Shakespeare e mais Shakespeare, por Walnice Nogueira Galvão

Shakespeare e mais Shakespeare

por Walnice Nogueira Galvão

As peças de teatro que, afora a poesia, constituem a obra de Shakespeare, acabam por trazer à baila o tema do desempenho. Abre-se o debate sobre quais seriam os maiores atores shakespereanos, desde os do passado remoto, inclusive ele próprio – que atuava em peças suas e alheias, nunca chegando ao estrelato – até os mais recentes.

Dada a fugacidade da encenação no palco, que no máximo pode ser perenizada atualmente em video, costumam os especialistas restringir-se ao cinema, sendo campeões os que seguem. Em primeiro lugar, o Falstaff de Orson Welles, no filme Badaladas à meia-noite, resultado da fusão das duas partes de Henrique IV em que o personagem aparece. Depois vem o Ricardo III  de Laurence Olivier e o Rei Lear que Peter Brook, diretor da Royal Shakespeare Company, filmou com sua estrela absoluta Paul Scofield no papel-título. No que diz respeito a John Gielgud, fica fora do ranking porque quase nunca trabalhou em filmes, mas a voz de ouro e a dicção impecável ao escandir o pentâmetro iâmbico o alçam ao trono real dos atores shakespereanos. Outra performance de Orson Welles que vale a pena é seu admirável Macbeth. E, de Gielgud, seria confrangedor escolher um só: há registro de uma encenação especial de A tempestade, em que fez todos os papéis. E, num filme de Peter Greenway baseado nessa mesma peça (1991), atuou como o protagonista Próspero. De qualquer modo, temos acesso em DVD a esse elenco de obras-primas.  

Isso no que concerne a desempenhos, porque em matéria de filmes, e são mais de quatrocentos, continua imbatível o Sonho de uma noite de verão, de Max Reinhardt (1935). O grande homem de teatro alemão, que lamentavelmente poucos filmes fez, traz para o cinema uma atmosfera onírica, entre brumas, florestas, ninfas e fadas, com música da suite de Mendelssohn de mesmo título e coreografia de Bronislawa Nijinska, irmã de Nijinski e coreógrafa dos Balés Russos de Diaghilev, que revolucionaram a dança moderna. Acrescente-se Mickey Rooney aos 14 anos fazendo um esplêndido Puck,  gnomo buliçoso e pérfido que se diverte praticando pequenas maldades. O teatro de Reinhardt, no auge do expressionismo alemão, que frutificou numa fase de ouro do cinema, era conhecido por ser de vanguarda, mobilizar grandes massas e valer-se de cenários espetaculares, como palcos que giravam, etc. O filme é tratado como uma ópera, principalmente as de Wagner, compositor perfeitamente reconhecível na encenação. É de uma beleza visual difícil de equiparar.

Quanto a Laurence Olivier, é responsável enquanto diretor e ator por uma trilogia dificilmente superável: Henrique V (1944), Hamlet (1948) e Ricardo III (1955). Como ator apenas, atuou em inúmeras peças: encontram-se desempenhos seus em várias filmagens para TV de encenações teatrais . Os dois primeiros são belos filmes com excelentes desempenhos de Olivier como protagonista, mas seu Ricardo III, onde ele faz um ser repulsivo física e moralmente, um monstro de maquinações maquiavélicas e nenhum escrúpulo, que vai assassinando todos que se interpunham entre ele e o trono que usurpa, é incomparável.

Mais tarde, Kenneth Brannagh aventurou-se a filmar várias peças, com resultados mais ou menos felizes. Dentre os mais bem realizados, destaca-se Henrique V, cujo fulcro é a batalha de Agincourt, quando os ingleses infligiram uma fragorosa derrota à França. Ele mesmo viveu o rei e Emma Thompson a noiva francesa.

