Adaptações, por Walnice Nogueira Galvão

Adaptações, por Walnice Nogueira Galvão

Uma questão que sempre suscita debate é a da legitimidade das adaptações de uma arte para outra. Assim vai-se discutindo a filmagem de romances, quase sempre comparando-se pejorativamente o filme ao livro. Mas essa colocação é equivocada: trata-se de linguagens, cada arte tem a sua e essa deve ser a prioridade.

Algumas adaptações brasileiras não só não desvirtuam como honram o livro em que se basearam. Não são muitas, mas entre elas se destacam duas do Cinema Novo, Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos/Graciliano Ramos, e A hora e vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos/Guimarães Rosa. Este último, aliás, permanece como a imbatível e mais fiel adaptação de um difícil autor. Bem mais tarde, iria para esse seleto panteão A hora da estrela, de Susana Amaral/Clarice Lispector. Todos impecáveis.

E entre os estrangeiros? Clássico francês filmado por um alemão, o primeiro volume dos sete que constituem Em busca do tempo perdido de Proust foi adaptado por Volker Schölendorf (Um amor de Swann), com resultados de alta fidelidade aos requintados ambientes e figurinos da obra, mas também mostrando compreensão apurada dos intrincados nós da trama. Proust é uma fonte reconhecidamente quase hermética, enquanto outros autores e livros têm sido filmados com resultados apenas corretos, não arrebatadores como nesse caso.

É lícito alterar radicalmente, por exemplo, o destino dos personagens? Se provêem de clássicos milenares, dos fundamentos da civilização? Tróia é um filme visualmente impressionante a que se assiste com prazer. Quem não se sente abalado – embora saiba que é efeito visual devido ao computador – ao ver na tela os mil navios no mar Egeu que a beleza de Helena tinha o dom de fazer zarpar? Marca presença um Aquiles lindo e musculoso, além de simpático, vivido por Brad Pitt. Até a cólera de Aquiles, razão e motivo de toda essa saga – o furor guerreiro, a sanha assassina – aparecem muito bem.

Claro que qualquer filme tem um esquema propriamente fílmico que imanta tudo: um herói, um casal central, um vilão que é o antagonista, tanto quanto um começo, meio e fim – que faltam na Ilíada.

Mas as mudanças no enredo… A morte de Aquiles pelas mãos de Páris dentro de Tróia em chamas baseia-se numa interpolação de nada menos que mil anos depois e é um absurdo. Aquiles não morre na Ilíada. Ele, que prefere a glória à vida longa, parte diretamente para a posição de maior heroi da Grécia, modelo de virtudes e padrão para as futuras gerações. E há elementos tomados à Odisséia, já que o conto do cavalo de Troia está lá e não na Ilíada.

O espectador sempre pode se divertir – como estamos fazendo aqui – ao tentar adivinhar as razões que levaram o filme a se arriscar em tamanhas transformações, às vezes tomando liberdades com episódios chancelados pelo saber ou pela tradição.

Outro caso é o do criador do Facebook, em A rede social. No filme, os adversários de Mark Zuckerberg, dos quais ele rouba a invenção mas com quem fará um acordo, pagando-lhes milhões para ficar dono único, são dois wasps, altos, bem apessoados e bem vestidos, atléticos, de família rica, educadíssimos, típicos de Harvard. Visivelmente desprezam o arrivista, mais sabido que eles, explorado no filme como surrado estereótipo étnico: esperto, financista, enfezado, narigudo e de cabelo crespinho. O espectador – fácil – identifica-se com ele e odeia os dois esnobes de classe alta. Só que na vida real o prejudicado foi um brasileiro, que se chama Eduardo Saverin e passou a viver em Singapura com o dinheirão que ganhou no lance, que aliás incluiu uma cláusula de sigilo. Dá para entender porque o filme fraudou o dado histórico: como seria possível decidir as simpatias entre o protagonista e um “latino” sem eira nem beira, entre dois oprimidos enfim? A falsificação abriu o abismo social entre as duas partes e garantiu a adesão ao heroi-ladrão. Hoje, Saverin é um dos bilionários listados pela revista Forbes. O picante do caso é que o brasileiro também cabe no mesmo estereótipo de Mark Zuckerberg, o que deixaria o filme em maiores palpos de aranha ainda …  

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da USP

Walnice Nogueira Galvão

4 Comentários

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  1. Tem mais casos

    O difícil romance Lavoura Arcaica foi muito bem adaptado para o cinema. Brilhante interpretação de Selton Mello e bela direção de Luiz Fernando Carvalho, que atualmente dirige a novela das oito.

  2. “Só que na vida real o

    “Só que na vida real o prejudicado foi um brasileiro, que se chama Eduardo Saverin e passou a viver em Singapura com o dinheirão que ganhou no lance, que aliás incluiu uma cláusula de sigilo. Dá para entender porque o filme fraudou o dado histórico: como seria possível decidir as simpatias entre o protagonista e um “latino” sem eira nem beira, entre dois oprimidos enfim?”:

    O governo dos EUA JAMAIS permitiria um filme que abordasse simpaticamente um cara que se mandou pra Singapura assim que fez a venda do FaceBook pra nao pagar impostos e cuja cidadania americana foi sumariamente cancelada depois disso.

    1. Por sinal, ele eh

      Por sinal, ele eh oficialmente declarado com persona non grata pelo governo aqui.

      O que ele fez foi legal, so isso.  Nao foi eetico.

      Essa putaiada nunca me ofereceu um muito obrigado, mas quando chega a bilionarios o tratamento eh bem diferente, nao acha?

  3. De fatro, não é tarefa fácil,

    De fato, não é tarefa fácil, e sempre suscita muitos questionamentos. Para mim, por exemplo, O Senhor dos Anéis, do multipremiado diretor Peter Jackson, foi a melhor adaptação da história. Porém, Christopher Tolkien, filho do escritor J. R. R. Tolkien, viu com péssimos olhos o filme.

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