O jogo da arte, por Rosângela Vig

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

O jogo da arte, por Rosângela Vig

Os quadros mais bonitos são aqueles com que sonhamos quando fumamos cachimbo na cama, mas que jamais pintamos. Mesmo assim, devemos atacá-los por mais incompetentes que nos possamos sentir ante a perfeição indescritível, os gloriosos esplendores da natureza. (VINCENT VAN GOGH, 2007, p.21)

Criador de um traço inconfundível na Arte e um dos principais representantes da pintura mundial, Van Gogh ousou descrever da forma mais correta, a sensação do artista no ato da criação e da produção de sua obra. Em suas pinceladas, não só deixou um pouco de sua vida conturbada, marcada por frustrações e depressão, mas também seus trabalhos, considerados os maiores expoentes das tendências que culminaram na Arte Moderna. A definição do artista revela de modo claro, o êxtase do criador, ao permear uma ideia inicial e dela extrair sua essência, ainda que lhe pareça intangível. E, ainda que seu trabalho pareça perfeito aos olhos de outros, a ele ainda persiste a incerteza quanto à perfeição de seu fruto, seja diante da justeza de seu pensamento inicial ou da própria ideia de perfeição do mundo que o cerca.

Para um artista, cabe a liberdade que lhe permita elevar o pensamento para além de suas próprias ideias e ousar o intangível. Schiller considerou que o artista desafia seus limites ao ultrapassar a própria razão e expressar seu interior. Decodificá-lo o conduz para além da limitação de seu espírito, para ele a liberdade de pensamento leva a um processo reflexivo maior e conduz à construção de significados chegando a um pleno entendimento do jogo da Arte. Conforme diz,

O que significa, entretanto, dizer mero jogo, quando sabemos que de todos os estados do homem, é o jogo e somente ele que o torna completo e desdobra de uma só vez sua natureza dupla? O que chamais limitação de acordo com vossa maneira de apresentar o problema, segundo a minha, que justifiquei com provas, chamo ampliação. Eu diria, pois, o inverso: com o agradável, com o bem, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga. […] A beleza realmente existente é digna do impulso lúdico real; pelo Ideal de beleza, todavia, que a razão estabelece, é dado também como tarefa Ideal de impulso lúdico que o homem deve ter presente em todos os seus jogos. (SCHILLER, 2002, p. 79 -80).

A natureza dupla a que o autor se refere, é uma união entre o estado físico e o estado moral do homem. O físico se refere a um lado selvagem e humano, que sofre a ação de sua natureza, sendo portanto limitado. O outro é ligado à ética e à tomada de consciência. A expressão artística permite que o artista fique livre, que atue sem as limitações da razão, que o leve a aguçar a tomada de consciência e o estado ético age livremente. O estado estético atua nesse campo, em que a mente desimpedida, conduz a pessoa a um processo reflexivo maior para a construção de significados de uma obra. Ou seja, no jogo da Arte, a construção de significados para os códigos permite que o ser humano atue com a mente livre, de maneira ilimitada, trabalhando seu estado lúdico. Ao artista, cabe compreender os códigos de sua mente. Ao espectador, cabe empreender esforços no entendimento de uma obra.

A manifestação dessa natureza dupla humana, provoca uma condição de equilíbrio e de unificação; suaviza a natureza e o espírito; imprime ao mesmo tempo, a sensação de harmonia e de plenitude na pessoa. Schiller estava correto ao afirmar que a limitação nada mais é que ampliação, uma vez que a Arte permite elevar, ao ampliar o campo das ideias e ultrapassar o intangível.

No caso de Van Gogh, embora tenha deixado um legado incomparável, na Arte, o artista demonstrou sua ansiedade por alcançar um ideal de perfeição estética que interpretasse da melhor maneira, o que havia em seu interior. Suas aflições ficaram registradas nas cartas que enviou a seu irmão Theo, nas quais escreveu sobre sua ansiedade por pintar cada vez mais e melhor, o que fez nos últimos anos de sua conturbada vida. Seu espírito criativo e rico contrastou com a vida que levou, repleta de frustrações, tanto no campo da Arte como no afetivo.

Mesmo sentindo-se fracassado como artista, Van Gogh não desistiu de ser pintor e, em vida, produziu mais de oitocentas pinturas e setecentos desenhos. Ainda assim continuou pintando e enveredando sua obra para um estilo único e inconfundível. Sem as imposições da razão, Van Gogh ousou uma estética, cujas linhas estavam mais ligadas ao sentimento do que à realidade, o que contrariava os padrões da época, mas serviu de inspiração para os expressionistas embora alguns considerem sua obra como tal ou ainda pós-impressionista. Mas isso ainda não foi o suficiente para que sua obra tivesse o devido reconhecimento que veio somente alguns anos depois de sua morte.

Referências:

VINCENT VAN GOGH, Grandes Mestres da Pintura, Folha de São Paulo, S.Paulo, 2007.

SCHILLER, Friedrich Von. A Educação Estética do homem. 4a. edição. S.Paulo: Ed. Iluminuras, 2002

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. A visão da luz

    Caros, Luna, amigos,

     

    estávamos, minha filha a eu, a visitar uma grande galeria, uma pinacoteca famosa.

    Lá proliferam trabalhos de mestres itailanos desde antes da Renascença, uma quantidade absurda.

    No entanto, na ocasião em lá estivemos, pelo menos, estavam expostos uns poucos quadros de Van Gogh… dois ou três.

    Num certo moimento, um enorme momento, ficamos de frente para uma pintura dele, muito conhecida, o ‘Campo de trigo com ciprestes’.

    Ali ficamos em pé, até que, num dado instante, minha filha disse com candura peculiar:

    – Pai, está vendo o que vejo?

    – Acho que sim, filha, o quadro é luminoso, emite luz própria, é isso?

    – Sim, disse ela.

    Nada mais dissemos ou comentamos depois. Para mim, fomos como que arrebatados pela beleza, pela beleza.

     

    Com um abraço. 

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador