A arte do equívoco, por Marcia Denser

A arte do equívoco

por Marcia Denser

Uma triste marca da nossa atualidade é o desaparecimento do espírito crítico – e do próprio crítico – da cena pública em todas as áreas do conhecimento, do pensamento e das artes.

Contudo, o critico e poeta Affonso Romano de Sant’Anna, em que pese seu conservadorismo tardio na área política, comprou anos atrás um briga das boas desde que resolveu intervir criticamente nas artes plásticas, algo que nasceu da perplexidade cultural de muitos, daí a publicação em 2003 de Desconstruir Duchamp (Rio, Vieira & Lent) e na mesma linha Que fazer de Ezra Pound? (Imago, 2003).

Ele diz: “Para minha surpresa (e esperança) constatei que em vários países, críticos, intelectuais e artistas também estavam falando sobre o atual niilismo pseudocriativo nas artes plásticas. Isso incluía Lévi-Strauss, Vargas Llosa, Jean Baudrillard, Mircea Eliade, Eric Hobsbawn, Pierre Bourdie, Jameson, Robert Hughes, critico do Times, etc. Já não se tratava, como nos anos 60, de discutir as vanguardas, mas de ir além e fazer uma revisão da modernidade e da confusa pós-modernidade e repensar a crítica da arte dentro da crítica da cultura.”

Porque não se trata de ser contra ou a favor da arte “contemporânea”, mas de mostrar o quanto o termo tem sido usado de forma inapropriada e nenhuma pior que certa “arte contemporânea” que surge como simulacro de globalização, uma forma artística do Pensamento Único, no espaço de júbilo, no qual a periferia tem sido chamada a dar aval ao que a metrópole produz, convencendo-a de que ela também está no centro. Pois é, me engana que eu gosto.

Denuncia-se sobretudo a “anomia” (ausência de regras) que predomina no campo da artes: quando tudo é arte, então nada é arte.

Sobre as diferenças entre modernidade e pós-modernidade, distinguimos o seguinte: a modernidade ocorreu na cultura ocidental entre 1860 e 1950, a pós-modernidade expressou-se a partir de 1950, tendo tido seu apogeu em 1980. A diferença essencial entre modernidade e pós-modernidade é que a modernidade tem consciência do tempo e da história, propõe projetos de cultura, de arte e de país, enquanto a pós-modernidade, eximindo-se da temporalidade histórica demitiu-se de qualquer idéia de projeto, satisfazendo-se com o agora, com a razão cínica, com a aparência, a fragmentação, o pastiche, deixando-se conduzir pelo mercado, renunciando a qualquer esforço de pensar o conjunto de forças.

Por isso, a cultura pós-moderna, por exemplo, nas artes plásticas, se tornaria mais uma cultura de “sintomas” do que de obras, instalando-se comodamente em suas impotências se rejubila por seu niilismo e narcisismo inúteis.

Ao contrário da pós-modernidade, os artistas brasileiros fundadores da nossa modernidade tinham um projeto cultural e um projeto de país. Nos anos 50 e 60, os que repensavam as vanguardas e a revolução no continente, também tinham um projeto estético e um projeto de nação.

As obras de Niemeyer, Portinari, Drummond, Graciliano Ramos, Villa-Lobos, Gilberto Freyre, entre outros, são uma reinvenção do país e uma reinvenção de linguagem. A argúcia de Mário e Oswald de Andrade foi terem percebido que não se devia importar, copiar, transplantar simplesmente a cultura, como hoje a pós-modernidade faz a reboque da globalização. Estamos sendo a lata do lixo da cultura alheia, recebendo e reciclando dejetos culturais gerados na usina do ócio e do lucro capitalista, que concentra a riqueza e globaliza a pobreza.

Enquanto a modernidade operava com o conceito de projeto (o lançar-se à frente), a pós-modernidade se compraz com eventos instantâneos como fogos de artifício. Produz obras fugazes, confundidas com os detritos do tempo. O brilho é rápido, nascido da improvisação. Ocorre o culto da aparência revisitada de revistas tipo Caras, e a figuração de uma Quem, que não é sujeito, senão um objeto que pode ser metonimicamente trocado por qualquer outro no palco do instante.

Os artistas substituíram o pacto com o público por um pacto exclusivo, feito apenas entre seus pares. E não apenas excluíram o público, mas até o hostilizam. É precisa fazer um diagnóstico disso que deixou de ser um fato estético e artístico para se tornar commodity ou um produto da sociedade do espetáculo, um pastiche, um passivo sintoma da anomia ética e estética.

A cultura agora é identificada como veículo ideológico do neoliberalismo. Como ressalta Otília Arantes reportando-se a Debord, nesse processo que coagiu o espetáculo como forma de resistência para transformá-lo em forma de controle social, a cultura não é a contrapartida das práticas mercadológicas, mas é a parte decisiva do mundo dos negócios, aliás é o Grande Negócio!

O mimetismo cultural solapa as iniciativas de acúmulo do conhecimento e da construção da nação. Um bom exemplo: a análise do ideário do planejamento urbano no Brasil configura “idéias fora do lugar” como  “um lugar fora das idéias”, isto é, uma parte da realidade urbana – ilegal, oculta, ignorada, que não é objeto de teorias, leis, planos, gestão, ao passo que a cidade do mercado hegemônico, a cidade oficial mimetiza o debate internacional, a matriz postiça não dá conta da realidade concreta, ou, como escreve Sergio Buarque de Holanda, as idéias vindas de fora asfixiam nossa “vida verdadeira”.

E a literatura absolutamente não está fora deste debate, das mesmas imposições mercadológicas e categorias fajutas, mas dada sua natureza, de palavra, de sinal nu e cru, de veículo direto do pensamento, sem alusões,  nem mediações para além da língua comum, ela praticamente impossibilita a fraude estética.

Salvo o auto-engano e a fascinação das curadorias fajutas, mas esta é uma outra história que fica para outra vez.

 

Redação

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