Análise

Sexo, fascismo, o “pênis” da Fiocruz e Alan Moore, por Wilson Ferreira

Sexo, fascismo, o “pênis” da Fiocruz e Alan Moore

por Wilson Ferreira

Qual o sincronismo de assistir ao documentário “The Mindscape of Alan Moore” e acompanhar uma semana que começa com a carreata de Bolsonaro acompanhado de possantes motos da militância alt-right e termina com a confirmação da depoente bolsonarista Mayara Pinheiro na CPI da Pandemia confirmando áudio dela sobre ter visto “um pênis na porta da Fiocruz”? Moore (conhecido escritor de HQs) explica o argumento do gibi “Lost Girls”: como os adultos, via repressão sexual e moralismo, canalizam as energias sexuais dos jovens para a guerras e assassinatos. Argumento que ecoa as teses de Wilhelm Reich sobre a psicologia de massas do fascismo, basicamente em torno de duas teses principais: preocupação exagerada (seja pela repressão ou ansiedade) em relação à sexualidade e erotismo e representações do poder e da rudeza – importância exagerada em relações assimétricas de poder-submissão. Principalmente a relação com o simbolismo fálico através da ostentação, paranoia e angústia da castração.

Nessa semana esse humilde blogueiro teve uma curiosa experiência sincrônica: uma coincidência significativa. Assistia ao documentário The Mindscape of Alan Moore – um documentário de 2003 sobre o conhecido escritor britânico, principalmente pelo seu trabalho nas histórias em quadrinhos. Notadamente pelas obras que foram adaptadas ao cinema como Watchmen, V de Vingança e Do Inferno.

No documentário, Moore fala sobre o seu trabalho na HQ dos anos 1990, Lost Girls, desenhada por Melinda Gale. Uma narrativa sobre três importantes personagens  femininas (Alice, de “Alice no País das Maravilhas”; Dorothy de “O Mágico de Oz”; Wendy de “Peter Pan”) que se encontram na Áustria em 1913 para partilharem aventuras erótica, às vésperas da Primeira Guerra Mundial “quando tudo está se preparando para a exata antítese do sexo”, afirma Moore.

E continua: 

“tudo se dirige a esse exato momento no que os humanos fazem quando não põem sua energia no sexo. Matam-se uns aos outros… Porque o impulso sexual sadio que governa a muitos jovens durante a adolescência é pervertido por homens mais velhos que talvez tenham perdido parte dos seus impulsos sexuais. Uma energia pervertida para causar a morte de outros jovens… Energia que deveria fazer algo mais honesto como o sexo é desviada para cometer algo atroz como o assassinato”.

 Em seguida, assistindo ao depoimento da secretária da Saúde Mayara Pinheiro na CPI da Codid-19, o senado Randolfe Rodrigues (Rede, AP), sempre ele, exibiu o áudio e questionava a secretária a sua veracidade. No áudio, de 2019, ela dizia que “tudo deles [a Fiocruz] envolve LGBTI, eles têm um pênis na porta da Fiocruz. Todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara, as salas são figurinhas do Lula Livre, Marielle Vive”.

Mayara respondeu: “esse áudio foi uma resposta a um colega, não foi agora e houve um vazamento e, nessa época, era uma constatação de fatos”.

A explicação que Alan Moore faz do argumento da HQ “Lost Girls” ecoa as principais teses do controvertido Wilhem Reich (1897-1957) – psicanalista e teórico social alemão que tentou aplicar as principais teses psicanalíticas na análise do caráter por trás da psicologia de massas do fascismo, através do viés freudo-marxista: a revolução sexual como forma de evitar que os impulsos naturais fossem desviados para a satisfação perversa no apoio aos governos autoritários, guerras e assassinatos. Reich via por trás da ascensão do nazi-fascismo uma sociedade moral e sexualmente repressiva cujas consequências se ramificavam pela neurose, as perversões e a apatia política.

“Lost Girls” e Wilhelm Reich

Não há como, diante do áudio da secretária da Saúde e a sua confirmação na CPI (numa semana em que Bolsonaro fez uma moto rider no Rio de Janeiro na qual bolsomínios ostentavam Harley Davidsons e Ducatis num alto rendimento simbólico fálico, como demonstração de poder e potência), não lembrar da HQ “Lost Girls” de Alan Moore e as teses da psicologia de massas do fascismo de Reich. 

Principalmente porque ouvimos na CPI uma voz de um integrante do núcleo duro fascista do bolsonarismo, a “Capitã Cloroquina” –  que segue firme e inabalável, mesmo depois da passagem de três ministros na pasta. E mais: pelo que os seus depoimentos demonstraram na CPI, ela parece influenciar em decisões que vão muito além das suas funções de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde do Ministério. Uma “eminência parda”, portanto.

Contemporâneo de Wilhelm Reich (que chegou a flertar com a Escola de Frankfurt), Theodor Adorno empreendeu a pesquisa “A Personalidade Autoritária” (1950) que, em muitos aspectos, tangencia com o livro “Psicologia de Massas do Fascismo” escrito por Reich. foi uma pesquisa que durou vários anos, mobilizando questionários, escalas, entrevistas individuais e interpretação interdisciplinar dos resultados – representar as configurações psicodinâmicas relacionadas a atitudes e expressões antissemitas, etnocêntricas, conservadorismo político e econômico para chegar ao potencial fascista, a famosa “Escala F”.

Em muitos aspectos, o escândalo de Mayara com o pênis da Fiocruz (conotando uma conspiração da esquerda ao liga-lo metonimicamente a Che Guevara, Lula e Marielle – na verdade era apenas a torre do castelo mourisco da instituição, estilizado, num selo dos 120 anos da Fiocruz) coincidindo com três finais de semana seguidos em que cavalos e motos de luxo de alta potência (ou cavalos de potência) foram significantes simbólicos em manifestações presidenciais de extrema direita, dão no quê pensar: mostram a atualidade das raízes psíquicas do fascismo proposto por Reich a atualizado pelas “Lost Girls” de Alan Moore.

Em primeiro lugar, a fantasia gestaltica de Mayara (ver no selo comemorativo da Fiocruz um pênis conspiratório da esquerda) revela o primeiro traço do caráter autoritário: a preocupação exagerada (seja pela repressão ou ansiedade) em relação à sexualidade e erotismo. 

Teorias conspiratórias de extrema direita como o “QAnon” sobre uma “cabala secreta” por trás da elite política liberal dos EUA envolvendo tráfico sexual infantil, pedófilos e canibais em rituais de culto a Satã refletem essa obsessão perversa recorrente em torno do sexo. Ou a fixação persecutória de Bolsonaro em sexo no “Kit Gay” distribuído em escolas ou na acusação do filósofo-astrólogo e guru alt-right Olavo de Carvalho de que o candidato presidencial Fernando Haddad supostamente defendia incesto em livro publicado em 1988.

No caráter fascista há alguma questão não resolvida em relação à sexualidade: tanto no aspecto de repressão pura e simples da energia sexual pela moralidade familiar (a dinâmica clássica da neurose descrita por Freud na era vitoriana), quanto na sublimação forçada do impulso sexual canalizado para o esforço meritocrático – na obsessão da ascensão profissional buscando ascensão hierárquica, carreira e poder. 

Trocar a gratificação imediata pela promessa de um prazer futuro que será frustrante, por ser sempre abstrato – o filme clássico Cidadão Kane (1941) mostra bem essa dinâmica de frustração do protagonista: o seu sucesso, conquistas e o poder nada se equiparava a um prazer pulsional infantil – a relação com um objeto transicional, um trenó infantil.

Não é à toa que o caráter fascista vê conspirações sexuais subliminares em qualquer coisa, até em centros de pesquisas biológicas e sanitárias.

Continue lendo no Cinegnose.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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