Um pouco à moda de Paulo Emílio Salles Gomes, quando mobilizava seu poder de provocação e afirmava que o pior filme brasileiro diz mais sobre nós mesmos que o melhor filme estrangeiro,  é bom ver qualquer coisa, em qualquer veículo, que seja de Shakespeare:  mau cinema, mau teatro, musicais, quadrinhos, etc. A menos que você more na Inglaterra ou tenha acesso todo verão a “Shakespeare no Central Park”, em Nova York. Já vi até um The rock Othelo, em Londres, que era um musical de rock; e também um Sonho de uma noite de verão aquático, na piscina do ginásio do Ibirapuera; sem esquecer um notável Hamlet negro de Peter Brook. Sempre é melhor do que viver sem Shakespeare.

Walnice Nogueira Galvão

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  1. UM MARCO DA MODERNIDADEO
    UM MARCO DA MODERNIDADE
    O mundo de Shakespeare era um mundo em transição, transformado pelo Renascimento, as Grandes Navegações, a filosofia de Maquiavel e o heliocentrismo de Copérnico. Segundo o crítico norte-americano Harold Bloom, as criações do dramaturgo expressaram o conhecimento e o espírito da época moderna, que definiu a condição humana como entendemos hoje.
    Para Marin, os personagens deixam de ser guiados pelo sobrenatural e assumem uma atitude crítica diante de suas vidas. “Shakespeare foi pioneiro neste profundo mergulho no abismo dos mistérios da alma humana. Nem mesmo o teatro grego atingiu tamanha profundidade, pois nele, os seres humanos são comandados pela vontade dos deuses e do destino. Em Shakespeare, não. O homem é o responsável pela construção do próprio destino. Nada mais moderno. Essencialmente o ser humano permanece o mesmo; por isso Shakespeare permanece tão atual”. 
    Em Hamlet, por exemplo, o príncipe Hamlet encontra o fantasma do pai, que clama por vingança contra seu assassinato pelas mãos do próprio irmão, Cláudio, o novo ocupante do trono da Dinamarca e do coração da rainha. O jovem príncipe mergulha em profunda melancolia e para provar a culpa do rei, decide se passar por louco e faz uma trupe de atores encenar a morte de seu pai diante de toda a corte.
    “Ser ou não ser, eis a questão”, diz Hamlet, manifestando sua angústia com a existência, alguém que não sabe para onde ir e nem o quer. A peça é uma tragédia de vingança, onde a tensão gira em torno de um tormento pessoal. Na trama, a reflexão supera a ação e temas como a solidão do homem, o autoconhecimento e o indivíduo que toma consciência de si aparecem pela primeira vez. O conflito hamletiano destoa das tradicionais peças do gênero que eram encenadas até então, refletindo uma nova maneira do homem se relacionar com o mundo. 
    Marin lembra ainda a primeira frase da peça: “Quem está aí?”. “Dessa forma, ele inaugura todo o pensamento da modernidade, que persiste na busca deste eu interior: ‘quem está aí? Quem é esse ser que pensa, sente e fala? Quem sou eu?’ Não sem motivo, para Freud, Shakespeare é o autor do grande teatro da mente”.
    Para Paula, o legado de Shakespeare é inegável, mas é difícil definir com exatidão sua influência na produção contemporânea. “Em se tratando de uma tradição à qual sempre se retorna, ainda que seja para se reinventar, Shakespeare influencia o teatro que se faz em qualquer época. Pontuar essas influências, no entanto, é muito difícil no contexto híbrido e plural da cena contemporânea”. FRASES QUE ENTRARAM PARA A HISTÓRIA
    Shakespeare articulou pensamentos e diversas frases proferidas por seus personagens se tornaram senso comum e ditos populares. Conheça algumas das frases que saíram da boca de seus personagens ficaram famosas e são comuns no dia a dia:
    “O amor é cego” “Até tu, Brutus”“Meu reino por um cavalo”“Há algo de podre no reino da Dinamarca”“Isso parece grego pra mim”“Nem tudo o que reluz é ouro”“Colocar o carro na frente dos bois”“O que não tem remédio, remediado estᔓMais pra lá do que pra cᔓSem pregar o olho”“Dias melhores virão”  Leia Mais: [+] Leia entrevista com o ator Thiago Lacerda, que encenou Hamlet em 2012 (um marco em sua carreira), e tem planos de encenar mais dois textos de Shakespeare. *Matéria originalmente publicada no Almanaque Saraiva, edição 95 – Abril de 2014.

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