Perspectiva histórica e os paradoxos do Brasil

Sugerido por Assis Ribeiro

Do Sul 21

Copa do Mundo e eleições: alguns paradoxos e o papel da perspectiva histórica
 
O historiador Geoff Eley escreveu um livro colossal e extremamente relevante para pensar o momento que vivemos no Brasil e no mundo. “Forjando a Democracia. A história da esquerda na Europa, 1850-2000” (Editoria Fundação Perseu Abramo) traduz em suas 766 páginas o que é mesmo essa tal de perspectiva histórica e porque ela é indispensável para pensar a política, a democracia e a própria vida. A história, nos lembra Eley, não anda de trem, nem de bonde. Ela não está presa a trilhos, podendo servir tanto para “bloquear o presente como para libertá-lo”. Partindo da década de 1860, seu relato avança por meio de uma série de conjunturas revolucionárias, passando pelas duas guerras mundiais e pelo processo de reconstrução que se seguiu a elas. Todos esses períodos, escreve, são marcados por um enigma que persegue os historiadores e os pensadores da política: a articulação complexa e muitas vezes paradoxal entre continuidade e mudança.
 
Em determinados períodos históricos, diz Eley, “as relações dadas, social e politicamente, parecem inertes e fixas (…) e a política se transforma na máquina da permanência e da rotina”. Mas em outras épocas, “o presente afrouxa as garras”, escreve: “os horizontes se alteram. A história se acelera. Torna-se possível ver os fragmentos e contornos de uma forma diferente (…) as estruturas aparentemente inamovíveis da vida política se abalam (…) Quando isso acontece, os mundos institucionais e formais da política, numa nação ou cidades, e os muitos mundos corriqueiros do privado, do pessoal e do dia-a-dia se movem em conjunto. Ocupam o mesmo tempo e o presente começa a se mover”.

 
Em seu livro, Eley percorre esses períodos de continuidade e de mudança que marcam a história política recente da Europa. E o faz, sem perder de vista nunca a perspectiva histórica, compondo uma importante reflexão sobre a trajetória da esquerda europeia no período em questão. Ele aponta que “a degeneração da revolução bolchevique sob Stalin e a stalinização da Europa Oriental depois da Segunda Guerra Mundial comprometeram o lugar do socialismo”. No resto da Europa, porém, ressalta, “os socialistas foram fundamentalmente responsáveis por tudo o que nos é caro na democracia, desde a busca das garantias democráticas, das liberdades civis, e a aprovação das primeiras constituições democráticas até os ideais mais conflitivos de justiça social, a ampliação das definições de cidadania e o Estado de bem-estar”. E conclui:
 
“A democracia sempre foi uma fronteira em movimento, cujas projeções idealistas porém irrealizadas foram tão importantes quanto os ganhos efetivos. Portanto, à medida que nos movermos pela paisagem desconhecida do século XXI, estaremos diante de um futuro do qual precisaremos nos lembrar. E, ao construirmos nossos mapas, vamos precisar do conhecimento contido no rico passado de esquerda”.
 
O horizonte da perspectiva histórica: o Brasil e seus paradoxos
 
No momento em que a Europa enfrenta um grave risco de retrocesso que ameaça direitos e conquistas sociais construídas com suor e sangue, e o Brasil atravessa um período de efervescência social, a sabedoria da experiência e o horizonte da perspectiva histórica podem nos ajudar a ver com mais clareza o que, de fato, está sendo despertado e alimentado no país. Como lembra Eley, a experiência humana já mostrou diversas vezes que a história não anda de trem. Se esquecermos disso, poderemos ser pegos de surpresa quando ela tomar direções absolutamente inesperadas e mesmo indesejáveis.
 
O Brasil vive uma situação paradoxal. O país vive o seu melhor momento na história, do ponto de vista do combate à fome, à pobreza e à desigualdade. O país vive também uma situação de pleno emprego no momento em que economias tradicionais da Europa enfrentam uma grave crise de desemprego. No entanto, quem passa o dia exposto ao bombardeio midiático tem a impressão de que vivemos uma situação de caos. A situação beira o surreal. Vale a pena lembrar alguns números.
 
No final de 2002, cerca de 55 milhões de brasileiros viviam na pobreza, sobrevivendo com o valor mensal de meio salário mínimo por pessoa. Deste universo, aproximadamente 24 milhões de pessoas viviam com menos de ¼ de salário mínimo, em uma situação de extrema pobreza. A meta inicial firmada pelo governo brasileiro com a Organização das Nações Unidas (ONU) era de, até 2015, reduzir a pobreza à metade do nível de 1990. Em 2005, essa meta foi voluntariamente ampliada pelo Brasil, definindo que a redução da pobreza deveria atingir um quarto do nível de 1990. Esse resultado foi alcançado em 2007 e superado em 2008. Em 7 anos, mais de 27 milhões deixaram a pobreza.
 
