O necessário resgate de uma tradição gaúcha no ciberespaço, por Luiz Peter Ribeiro Goulart

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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O necessário resgate de uma tradição gaúcha no ciberespaço

por Luiz Peter Ribeiro Goulart

“O trovador de galpão, lançando seu versinho ao embalo da gaita,

recolheu sem saber migalhas poéticas de um jogral ou segrel”.

De 13 a 20 de setembro, comemora-se no Rio Grande do Sul a Semana do Gaúcho, alusiva à Revolução Farroupilha (1835-1845). Muito da nossa complexidade cultural é reduzida a clichês nesse período do ano, através de imagens de mulheres prendadas, caricaturas de submissão sob o disfarce da delicadeza; e de homens fortes, mais representantes de um orgulho boçal – como o gaúcho que ergue o relho – do que de determinação de espírito. Entretanto, assim como no presente há críticos dessa tendência de fixação do tipo gaúcho em padrões hegemônicos, não nos faltaram ao longo dos tempos pessoas de sensibilidade inquieta em relação à complexidade de nossa cultura, como Augusto Meyer, cujo legado de produção intelectual pode ser de grande valia ao nosso autoconhecimento como povo integrado à nação brasileira e à humanidade.

Com a frase em epígrafe, Augusto Meyer – como se fosse um repentista de trova de martelo a lançar um desafio a outro trovador para que desse continuidade ao descante a partir do último verso – faz um enfático, porém leve, arremate  de seu ensaio sobre Poesia popular gaúcha, compendiado com outros textos que abordam temas da cultura sul-rio-grandense numa obra ensaística intitulada Prosa dos pagos (Presença/INL-MEC, 3 ed. Rio de Janeiro, 1979). Poeta, ligado ao movimento modernista, crítico literário e jornalista, Augusto Meyer entregou ao público a primeira edição de Prosa dos pagos em 1943 e deu-lhe forma definitiva em 1960, já a terceira edição foi publicada nove anos após seu falecimento. São escritos que inventariam vasto acervo documental e bibliográfico acerca da formação cultural do Rio Grande do Sul, com tecitura de considerações sobre nosso gentílico, poesia e demais gêneros literários, lendas, poetas e escritores,  especificidades históricas das missões jesuíticas e narrativas de viagens de forasteiros que nos legaram o registro de suas impressões ao passarem – ou até mesmo se aquerenciarem – pela região da América do Sul que viria a se tornar a unidade federativa brasileira conhecida como Rio Grande do Sul.

No primeiro ensaio – Gaúcho, história de uma palavra – a ênfase de Meyer recai sobre os fluxos sociais do vocábulo através do processo histórico de formação de nossa sociedade. Provavelmente, os próceres da Revolução Farroupilha jamais imaginariam que fosse instituído o Dia do Gaúcho e ficariam ofendidos se assim fossem chamados, pois os gaúchos dos séculos XVIII e XIX, também conhecidos como gaudérios, eram homens marginalizados que levavam vida errante pelos campos dos dois lados do rio Uruguai, sem lei nem rei, “moravam na sua camisa, debaixo do seu chapéu” (op. cit., p. 20). O surgimento desse tipo social estava condicionado ao ambiente socioeconômico de uma região com amplos vazios demográficos, economia pouco diversificada e concentração fundiária nas mãos de barões guerreiros, que recebiam terras medidas em sesmarias – regime de concessão de títulos pela Coroa Portuguesa sobre propriedade fundiária que perdurou no Brasil até 1822 – como prêmios pela formação e administração de exércitos para as guerras de fronteiras.

Essas terras, distribuídas em grandes extensões para poucos, com fins de ocupação militar do território, como não eram cultivadas nem usadas para o pastoreio regular em sua maior extensão, não absorviam a mão de obra de homens que vagueavam pelos ermos, dedicando-se à preação e extração de couro do gado vacum alçado para eventuais escambos. Constituíam esses andarilhos do pampa força militar de reserva em tempos de armísticios. Rubens de Barcellos, em 1923, ao abordar a ideologia do separatismo e o caráter sul-rio-grandense em conferência promovida pela Federação Acadêmica do Rio Grande do Sul, tabulando os ciclos bélicos que envolveram nossa região, diria, situando-se no passado: “somos um povo acampado à espera do toque de reunir” (Estudos Rio-Grandenses, coleção Província, v. 7. Porto Alegre: Editora Globo, 1960, p. 39). Assim, o marginal social em tempos de paz tornava-se mão de obra guerreira em tempos de confrontos militares, e o vocábulo com que era assinalada sua condição de pária não era extensivo aos demais habitantes da província e não poderia ser usado, se não como ofensa, em relação aos homens de bem e de bens da sociedade sul-rio-grandense, pelo menos até meados do século XIX, pois, como frisou Augusto Meyer (op. cit., p. 36): “Procurei em vão, na poesia farroupilha a palavra gaúcho”.

