Reinaldo Guimarães: ‘Está em curso uma destruição institucional sem precedentes’

Entre as graves consequências da política em curso, o pesquisador aponta um fenômeno até então pouco relevante no país: a fuga de cérebros para o exterior de pesquisadores, professores e profissionais de alta qualificação.

do CEE-Fiocruz

Reinaldo Guimarães: ‘Está em curso uma destruição institucional sem precedentes’

por Eliane Bardanachvili

A ciência, a pesquisa e a inovação no Brasil, que desde os anos 1950, sustentaram-se em sólidos pilares institucionais, com a criação do CNPq, da Finep e da Capes, entre outros organismos, vivem uma fase de destruição. A análise é do pesquisador Reinaldo Guimarães, do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que publicou o artigo Pesquisa e desenvolvimento: destruição e ameaças, no site da Abrasco, em agosto. Integrante do grupo de estudos de Análise de Conjuntura do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, Reinaldo destaca, nesta entrevista à coluna, que o cenário faz parte de um contexto mais amplo de ataque às políticas públicas, pelo “encilhamento orçamentário-financeiro” e por uma generalizada destruição institucional sem precedentes. “No terreno das políticas sociais, são atingidos os sistemas trabalhista e previdenciário. No terreno da política de ciência, tecnologia e inovação, o que está em curso é uma destruição daquela arquitetura institucional iniciada há quase 70 anos”, observa.

De acordo com Reinaldo, em período de carência de recursos financeiros, uma visão estratégica levaria à de preservação de determinados setores, “cuja destruição pode ser ou irrecuperável, com vistas ao desenvolvimento do país, ou trágica, para segmentos populacionais mais vulneráveis”. Entre as graves consequências da política em curso, o pesquisador aponta um fenômeno até então pouco relevante no país: a fuga de cérebros para o exterior de pesquisadores, professores e profissionais de alta qualificação.

Leia a entrevista, a seguir.

O senhor faz em seu artigo um pequeno resgate histórico da trajetória de P&D no Brasil. O que esse levantamento nos aponta, de modo geral, no que diz respeito à forma como o país caminhou nas últimas décadas?

Uma política pública federal institucionalizada de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil foi inaugurada após a 2ª Guerra Mundial, pari passu com uma política industrial também institucionalizada. Minha ênfase na institucionalidade deriva na importância que tiveram instituições criadas na primeira metade da década de 1950 – o BNDE [sigla, na época, para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico], como fomentador da indústria, e o CNPq, como fomentador da pesquisa. Com uma certa defasagem, com a importação do modelo norte-americano de pós-graduação nascida na Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], em 1965. E, numa perspectiva de atender ao fomento nas duas pontas – da oferta de conhecimento e da demanda de tecnologia industrial –, merece ser mencionada a formação do dipolo Finep/FNDCT [Financiadora de Estudos e Projetos/Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], no início da década de 1970. Mas a ênfase institucional deriva também da preocupação com o desenvolvimento e mesmo a sobrevivência dessas instituições a partir da atual conjuntura.

De que forma isso se dá?

A existência das instituições, por um lado, forneceu uma importante arquitetura normativa para as políticas e, por outro, foi um polo de resiliência sempre que as prioridades governamentais se distanciavam da ciência, tecnologia e inovação – o que ocorreu em vários momentos e com várias intensidades ao longo do tempo. O desenvolvimento dessas duas políticas – pesquisa e indústria – deu-se de modo distinto, e essa distinção foi responsável por um afastamento entre elas, num processo no qual a industrialização de modo geral privilegiou a compra de tecnologia acabada e quase sempre defasada no exterior e a pesquisa, puxada principalmente pelo desenvolvimento da pós-graduação, expandiu-se com grande vitalidade. Os poucos exemplos brasileiros de desenvolvimento harmônico entre pesquisa e inovação na indústria ocorreram em setores onde as políticas setoriais foram orientadas por uma demanda autóctone de tecnologias e a política industrial de petróleo e gás, coordenada pela Petrobras é o melhor exemplo.

A industrialização de modo geral privilegiou a compra de tecnologia acabada e quase sempre defasada no exterior e a pesquisa, puxada principalmente pelo desenvolvimento da pós-graduação, expandiu-se com grande vitalidade

O contraponto, muito mais disseminado na indústria brasileira, foi a indústria automobilística, quase sempre incapaz de absorver tecnologia de base científica relevante no seu processo produtivo. Uma característica importante desse processo de afastamento foi o fato da atividade de pesquisa, na maioria das áreas e dos momentos, ser “governada” pela política de pós-graduação quando, numa perspectiva de amadurecimento de um sistema de inovação no país, o desejável fosse o oposto. A resultante dessa configuração foi o desenvolvimento de um sistema de inovação excessivamente inclinado para a oferta acadêmica de conhecimento científico e tecnológico, quando se se leva em conta o conjunto dos setores.

Como devemos compreender a queda no apoio financeiro federal à P&D que o senhor destaca marcadamente a partir do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff? Como lidar com a pesquisa científica tendo em vista uma conjuntura econômica desfavorável –como a que se verificou naquele momento? Em que medida uma crise em P&D deve-se a questões de financiamento ou a uma política adequada para o setor?

O setor de ciência, tecnologia e inovação não é uma ilha, apartada dos demais setores da vida política, econômica e social do país. Portanto, é irreal uma perspectiva de mar de almirante para o nosso setor quando se vive um ambiente geral de tempestade pesada. Desde a década de 1970, tivemos períodos de encurtamento orçamentário-financeiro e períodos de relativa bonança. A atual tempestade começou ainda no segundo mandato da presidenta Dilma, tanto por fatores objetivos, decorrentes da desaceleração econômica global consequente à crise de 2008, quanto de fatores subjetivos, provocados pelas manobras políticas que pavimentaram a consecução do golpe do impeachment em 2016. Mas reconhecer esses determinantes não justifica o que a política de ciência, tecnologia e inovação vive hoje. O que está em curso é, em primeiro lugar, um ataque geral às políticas públicas que, além da política de que estamos tratando, atinge pesadamente a política educacional, de saúde e de seguridade social como um todo. Esse ataque sustenta-se em um encilhamento orçamentário-financeiro cuja principal ferramenta é a EC-95 (Lei do Teto). Mas, muito além desse encilhamento, com as propaladas reformas, o ataque incorpora uma destruição institucional sem precedentes. No terreno das políticas sociais, são atingidos os sistemas trabalhista e previdenciário. No terreno da política de ciência, tecnologia e inovação, o que está em curso é uma destruição daquela arquitetura institucional iniciada há quase 70 anos a que me referi no começo da entrevista. Num período de carência objetiva de recursos financeiros, seria de se esperar uma visão estratégica, de preservação de setores cuja destruição pode ser ou irrecuperável com vistas ao desenvolvimento do país ou trágica para segmentos populacionais mais vulneráveis.

O que está em curso é, em primeiro lugar, um ataque geral às políticas públicas que, além da política de que estamos tratando, atinge pesadamente a política educacional, de saúde e de seguridade social. Esse ataque sustenta-se em um encilhamento orçamentário-financeiro cuja principal ferramenta é a EC-95 (Lei do Teto)

À convergência do encilhamento orçamentário-financeiro e da destruição institucional, deve ser adicionado nesse diagnóstico sumário o clima de intolerância e violência que toma conta do país, com incidência importante nas instituições de ciência e tecnologia – universidades e institutos de pesquisa. Caso esse ambiente persista por muito tempo, será inevitável a explosão de um fenômeno que, entre nós, jamais foi muito relevante, qual seja a perda de cérebros para o exterior, pesquisadores professores e profissionais de alta qualificação.

Caso a EC 95 estivesse vigorando desde 2000, conforme a simulação que apresenta em seu artigo, qual seria a viabilidade – ou inviabilidade – da pesquisa científica hoje, em 2019?

 Várias simulações nesse sentido já foram realizadas, para vários setores, em particular para o de saúde. Entre elas, destacam-se as produzidas por pesquisadores do Ipea [ver aqui], que demonstram com precisão o desastre que virá caso as tendências atuais persistam pelo tempo previsto pela Lei do Teto. Para as despesas federais com ciência e tecnologia, a simulação que realizei com base em números do próprio MCTIC, indicam que se os critérios previstos nessa lei tivessem prevalecido entre 2000 e 2013, teria havido um aporte de recursos a menor no valor de R$ 78 bilhões correntes em relação ao que foi efetivamente despendido.

Investimentos em pesquisa e desenvolvimento, em especial em áreas como saúde e educação, costumam apresentar resultados em médio e longo prazo, nem sempre podendo ser capitalizados politicamente em uma mesma gestão governamental. De modo geral, a relação da P&D com o dia a dia e a qualidade de vida das pessoas mostra-se pouco clara. Como podemos explicitar essa relação, em especial, no que diz respeito a gestores e políticos, entre outros tomadores de decisão?

 Os setores de saúde e educação costumam ter impactos subjetivos menos mediatizados. Em outros termos, as pessoas percebem com mais facilidade quando um membro de sua família é o primeiro a entrar numa faculdade ou quando é bem atendida em um serviço público de saúde. Naturalmente, uma percepção coletiva, disseminada, é mais complicada, em particular pela tradução enviesada fornecida pela maior parte da grande mídia quando se trata de noticiar os serviços públicos. Mas, no caso da pesquisa científica e tecnológica, a mediação é muito mais complexa. Neste caso, penso que uma mudança na percepção é de prazo muito mais longo, dependendo, por um lado, da elevação do nível educacional da população e é um componente importante no amadurecimento do nosso sistema de inovação, e, por outro lado, pelo desenvolvimento geral do país, que acreditamos ter no desenvolvimento científico e tecnológico e na inovação uma presença importante.

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