polêmica; pelo contrário, trata-se apenas de um pontapé inicial. A partir de agora, a tendência é que a discussão passe a outros níveis, talvez até mais instigantes do que a questão do consentimento prévio.

Marcelo Frullani Lopes, advogado graduado na USP (Universidade de São Paulo), sócio do escritório Frullani Lopes Advogados.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

11 Comentários

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  1. O que diz o autor do post é

    O que diz o autor do post é que a decisão não valeu nada e o risco dos biografos continua o mesmo. É a interpretação dele mas está claro que o ESPIRITO DA DECISÃO é que podem ser publicadas biografias sem autorização e PONTO.

    Não adianta vir com filigranas de ponto e virgula, a Suprema Corte FIXOU um entendimento quanto à não necessidade de autorização pelo biografado e herdeiros. As questões de crimes contra a honra a serem discuitidas a posteriori admitem a EXCESSÃO DA VERDADE e ai desaparece o crime. Se o biografo diz que o biografado bateu na mulher e existe BO comprovando isso, não estão dizendo inverdade, se diz que o biografado era bebum e há prova disso por documentos não está ofendendo o biografado. É bem diferente do que necessitar de autorização previa.

    Nos EUA nem se cogita dessas filigranas bem provincianas. Uma biografia de Frank Sinatra e varias foram publicadas

    há uma coletanea de PODRES sem fim, bebedeiras, farras, sacanagens, ligaçõs com a mafia, traições, adulterios, Sinatra cai no fundo do poço na carreira e na vida pessoal varias vezes, nunca ninguem, nem ele, achou ruim que sua estoria real fosse contada.

    Como alguem pode se pretender um personagem do imaginario popular e quer à coté preservar uma vida privada?

    A logica do grande personagem começa na egolatria e o pior cartigo da vida e ninguem falar dele.

    O autor do post que me desculpe mas está procurando pelo em ovo, quer mostrar que nada mudou, então o STF está brincando?

    1. Como sempre o embaixador dos

      Como sempre o embaixador dos EUA, aqui no blog, cita o pais que idolatra como o exemplo para o mundo.

      Pobre da humanidade se vivesse como os americanos, invadindo paises, jogando bombas atomicas, institucionalizando a pratica da tortura, apoiando ditaduras.

      É, no entando, bem compreensivel que alguem amando tanto os ianques.não de valor ao direito a privacidade das pessoas.

      Afinal acaba de ser divulgado que nossos vizinhos do norte ficam escutando as conversas de todos nos pelo telefone.

      Toda essa discussão sobre biografias nos mostra que os homens são divididos em dois grupos. Uns que se interessam pela musica de Sinatra e outros pelos seus “podres”.

  2. Então…

    Agora é que os “gigolôs” da “vida alheia” vão se fartar de ganhar dinheiro. Sorte deles é que a tanto ainda existe “voyeur”…

  3. Advogados, kkkkk.

    Meu amigo, isso aqui é Brasil.

     

    Viu aí como funciona a mente OAB?

    É obvio que a decisão é irrelevante tendo em vista o atual estado do judiciário brasileiro. Ali, tudo é possível.

    O advogado, representante detsa corja(OAB), apenas disse obviedades judiciais.

    O que ele disse resume-se a:

    toda questão, que não seja a principal(que foi resolvida), ainda pode ficar 30 anos até ser decidida pelo  judiciário.

     

    Brasil il il il

     

  4. Em tese, é tudo muito bonito,

    Em tese, é tudo muito bonito, liberdade de imprensa. Na prática mercantilista A Veja vai abrir uma seção de biografias e vão publicar como encarte da Folha de Domingo.

    Primeira: Fernando Henrico Garboso  Segunda:  Lula. Terceira: Evo Moralles…..

    Só verdades…

    Game Of thrones vai ser mais realista que estes.

     

  5. “Liberta-se não é nada…

    … o problema é saber ser livre”.  

    No momento em que se levanta mais uma vez essa bandeira,  a frase de Andre Gide me vem bater na moleira. A cosntituição garante liberdade de expressão, mas  também que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.  Não uma saída? Não sei…

    Penso que a informação deva circualr livremente. Mas o que determina aquilo que circula?  Na grande mídia, o que existe a liberdade do dono do meio, onde não  raras vezes se mente, se omite e se distorce, fomentando a deformação e a desinformação da opinião publica. Por outro lado, há aquele outro negócio  que sobrevive  e faz sucesso vasculhando  partes pudenda , e que promove –  ao gosto do público –  a  fofoca,  a patrulha e o controle.  Privatiza-se o intresse público e publica-se a vida privada. Realmente, apenas o que interessa… 

    http://www.youtube.com/watch?v=GJXD09WEMKU

    https://www.youtube.com/watch?v=wRFS0xTmrAk

     

    Obviamente, este é apenas um dos aspectos da questão.

     

     

     

     

     

  6. O autor tem toda a razão. O

    O autor tem toda a razão. O assunto é extremamente complexo e mexe com algo fundamental em uma sociedade democrática e plural: a dimensão privada da vida social, que é tão importante quanto a dimensão pública. Uma não existe sem a outra. É preciso garantir um mínimo de proteção à intimidade de cada um, e isso só pode ser feito de forma prévia, preventiva. Depois que o íntimo é tornado público não há mais o que proteger. É como colar vaso quebrado. A unanimidade dos ministros, porém, preferiu o caminho fácil e optou por uma interpretação rasteira e generalista do direito a informação que tornará a vida íntima de qualquer um refém dos interesses editoriais. Deveriam ter escolhido o caminho do meio.

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