Um Nobel para Bob Dylan, por Walnice Nogueira Galvão

Um Nobel para Bob Dylan

por Walnice Nogueira Galvão

Para estarrecimento do vulgo, a Academia Nobel acaba de conferir o prêmio de literatura a Bob Dylan.

Para começar, ninguém duvida do talento de Bob Dylan como letrista e compositor. Algumas de suas canções são clássicas, como “Blowin`in the wind” – nem é preciso dizer. Agora, é bom lembrar a forte influência da literatura nelas. Mesmo o pseudônimo que Robert Zimmerman escolheu é homenagem a um poeta propriamente dito, e dos bons, o galês Dylan Thomas. O bar que este último frequentava em Nova York, o White Horse Tavern, em Greenwhich Village, pode ser visitado para as homenagens de praxe. Quando no apogeu, era reduto da alta boemia do bairro, e glórias tanto literárias (James Baldwin, Norman Mailer, Jack Kerouac) quanto musicais (o próprio Bob Dylan, Jim Morrison etc.) ali faziam ponto.

Que suas letras visionárias e apocalípticas são superiores, basta compará-las às de dois dos maiores da época, Elvis Presley e os Beattles: perto das dele,  parecem brincadeira de criança.

Mas isto se refere apenas a essa fase áurea, de compositor folk militante político. Em suas turnês atuais pelo mundo, a audiência fica fria até que ele cante uma delas, quando então todos prorrompem em coro.

Arredio aos holofotes, fez a transição do folk para o pop, quando desagradou fãs do mundo todo. Fora crucial na grande campanha dos direitos civis nos Estados Unidos, quando cantava nos comícios em favor dos negros, contra a Guerra do Vietnã, pelo movimento estudantil etc. Até hoje podemos vê-lo em filmes durante a Marcha para Washington, aquela em que Martin Luther King pronunciou seu mais famoso sermão:  “I have a dream…”. Logo abandonaria os companheiros e as causas anteriores. Joan Baez, que já era musa dos direitos civis, foi quem o descobriu e lançou: mas depois ele se afastou de tudo, inclusive dela. Passou a ser artista pop, ou seja, sem desobediência e sem dissidência, tacitamente aprovando o establishment que antes contestava.

Na tradição folk, houve bardos das reivindicações populares como Woody Guthrie, cedo falecido, ou Pete Seeger. O primeiro acompanhava os comícios, reuniões e festas dos sindicatos operários, e podemos vê-lo às vezes em documentários. Celebrava as vitórias do povo e trazia-lhe alento nas derrotas. Seu período mais fecundo foi na Grande Depressão, que se seguiu ao craque da Bolsa de Nova York, em 1929. Foi, declaradamente, grande influência sobre Bob Dylan. Até hoje suas canções são regravadas por outros artistas, enquanto This land is your land passou a competir com o hino nacional.

Mais novo e mais longevo, Pete Seeger conviveu e trabalhou com Woody Guthrie. Ambos moravam em comunas, partilhando atividades e militando em grupo. Suas mais célebres canções são “If I had a hammer” e “Where have all the flowers gone”, gravada até por Marlene Dietrich. Também popularizou “Goodnight, Irene”, posta em circulação por Leadbelly;  e foi ele quem lançou e difundiu, embora não fosse o autor, “We shall overcome”, que se tornaria o hino não só daquele Movimento pelos Direitos Civis mas de qualquer outro até hoje.

Esses músicos lembram o português Zeca Afonso, que também era militante e ativista de reivindicações sociais em seu país. Compunha canções para sindicatos e bandeiras de luta. Teria a honra de ter uma de suas canções proletárias – aliás em louvor dos combativos camponeses do Alentejo -, “Grândola, vila morena”, difundida pelo rádio para servir de senha à deflagração da Revolução dos Cravos, em abril de 1974.

Isto posto, há que pensar que na origem da outorga deste prêmio podem residir algumas falácias. Uma é a admissão de que a literatura de há muito patina no mesmo lugar, sem conseguir renovar o surrado paradigma do século XX. E isso apesar de apresentar inovadores nesse mesmo século, como vários poetas e como Proust, Joyce, Borges – nenhum deles agraciado pelo Nobel. No outro extremo, vislumbra-se uma rendição: se a literatura não produz cifras de vendas recordes – é de sua natureza ser livre e desinteressada -, a solução é atrelar-se a uma celebridade pop? Dando-lhe cerca de um milhão e meio de dólares?

De qualquer modo, muita reflexão será necessária para entender esta novidade.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

10 Comentários

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  1. O correto é Proust, Joyce e

    O correto é Proust, Joyce e Kafka – o trio fundamental e incontornável da prosa do século XX . Até o próprio Borges pediria essa mudança (rs). 