Segundo dados do IPEA e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre 2003 e 2009, 27,9 milhões de pessoas superaram a pobreza e 35,7 milhões ascenderam para classes sociais mais elevadas. O índice da população vivendo em situação de pobreza extrema caiu de 12% (2003) para 4,8% (2008). A taxa de desnutrição em crianças menores de cinco anos no Brasil caiu de 12,5%, em 2003, para 4,8%, em 2008 – uma queda de 62%. A diarreia aguda, uma das maiores causas de mortalidade infantil, que havia causado 2.913 óbitos em 2003, fechou o ano de 2008 com 1.410 óbitos, uma redução de 51,6%.
 
Isso significa que todos os problemas do país foram resolvidos. Claro que não? Mas significa muito menos que o país está descendo a ladeira. O período que estamos vivendo no Brasil coloca algumas armadilhas no caminho: as tentações da terra arrasada, do adventismo, de achar que a história que está começando agora, de lançar pela janela o bebê com a água do banho, de subordinar o maior ao menor, de tomar a parte como o todo, nos espreitam a todos.
 
Neste contexto vale a pena ler a obra de Geoff Eley e refletir sobre as armadilhas que cercam a relação entre continuidade e mudança. A democracia e a própria história, assinala, têm fronteiras em permanente movimento. Nas próximas semanas essas fronteiras serão atravessadas por diferentes agentes sociais e políticos que apostam em um clima caótico durante a Copa do Mundo como fator capaz de influir no resultado das eleições presidenciais deste ano. A situação pode ficar bastante confusa, o que exigirá mais do que nunca algo que Eley aponta em seu livro como um elemento indispensável para se situar nas fronteiras em movimento da democracia e da política: perspectiva histórica. E uma das principais coisas que a perspectiva histórica nos indica é que os movimentos políticos em torno da Copa do Mundo estão todos subordinados, goste-se ou não, à eleição presidencial deste ano no Brasil que definirá o futuro do maior país da América Latina e, de modo indireto, de todo o continente. É neste terreno que a política e a democracia brasileira se moverão nas próximas semanas.
Redação

3 Comentários

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  1. Os movimentos contra a

    Os movimentos contra a realização da Copa do Mundo no Brasil, as passeatas de Junho de 2013 estão intrinsicamente atreladas à campanha da reeleição deste ano. O MPL foi simplesmente uma cavalo de tróia. Pegaram carona nele movimentos os mais diversos e os mais a direita possíveis para protestarem “contra tudo que está aí” mas sem definirem uma meta, sem organizar uma fonte ou sem hastear uma bandeira proclamando alguma espécie de liderança. Quando as coisas se acalmaram viram que todos os agentes políticos foram atingidos, de situação à oposição, da esquerda para a direita atingindo também o centro mais conservador. MAs quem mais sofreu foi o Governo central. O que veremos de agora em diante é a tentativa de minar aos poucos o governo federal com as passeatas (mínimas!), com as chantagens através das greves oportunistas e principalmente com a cobertura sempre presente de nossa mídia oposicionista. Dqui até em Outubro, muita água e também muita sujeira vai passar por baixo desta ponte!!

  2. Não existe paradoxo algum, ou

    Não existe paradoxo algum, ou melhor o parodoxo que existe é que nada muda realmente neste País, parece que muda, mas nada muda.

    A situação descrita da miseria e da exclusão que recentemente existia no Brasil, foi o que fez com que a sociedade mudasse, se não existisse aquela situação não haveria necessidade de mudança e ai sim o conservadorismo persistiria.

    As analises atuais que apresentam aquela situação extremamente deficiente como a ameaça de retorno, caso o eleitorado não patrocine a continuidade do atual estado de coisa representa a velha manobra de todos que ja estiveram no poder neste País colonizado. As mudanças politicas sempre se lastrearam na ameaça de que qualquer avanço, mormente o avanço da melhoria da administração publica, exigia alta dose de tolerancia e paciencia, vendendo que o que se tinha alcançado ja era muito e que preferivel se sujeitar as condições do presente com a ameaça de retorno do passado. 

    O velho chavão de que o Brasil é o País do futuro, persiste até hoje com nova roupagem. 

    Ou então a celebre frase de que é necessario deixar o bolo crescer, para ai sim dividi-lo.

    Um País que trata o povo como gentalha não pode dar certo.

     

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