A pintura de Cícero Dias no CCBB, por Walnice Nogueira Galvão

A pintura de Cícero Dias no CCBB

por Walnice Nogueira Galvão

Ainda não havia globalização e os aviões de passageiros não cruzavam os ares. Ir à Europa levava três semanas de navio, mas a transação entre o modernismo brasileiro e as vanguardas europeias era intensa e fecunda.

A primeira viagem de Oswald de Andrade foi em 1912, e ele retornaria várias vezes. Anita Malfatti fez longos estágios na Alemanha , em Paris e nos Estados Unidos, ficando muitos anos fora. Tarsila do Amaral mantinha ateliê em Paris, indo e voltando. Também Di Cavalcânti frequentava Paris nas décadas de 20 e 30, assim como o mecenas Paulo Prado. Nessa cidade vivia mais um pintor, Vicente do Rego Monteiro. Lasar Segall, com tirocínio no expressionismo alemão, acabaria por fixar-se em São Paulo, bem como o arquiteto Gregori Warchavchik, que vinha da Rússia via Itália. O poeta surrealista Blaise Cendrars, casado com a cantora brasileira Elsie Houston, veio passar uma temporada entre seus confrades brasileiros. Da Suíça procedia o pintor John Graz, país onde os irmãos Antonio e Regina Gomide fizeram sua educação artística: os três revolucionaram as artes menores e a decoração de interiores entre nós. Precocemente, Manuel Bandeira foi para a Suíça tratar sua tuberculose; nesse país fez seus estudos o poeta e crítico Sérgio Milliet. O escultor Victor Brecheret estagiou na Itália de suas origens. O poeta Ronald de Carvalho viveu em Lisboa, onde participou da revista Orpheu, junto com Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Basta pensar em quantos intelectuais e artistas estavam a todo momento por lá, e desde muito cedo. Até deu para um deles deitar raízes. Esse foi Cícero Dias.

Tendo feito uma exposição bem-sucedida em Paris nos anos 30, tornara-se conhecido da vanguarda internacional que ali vivia. Casou-se com uma francesa, pouco a pouco fixou-se e por lá ficou até a morte em 2003. Logo estabeleceria laços de amizade  com os mais proeminentes artistas, inclusive Picasso, que seria padrinho de sua filha.

Foi nos lances da guerra que levou o poema Liberté de Paul Eluard para Lisboa e o repassou às forças aliadas. O poema foi impresso em milhões de panfletos, disseminados de avião sobre países e fronts.

A exposição no CCBB, com curadoria de Denise Mattar, comporta 125 quadros, que contemplam as várias fases porque passou a arte de Cícero Dias. A primeira fase integra o naïf ao onírico e ao telúrico, muito afim de um surrealismo pioneiro. Seria sua marca registrada: é por ela que este pintor ficaria conhecido. Depois, em meados dos anos 40, passaria por uma fase de transição em que suas origens pernambucanas, que impregnam a primeira fase, aos poucos se tornariam mais formais e tendendo ao abstrato. Este se instalaria com exclusividade, eliminando qualquer traço que lembrasse a primeira fase, dominando por longos anos a arte do pintor. E finalmente ressurgiriam as lembranças e alguns signos nostálgicos, misturados à abstração, numa última fase. Todas elas estão bem representadas na presente exposição, mostrando critério seguro na seleção.

Tendo estreado em 1928 no Rio de Janeiro, Cícero Dias naquela primeira fase fez parte de todo um movimento regionalista, liderado por Gilberto Freyre nos anos 30. A tal ponto que este lhe pediria para ilustrar a hoje histórica, raríssima e valiosíssima primeira edição de Casa grande & senzala. O grande escritor veria a realização de suas ideias – materializadas no universo imaginário de um menino de engenho – na ficção de José Lins do Rego e na pintura de Cícero Dias.

Bem dentro do espírito vanguardista de chocar e escandalizar para renovar, Cícero Dias dedicou-se a pintar um painel de 15 metros de comprimento, à sua maneira inaugural, intitulado Eu vi o mundo…  Ele começava no Recife, que expôs no famoso Salão anual da Escola de Belas Artes, no Rio, em 1931, que, por estar naquele ano sob a direção do arquiteto Lúcio Costa, acolheu os modernistas pela primeira vez. Na impossibilidade de obtê-lo, um vídeo torna-o presente na mostra.

Sem dúvida, trata-se de uma boa oportunidade para ver e rever um grande pintor.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

 
Walnice Nogueira Galvão

7 Comentários

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  1. Segall, Portinari, Cicero Dias, Anita…

    Precisamos que os mordenistas se reencarnem entre nos, pois a geração atual ou esta escondida, ou perdida ou não apareceu ainda.

  2. Picasso com sua arte se

    Picasso com sua arte se tornou  um dos homens mais ricos da França, portanto do mundo.