Ao transitar pela discussão semântica do gentílico, a preocupação do autor não se volta à palavra em si, mas para as complexidades das representações identitárias como expressões de processos de aculturação, descartando “uma Divina Providência Gaúcha, que desde o começo decretou as cousas na mesma ordem rígida” (op. cit., p. 42). Nesse sentido, no referido ensaio sobre Poesia popular gaúcha, Meyer evoca estudos de diversos autores para mostrar que não só os povos de nossa região, mas também de outras regiões do país, caíam nos folguedos ao embalo de sons e cantigas de origem majoritariamente portuguesa. Ao comparar, por exemplo, as pesquisas de Paixão Cortes e Barbosa Lessa sobre o fandango no interior do Rio Grande do Sul com as do pesquisador paulista Alceu Maynard Araújo sobre o fandango em Cananéia, no litoral sul de São Paulo, em meados do século XX, em que o último retoma estudos do renomado Mário de Andrade, nota uma semelhança de nomes nas danças: “Chico, Quero-mana, Sarrabulho, Tirana, Anu, Chimarrita, Dandão e Recortado” (op. cit., p. 65).

Há, porém, de serem considerados os processos de singularização das manifestações culturais dos povos conforme suas experiências coletivas. Assim, aquele gaúcho rude, que havia carregado nosso gentílico como pecha de marginal, viria a consolidar sua posição no imaginário popular, por força de idealizações românticas sobre existências de aventuras, com a contribuição de  canções importadas e ressignificadas em convivências locais. Nesse sentido, um pouco antes do trecho citado acima, podemos ler: “que nestes cantos (e em motivos de dança como o Tatu, em que a ironia é uma alegre irreverência, uma dança da imaginação maliciosa) se revela a verdadeira veia gauchesca em nossa poesia popular” (op. cit., p. 55).

Outro notável exemplo de confluência da cultura local com afluentes universais nos é fornecido pela recriação das lendas populares sobre os mistérios de encantamentos em regiões subterrâneas, correntes na Península Ibérica, por João Simões Lopes Neto através da construção da narrativa literária de A salamanca do Jarau. A palavra salamanca, atravessando o Atlântico, havia-se popularizado na América com significado de cova encantada em função de lendas originárias da região espanhola de Salamanca, que já haviam servido de tema a Miguel de Cervantes, para escrever o texto de uma conhecida peça teatral, no início do século XVII, intitulada Entremés de la Cueva de Salamanca. Sobre A salamanca do Jarau, escreve Meyer: “Vemos através do texto a imagem da conquista, o transplante da tradição ibérica para o Novo Mundo, a mescla de elementos mouriscos e indígenas, dando a ideia de uma síntese mal esboçada, que provém do concurso de três continentes…” (op. cit., p. 182/3).

A figura do gaúcho idealizado como monarca das coxilhas teria como marco de fixação na galeria nacional de tipos regionais o romance O gaúcho, de José de Alencar, publicado em 1870. No ensaio que lhe dedica, depois de apontar várias imprecisões no emprego de termos em desacordo com os significados locais, Augusto Meyer defende suas qualidades estéticas diante das desqualificações feitas por regionalistas inspiradas por rigores de verossimilhança que beiram ao bairrismo. E, recordando uma discussão que tivera a respeito com o escritor e jornalista Roque Callage, em que este lhe dizia “aí vem você com paradoxos”, quando ele argumentava que a observação de fidelidade à realidade social poderia ser cobrada de um sociólogo mas não de um escritor de ficção literária, argumenta: “a criação literária vive em grande parte desse paradoxo, ou melhor, da contradição inevevitável entre a mímese, ou imitação da realidade, e a síntese criadora e subjetiva, que lhe dá estilo e vida” (op. cit. p. 85/6).

Entre os escritores locais, na busca de recriação literária desse gaúcho idealizado, João Simões Lopes Neto vai ter sucesso – com reconhecimento póstumo – justamente onde falha no intento de representação do pitoresco a que se dedicaram os regionalistas. Do contato entre o escritor letrado com gente rude e simples nascem personagens como Blau Nunes, Jango Jorge, Negro Bonifácio, Tudinha e outros, porque o autor se entrega, na percepção de Meyer, aos devaneios poéticos em sua criação, “com as suas inquietações, as ternuras e as crises do seu espírito, a comoção das suas entranhas” (op. cit., p. 156), gerando personagens com força dramática como resultado do confronto moral do homem simples com o ideal do gaúcho épico.

Por outro lado, Meyer ressalta que, onde falharam os escritores regionalistas no aspecto da produção estética, deve-se atentar para sua contribuição etnográfica, fazendo registro de um fato que evidencia inclusive uma reação contra o eurocentrismo quando é radicalizada a busca de conhecimento da realidade regional, como no caso de Apolinário Porto Alegre, que, ao perceber a insuficiência de sua formação teórica nos cânones de saber europeu para compreensão da realidade das sociedades rurais, inicia estudos de tupi-guarani, quéchua, caraíba e bantu. Já no romance Ruínas vivas, de Alcides Maya, ele iria perceber a idealização do gaúcho épico desintegrando-se em contradições sociais: “O seu romance é a história dolorosa de um inadaptado que as circunstâncias empurram para o crime, embora não tenha a frieza de um perverso congenial” (op.cit., p. 133).

É no desvão dessas contradições que se movimenta o pensamento de Augusto Meyer ao examinar os diversos registros de nossas configurações culturais. Assim, no ensaio dedicado à lenda do Negrinho do Pastoreio, ao levantar o motivo da identificação popular com uma elaboração de fundo psíquico-religioso, que aponta para a compensação aos sofrimentos da escravidão com uma existência póstuma canonizada, ele indica um caminho de questionamento ao mito do estancieiro escravagista magnânimo com a escravaria. Esse mito foi pinçado, ou pelo menos reforçado, a partir de um registro feito por August de Saint Hilaire em seu Voyage à Rio Grande do Sul sobre as fainas campeiras em que fazendeiros e escravos trabalhavam juntos, que Meyer cita, porém confronta com outras passagens em que o naturalista francês narra as condições subhumanas dos escravos das charqueadas, além de um triste episódio de morte por afogamento de um escravo em que um fazendeiro lamenta a perda patrimonial e não a morte de um ser humano. Por outro lado, em relação ao indígena, não é o autor da Prosa indiferente ao drama de seu desenraizamento cultural e, no ensaio O lunar de Sepé, contrapõe à visão eurocêntrica sobre a preguiça e incúria dos índios, registrada nos documentos inacianos e compartilhada pelos colonizadores, interessados na exploração de mão de obra nativa, a análise de Caio Prado Junior (Formação do Brasil contemporâneo – Colônia. São Paulo, Editora Brasiliense, 5ª ed. 1957, p. 347, apud Meyer, A. op. cit., p. 191): “Será indolente, e só aí o colono interessado o enxergava e julgava, quando metido num meio estranho, fundamentalmente diverso do seu, onde é forçado a uma atividade metódica, sedentária e organizada segundo padrões que não compreende”. Mas, não obstante sua reação à predominância dos valores eurocêntricos nas narrativas de colonização, sua análise não desanda em diatribes contra os jesuítas.

Comparando a obra desses catequizadores em solo sul-americano, no ensaio Relíquias dos Sete Povos, a trabalhos que desenvolveram em outros continentes, atribui o sucesso da empreitada de criação de uma federação teocrática na América do Sul à combinação de flexibilidade e fé inabalável. Entretanto, não se deve ver aí valoração moral da atividade dos padres. O autor é enfático ao ressaltar que a contribuição cultural do indígena, que surgiu desse encontro entre duas correntes civilizatórias e cujos registros podem ser encontrados nos resíduos das artes sacras ornamentais como pintura e escultura, permaneceu anônimo e difuso como criação coletiva, porque os escribas da Companhia assentaram no papel a capacidade de aprendizado pelo índio e sua expressão na criação artística unicamente de um ponto de vista de louvação do trabalho pedagógico missionário com descaso às personalidades entre a população indígena missioneira.

Vale destacar, no ensaio Da estante dos forasteiros, as informações de Nicolau Dreys, comerciante francês que, no primeiro quartel do século XIX, morou e mercanciou dez anos em solo sul-rio-grandense e deixou suas impressões anotadas em Notica descriptiva da província de São Pedro do Rio-Grande do Sul. Por circunstâncias de ofício, Dreys, além de ter conhecido os antigos gaúchos, testemunhando tendências potenciais de sua aculturação à sociedade que se ia formando com o povoamento do território, conheceu também muito de perto outro tipo social, o dos contrabandistas, homens que, como os primeiros, viravam-se para ganhar a vida em negócios mal vistos, embora muito usufruídos. Do já citado Saint-Hilaire, além dos já referidos trechos sobre a escravidão, em que o viajante francês registrou cenas de liberalidade no trato ao escravo em contraste com outras de tratamento opressivo e desumano, ressalta Meyer o fato de que este seguiu a tendência de pensamento dominante entre o colonizador branco sobre a preguiça e a incúria do índio, mas não deixou de perceber as relações de mandonismo patriarcal que imperavam “na campanha sul-rio-grandense, graças ao prestígio daqueles donos do poder, no caso sob as feições do patriciado militar que se aquinhoara com fartas léguas de sesmaria” (op. cit., p. 303).

Essa situação de concentração fundiária, como fator de entrave ao desenvolvimento socioeconômico, não passaria despercebida a Aimé de Bonpland, botânico francês, amigo do naturalista prussiano de renome mundial Alexander von Humboldt, com quem realizara viagens de pesquisas de norte a sul do continente americano, até se aquerenciar por estas bandas, vivendo entre Brasil e Argentina, com uma década de controverso detimento no Paraguai. Em função de suas expedições científicas, o botânico francês desenvolvera também vínculos de relações políticas e, aqui, mantivera correspondência com o presidente da província, Soares de Andréia, a quem fizera sugestões sobre o parcelamento das grandes propriedades rurais com fins de ocupação produtiva do território. Segundo Meyer (op. cit., p. 309): “Devem-se a Aimé de Bonpland os primeiros projetos de colonização sistemática, com tendências a combater as extensões latifundiárias com terras baldias, no Rio Grande do Sul”. Bonpland, relata o autor da Prosa, daria a conhecer a Arsène Isabelle, jornalista francês e naturalista amador, um relatório de Soares de Andréia, fruto da correspondência mantida entre ambos. Introduzido no conhecimento da questão fundiária da província, Isabelle viria a conhecer os primeiros núcleos de colonização alemã do Rio Grande do Sul, percebendo a importância daqueles povoamentos “para o desenvolvimento da pequena propriedade no sul, em contraste cultural com a região da campanha, escravista e latifundiária” (op. cit., p. 314). Percebe-se, portanto, que ideias de reforma agrária e adoção de políticas de controle da propriedade fundiária têm raízes bem antigas em nosso passado histórico; basta campearmos nossas origens para encontrá-las.

No ensaio sobre Antonio Chimango, uma sátira política em versos, escrita pelo jornalista Ramiro Barcelos sob o codinome Amaro Juvenal, Augusto Meyer, contemplando os originais manuscritos pelo autor, a que tivera acesso, imaginariamente reconstitui o ato de criação poética com base na caligrafia traçada no papel: “Recortou-as [as folhas de papel] em tiras, velho hábito de jornalista, às vezes limitou-se a dobrá-las pela metade, e no alto da primeira meia-folha, em letra deitada e aguda, com certa elegância de talho nas curvas, que sugere sensibilidade e fantasia, começou a escrever” (op. cit., p. 221). Hoje, nada sabemos de estética caligráfica. Entretanto, a escrita, que a precedeu, permanece viva como invenção humana em constante revitalização, calcada nas exigências sociais de ações comunicativas. Freud, em 1929, em meio a uma atmosfera social em que sopravam ventos de fanatismo autoritário, escreveu, entre o desencanto e a esperança: “Originalmente, a escrita  é a linguagem de quem está ausente” (O mal-estar na cultura. Porto Alegre: LP&M, 2010, p. 89). Com as possibilidades atuais de leituras em plataformas digitais de hipertextos, com as facilidades de pesquisas e buscas de informação nas redes do ciberespaço, somos privilegiados em relação a outras eras quanto à facilidade de dialogarmos com nossos ausentes. No Rio Grande do Sul, onde o povo é tão cioso das tradições gaúchas, construídas – não esqueçamos – em processos de relacionamentos sociais, podemos empenhar-nos – com a tarefa facilitada pelas novas mídias – no resgate de um rico aspecto de nossa tradição, o do pensamento, representado por personalidades como Augusto Meyer; bem mais rico que os espetáculos grosseiros protagonizados por boçais através de relhaços e celebrados por oportunistas sempre prontos a tirar algum proveito do senso vulgar enraivecido.

Luiz Peter Ribeiro Goulart, servidor público, graduado em Sociologia pela Ufrgs.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Sou do Sul e posso dizer com

    Sou do Sul e posso dizer com toda clareza: toda a cultura gaúcha e esse tradicionalismo fanático é um reflexo do fascismo retrógrado que permeia o pensamento desse povo.

    Pra gaúcho tradicionalista de verdade,  gaúcho tem que ser macho (me engana que eu gosto…), mulher tem que ser prendada e preto tem que ser escravo.

    A parte cômica dessa situação é que ninguém no Brasil leva a cultura gaúcha a sério. Se você perguntar para qualquer um sobre o que acham de gaúchos, provavelmente alguém vai responder que ouviu falar que no RS tá cheio de “viado”.

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