  2. Da mesma época de Bob Dylan,

    Da mesma época de Bob Dylan, temos várias feras que mereceriam muito mais essa premiação, mesmo que não seja importante. Dylan, para a maioria, é “Lay Lady Lay”, que o alavancou e consagrou. Daí prá frente, caminhou fazendo fãs dando uma de hippie, coisa que há poucos anos declarou que nunca foi. É um tremendo dum chato bundão.

  3. Há alguns anos escrevi um

    Há alguns anos escrevi um comentário em um blog de música pop, que me valeu uma chuva de insultos.

    Fãs de artistas costumam ser extremamante agressivos quando seus ídolos são atacados.

    No comentário eu dizia que a maioria – senão a totalidade – dos músicos letristas era tributária da poesia moderna.

    Incluindo aí os músicos da MPB, de Caetano a Djavan, passando por Chico Buarque, e os parceiros de artistas como Milton, etc.

    E que o grande problema da maioria – senão a totalidade – dos fãs de música pop é que não conheciam a poesia moderna.

    Ouço Bob Dylan há pelo menos 40 anos, e nunca conheci um fã seu, sequer, que já houvesse lido uma linha que fosse de Dylan Thomas.

    Nem os poetas que estavam na linha dele, Allen Ginsberg, Corso, o Ferlinghetti.

    E muito menos o guru deles, William Carlos Williams.

    No caso dos letristas brasileiros, Jorge de Lima, Murilo Mendes, mesmo João Cabral de Melo Neto.

    Se houvessem lido, perceberiam que a música pop do bardo, bem como a dos nossos brilhantes compositores brasileiros, é extensivamente tributária dessas vertentes.

    O que não diminui Dylan em nada, pelo contrário, somente o engrandece.

    Mas trazer uma vertente poética, ou um estilo, para um outro campo artístico, é uma coisa diferente de criar algo dentro desse mesmo campo.

    A revolução de Dylan na música pop é semelhante a dos cineastas da nouvelle vague na França, que trouxeram para o cinema elementos da literatura para criar uma inédita forma cinematográfica.

    Uma reforma, na verdade, como diria Glauber Rocha.

    Lamento profundamente a morte de Leonard Cohen, poeta e depois músico, de que tomo conhecimento enquanto escrevo este comentário.

    1. Sou fanatico por Dylan
       
      e

      Sou fanatico por Dylan

       

      e tambem acho que ele surfou na onda dos 60, é só o mais famoso dos letristas, o Cohen era tão bom quanto ele.

    2. “No comentário eu dizia que a

      “No comentário eu dizia que a maioria – senão a totalidade – dos músicos letristas era tributária da poesia moderna.

      Incluindo aí os músicos da MPB, de Caetano a Djavan, passando por Chico Buarque, e os parceiros de artistas como Milton, etc”:

      Chico Buarque nao chega perto de qualificar para “poesia moderna” mesmo sendo o mais letrado de todos os musicos brasileiros -e de fato o que leu todos os autores nas suas sugestoes.  A poesia dele eh estritamente tecnica, com silabas contadas e milimetricamente distribuidas, e eu nao estaria nem um pouquinho surpreso se algum dia ele dissesse “mas eu levei 9 meses pra achar a perfeita sentenca pra terminar essa letra” pois ja aconteceu comigo (nada do que eu tentava dava certo ate aquela sentenca).

      1. Prezado Ivan, obrigado por
        Prezado Ivan, obrigado por sua atenção ao meu comentário.
        Não sei se concordo com sua afirmação sobre Chico Buarque. O fato de ele usar métrica, bem como formas fixas – em função de ser, primordialmente, um músico – não o torna mais ou menos moderno. Autores como Yeats, Valéry, por exemplo, também se expressaram dessa forma, e permanecem tão modernos quanto Pound, ou Eliot. No Brasil, poetas como Mário Faustino, e o próprio João Cabral, também lançaram mão desses recursos, sem deixar de serem modernos.

  4. Não há um conceito eterno do que seja literatura

    Discordo do final do artigo da prof. Walnice e da maioria dos comentários que desqualificam Dylan. De quem sou fã justamente porque as letras de suas canções são poemas de alta qualidade literária, bem como os de Leonard Cohen, falecido hoje, sem necessidade de flaflu idiota sobre quem mereceria o Nobel entre eles. Cohen mesmo disse sobre isso que o Nobel para Dylan é como condecorar o Everest pela altura. Walnice, sendo professora e pesquisadora de literatura, deve saber que a poesia nasceu da música popular, entre os gregos antigos, e assim foi até a Idade Média, com os trovadores. Só recentemente é que houve a separação. Já o papo furado de que hoje isso não vale por causa da indústria cultural desconhece que desta faz parte a indústria editorial…

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