    Isso aconteceu num tempo em que a arte vinha antes do mercado.

    Ela  determinava os valores.

    O trabalho de um artista tinha seu preço estabelecido em decorrencia de sua importancia artistica.

    Atualmente, tal maxima foi invertida, e´ o “mercado” que determina o valor de uma obra.

    Tudo virou um jogo comercial, onde os artistas passaram ao segundo plano.

    Surgiu então o tal curador.

    E´ comum encontrarmos nos cartazes de uma exposição o nome do curador em maior destaque que o do proprio artista.

    Ele ocupou o lugar do critico e passou a ser o intermediario nesse jogo de mercado.

    A procura do lucro, na maioria das vezes, esta em contradição com a logica da arte.

    Van Gogh nunca vendeu um quadro na vida.

    Cicero Dias, diferentemente do que este post afirma, durante quase toda a sua vida não vendeu um quadro.

    Sei bem disso, porque a maioria de suas antigas aquarelas pertencia ao meu pai, seu amigo desde a juventude.

    Essas obras significavam o que havia de melhor na arte sobre papel, no Brasil e no mundo, mas não eram reconhecidas, não tinham valor.

    Lembro perfeitamente o momento em que o tal “mercado”, resolveu tardiamente “descobrir” Cicero Dias e elevar o preço de suas obras, que não tinham ate então compradores.

    Cicero Dias, ja idoso,  passou a valer fortunas de um dia para o outro.

    Nesse momento cometeu um engano, evidentemente, humanamente justificavel.

    Começou a pintar em grandes telas a oleo, repetições mecanicas de suas pequenas e geniais aquarelas realizadas decadas atras.

    Como os “colecionadores” de hoje acham bom tudo aquilo que custa caro, os oleos de Cicero Dias passaram a ser apreciados e comercializados.

    Estão longe, muito longe da qualidade de suas obras antigas.

    Mas que importancia tem isso?

    Vendem.

  3. Outro grande pintor de Pernambuco

    No Recife, nestes dias, há uma exposição rara de Lula Cardoso Ayres. Quem não estiver na cidade, pegue o carro, o ônibus ou o avião e venha. A exposição vai do pintor ao desenhista (dos melhores que já houve no Brasil), pasando pelo designer revolucionário, pelo fotógrafo, cenógrafo, pesquisador, artista total e absoluto dos seus meios. Para se ter uma ideia, em outro andar do prédio há uma exposição de Matisse, de título Matiise e o Jazz. Há um gosto de decepção para quem sobe pra ver o Matisse.

    Sem qualquer ufanismo, grande é Lula Cardoso Ayres. Uma pálida ideia aqui

    1. Urariano Mota,
      com todo o

      Urariano Mota,

      com todo o respeito a sua opinião, concordo com seus elogios a Lula Cardoso Ayres, mas Matisse é Matisse, um dos maiores artistas de todos os tempos.

      Talvez a tal exposição, que não vi, é que não esteja a sua altura.

      1. Antonio Rodrigues, a qualidade e a restrição

        Antonio Rodrigues

        Eu tomei o cuidado de me restringir ao Matisse da exposição.

        Mas o Matisse  tem outra qualidade: é francês.

        Abração.

        1. Caro Urariano,
          desculpe-me,

          Caro Urariano,

          desculpe-me, novamente, mas Matisse é Matisse, poderia ter nascido em qualquer canto do mundo, que seria Matisse, um dos maiores artistas de todos os tempos.

          Evidentemente, não quero dizer com isso que Lula Cardoso Ayres, como Cicero Dias não sejam grandes artistas,.

          Digo mais, as antigas aquarelas de Cicero Dias estão entre o que existe de melhor em arte sobre o papel em todo o mundo.

          1. Salve, Antonio Rodrigues

            Compreendo o seu ponto de vista. Aliás, é tarefa inglória e insensata comparar artistas.

            É que me preocupa, entre outars coisas, o complexo de inferioridade que temos em relação a outras culturas e artistas.

            Só rendemos homenagem aos nossos quando são reconheidos lá fora por quem julgamos competetente, porque europeu ou norte-americano, claro. Lembro o nosso encanto basbaque ao ver Machado de Assis reconhecido como um dos maiores escritores de todo o mundo, segundo Woody Allen. Ou de ficarmos em dúvida se Tom Jobim é mesmo um dos maiores compositores do século XX. E do espanto que nos invade ao saber que Josué de Castro era um dos três sábios da terra no seu tempo, ao lado de Bertrand Russel e Sartre.

            Mas o seu reconhecimento de Cícero Dias silencia qualquer insinuação.

            Matisse é grande, Cícero Dias é grande, Lula Cardoso Ayres é grande. 

            Abração.

             

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