Releitura brasileira de uma velha fábula, por Ruben Bauer Naveira

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Releitura brasileira de uma velha fábula

por Ruben Bauer Naveira

A travessia para o futuro – quer dizer, para um futuro que seja melhor do que o passado e o presente – seria como que a travessia de um rio, uma vez que comporta riscos de se “morrer afogado” no meio do caminho.

Eis que, um belo dia, a classe dominante brasileira estava à beira do tal rio, digo, estava diante das escolhas que teria de fazer para construir seu futuro.

Parêntesis: por equívoco conceitual socialmente disseminado (leia-se cacoete mental), a classe dominante brasileira é volta e meia chamada de “elite”, coisa que, em qualquer país, diz respeito a um extrato social que chama para si a responsabilidade de traçar os destinos da nação. Nunca houve nada assim no Brasil, lugar em que os horizontes da classe dominante não passam da acumulação predatória e do consumo ostentatório. Fecha parêntesis.

Pois bem. Precisava a classe dominante brasileira de um veículo para empreender a travessia rumo ao futuro. Acostumada que sempre esteve a manejar as leis a seu bel prazer, ela se dirigiu até a lei vigente (que atende pelo nome de Constituição de 1988 ou, mais sinteticamente, CF88), e lhe falou:

– CF88, eu subo em cima de você e vamos juntas fazer a travessia rumo ao futuro.

A CF88 respondeu à classe dominante (gente, isso aqui é uma fábula):

– Mas no meio da travessia você vai me rasgar, e nós nos afogaremos juntas, e morreremos.

– Rasgar você? Para jogar o país no caos da falta de perspectivas, do desencanto das pessoas, da repressão generalizada? Você faz alguma ideia dos riscos? Não faria sentido eu te rasgar, porque mais cedo ou mais tarde isso acabaria se voltando contra mim mesma. Você acha que eu vou querer matar a galinha dos ovos de ouro?

– Galinha dos ovos de ouro? Mas isso aqui não era a fábula do escorp…

– Tá bom, tá bom!

– E então? Me rasgar é ou não é a sua natureza?

– Pense comigo: você conserva intactos, ou não, todos os meus privilégios históricos?

– De fato, conservo.

– Você me permite, ou não, manter intocada a concentração do patrimônio, das terras e da renda?

– Permito.

– Você me permite, ou não, pagar proporcionalmente menos impostos do que os pobres?

– Permito.

– Para não falar na impunidade sempre que eu resolvo sonegar?

– Sim, é verdade.

– Você me entrega de bandeja, ou não, o acumpliciamento das instituições-chave do Estado?

– Tipo?

– Banco Central, Tesouro, Receita, Congresso, Supremo, Polícia Federal, Ministério Público, a juizada em geral…

– De fato. Entrego. De bandeja.

– E assim eu não tenho que ficar preocupada com o resultado das eleições diretas?

– Verdade.

– Para minha maior tranquilidade, você, para todos os efeitos práticos, mantém ou não mantém a gentalha na rédea curta, deixando a polícia livre para matar e para superlotar as cadeias?

– Mantenho.

– Então? A troco de que eu te rasgaria?

– É que, afora isso tudo, eu também estabeleço direitos civis, preconizo a redução das desigualdades, defino patamares mínimos para os gastos sociais…

– Esse vernizinho de cidadania? Mas isso é até bom pra mim, sua boba! É isso o que me permite ir empurrando com a barriga, indefinidamente, todo esse estado de coisas que é absolutamente a meu favor!

– Bem, é mesmo… olha, só se você tivesse um rompante de insegurança, a ponto de me rasgar.

– Só se eu fosse muito estúpida. Olha para mim: eu, fina e bem vestida, pareço estúpida a esse ponto?

– Sobe aí. Bora atravessar.

E lá se foram, a classe dominante nas costas da CF88, faturando, na moleza, os juros mais altos do planeta, por muitos e muitos anos, até 2016, quando…

– Ôô… CF88?

– Sim?

– Éé… olha só:

Ruben Bauer Naveira – É doutor pela COPPE/UFRJ juntamente com a London School of Economics (LSE) e autor do livro “Gestão da Mudança” (editora Atlas), tem 52 anos, é pai de dois filhos, tricolor de coração e cidadão brasileiro

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

7 Comentários

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  1. Uma fábula

    Deixo essa fábula sobre outra característica que nossas classes dominantes nunca quiseram abrir mão. Com valores morais gestados em quase quatrocentos anos de escravidão, nossas classes dominantes aceitam até perder dinheiro, desde que mantenham o status.

     

    O PAVÃO E OS CANÁRIOS

    (Aos donos do Brasil)

     

    O pavão, ave tão nobre

    De tal brilho, um esplendor

    Nunca moveu uma pena

    Em prol do trabalhador

    É bem diferente disso

    Pode até perder riqueza

    Mas do status mão não abre

    Eis a sua natureza

     

    Teve um tempo em que os canários

    Se fizeram de tal vulto

    Que tais cores conquistaram

    Ao pavão foi um insulto!

    E tomou as providências

    Pois não podem ser iguais:

    “Que acinzentem os canários

    Os fazendo de pardais!”

     

    Até hoje seu status

    Está lhe custando mais

    Nem que perca até o couro

     Gasto em tantos carnavais

    Essa elite brasileira

    Mesmo assim não abre mão

    Quer ver todo povo à míngua

    Para ser tal qual pavão

  2. Constituição Brasileira – A fábula

    Estava indo muito bem, até o “tricolor de coração”.

    Gosta de fábulas, vou lhe dar uma fábula.

     

    O lobo e o cordeiro

    Adaptação Fábio W. Sousa

     

    Eis que num pequeno riacho

    um lobo encontra um pequeno e singelo carneirinho.

    – Como se atreve turvar minha água? – Diz o lobo.

    – Como posso turvá-la se estou abaixo do senhor?

    – Sim, mas você falou mal de mim ano passado, bem sei.

    – Senhor, nasci este ano.

    – Se não foi você, foi seu irmão.

    – Sou filho único.

    – Então foi seu pai, seu tio, seu avô.

    Nhoc, nhoc, nhoc… sangrou-lhe a jugular.

    (Infelizmente é assim, quem controla os poderes rasga a constituição)

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