Haroldo de Campos e O Neolibelês

O Poeta Haroldo de Campos

 

Dez anos sem Haroldo de Campos, poeta

que no concreto do espaço expôs ausências e rupturas

fissuras e contra-dicções

na procura de trazer à luz alteridades e marginalidades

 

 

circum-lóquio
(pur troppo non allegro)
sobre o neoliberalismo terceiro-mundista

(Haroldo de Campos)

 

laisser faire laisser passer

  1.
o neoliberal
neolibera:
de tanto neoliberar
o neoliberal
neolibera-se de neoliberar
tudo aquilo que não seja neo (leo)
libérrimo:
o livre quinhão do leão
neolibera a corvéia da ovelha

   2.

o neoliberal 
neolibera 
o que neoliberar
para os não-neoliberados:
o labéu?
o libelo?
a libré do lacaio?
a argola do galé?
o ventre-livre?
a bóia-rala?
o prato raso?
a comunhão do atraso?
a ex-comunhão dos ex-clusos?
o amanhã sem fé?
o café requentado?
a queda em parafuso?
o pé de chinelo?
o pé no chão?
o bicho de pé?
a ração da ralé?

   3.
no céu neon
do neoliberal
anjos-yuppies
bochechas cor-de-bife
privatizam
a rosácea do paraíso
de dante
enquanto lancham
fast-food
e super
(visionários) visam
com olho magnânimo
as bandas
(flutuantes)
do câmbio:

enquanto o não
– neoliberado
come pão 
com salame
(quando come)
ele dorme
sonhando
com torneiras de ouro
e a hidrobanheira cor
de âmbar
de sua neo-
mansão em miami

     4.

o centro e a direita
(des)conversam
sobre o social
(questão de polícia):
o desemprego um mal
conjuntural
(conjetural)
pois no céu da estatís-
tica o futuro
se decide pela lei
dos grandes números

   5.
o neoliberal
sonha um mundo higiênico:
um ecúmeno de ecônomos
de economistas e atuários
de jogadores na bolsa
de gerentes
de supermercado
de capitães de indústria
e latifundários de 
banqueiros
– banquiplenos ou
banquirrotos
(que importa?
dede que circule
autoregulante
o necessário
plusvalioso
numerário)
um mundo executivo
de mega-empresários
duros e puros
mós sem dó
mais atento ao lucro
que ao salário
solitários (no câncer)
antes que solidários:
um mundo onde deus
não jogue dados
e onde tudo dure para sempre
e sempremente nada mude
um confortável
estável
confiável
mundo contábil.

   6.
(a
contramundo
o mundo-não
-mundo cão-
dos deserdados:
o anti-higiênico
gueto dos
sem-saída
dos excluídos pelo
deus-sistema
cana esmagada
pela moenda
pela roda dentada
dos enjeitados:
um mundo-pêsames
de pequenos
cidadãos-menos
de gente-gado
de civis
sub-servis
de povo-ônus
que não tem lugar marcado
no campo do possível
da economia de mercado
(onde mercúrio serve ao deus mamonas)

   7.
o neoliberal
sonha um admirável
mundo fixo
de argentários e multinacionais
terratenentes terrapotentes coronéis políticos
milenaristas (cooptados) do perpétuo
status quo:
um mundo privé
palácio de cristal
à prova de balas:
bunker blau
durando para sempre – festa estática
(ainda que sustente sobre fictas
palafitas
e estas sobre uma lata
de lixo)

 

Redação

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  1. Já que estamos falando de

    Já que estamos falando de poesia panfletária, vai aqui mais uma bomba:

     

    Vinícius de Moraes – Operário em Construção

    E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
    – Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
    E Jesus, respondendo, disse-lhe:
    – Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
    Lucas, cap. IV, vs. 5-8.

    Era ele que erguia casas
    Onde antes só havia chão.
    Como um pássaro sem asas
    Ele subia com as casas
    Que lhe brotavam da mão.
    Mas tudo desconhecia
    De sua grande missão:
    Não sabia, por exemplo
    Que a casa de um homem é um templo
    Um templo sem religião
    Como tampouco sabia
    Que a casa que ele fazia
    Sendo a sua liberdade
    Era a sua escravidão.

    De fato, como podia
    Um operário em construção
    Compreender por que um tijolo
    Valia mais do que um pão?
    Tijolos ele empilhava
    Com pá, cimento e esquadria
    Quanto ao pão, ele o comia…
    Mas fosse comer tijolo!
    E assim o operário ia
    Com suor e com cimento
    Erguendo uma casa aqui
    Adiante um apartamento
    Além uma igreja, à frente
    Um quartel e uma prisão:
    Prisão de que sofreria
    Não fosse, eventualmente
    Um operário em construção.

    Mas ele desconhecia
    Esse fato extraordinário:
    Que o operário faz a coisa
    E a coisa faz o operário.
    De forma que, certo dia
    À mesa, ao cortar o pão
    O operário foi tomado
    De uma súbita emoção
    Ao constatar assombrado
    Que tudo naquela mesa
    – Garrafa, prato, facão –
    Era ele quem os fazia
    Ele, um humilde operário,
    Um operário em construção.
    Olhou em torno: gamela
    Banco, enxerga, caldeirão
    Vidro, parede, janela
    Casa, cidade, nação!
    Tudo, tudo o que existia
    Era ele quem o fazia
    Ele, um humilde operário
    Um operário que sabia
    Exercer a profissão.

    Ah, homens de pensamento
    Não sabereis nunca o quanto
    Aquele humilde operário
    Soube naquele momento!
    Naquela casa vazia
    Que ele mesmo levantara
    Um mundo novo nascia
    De que sequer suspeitava.
    O operário emocionado
    Olhou sua própria mão
    Sua rude mão de operário
    De operário em construção
    E olhando bem para ela
    Teve um segundo a impressão
    De que não havia no mundo
    Coisa que fosse mais bela.

    Foi dentro da compreensão
    Desse instante solitário
    Que, tal sua construção
    Cresceu também o operário.
    Cresceu em alto e profundo
    Em largo e no coração
    E como tudo que cresce
    Ele não cresceu em vão
    Pois além do que sabia
    – Exercer a profissão –
    O operário adquiriu
    Uma nova dimensão:
    A dimensão da poesia.

    E um fato novo se viu
    Que a todos admirava:
    O que o operário dizia
    Outro operário escutava.

    E foi assim que o operário
    Do edifício em construção
    Que sempre dizia sim
    Começou a dizer não.
    E aprendeu a notar coisas
    A que não dava atenção:

    Notou que sua marmita
    Era o prato do patrão
    Que sua cerveja preta
    Era o uísque do patrão
    Que seu macacão de zuarte
    Era o terno do patrão
    Que o casebre onde morava
    Era a mansão do patrão
    Que seus dois pés andarilhos
    Eram as rodas do patrão
    Que a dureza do seu dia
    Era a noite do patrão
    Que sua imensa fadiga
    Era amiga do patrão.

    E o operário disse: Não!
    E o operário fez-se forte
    Na sua resolução.

    Como era de se esperar
    As bocas da delação
    Começaram a dizer coisas
    Aos ouvidos do patrão.
    Mas o patrão não queria
    Nenhuma preocupação
    – “Convençam-no” do contrário –
    Disse ele sobre o operário
    E ao dizer isso sorria.

    Dia seguinte, o operário
    Ao sair da construção
    Viu-se súbito cercado
    Dos homens da delação
    E sofreu, por destinado
    Sua primeira agressão.
    Teve seu rosto cuspido
    Teve seu braço quebrado
    Mas quando foi perguntado
    O operário disse: Não!

    Em vão sofrera o operário
    Sua primeira agressão
    Muitas outras se seguiram
    Muitas outras seguirão.
    Porém, por imprescindível
    Ao edifício em construção
    Seu trabalho prosseguia
    E todo o seu sofrimento
    Misturava-se ao cimento
    Da construção que crescia.

    Sentindo que a violência
    Não dobraria o operário
    Um dia tentou o patrão
    Dobrá-lo de modo vário.
    De sorte que o foi levando
    Ao alto da construção
    E num momento de tempo
    Mostrou-lhe toda a região
    E apontando-a ao operário
    Fez-lhe esta declaração:
    – Dar-te-ei todo esse poder
    E a sua satisfação
    Porque a mim me foi entregue
    E dou-o a quem bem quiser.
    Dou-te tempo de lazer
    Dou-te tempo de mulher.
    Portanto, tudo o que vês
    Será teu se me adorares
    E, ainda mais, se abandonares
    O que te faz dizer não.

    Disse, e fitou o operário
    Que olhava e que refletia
    Mas o que via o operário
    O patrão nunca veria.
    O operário via as casas
    E dentro das estruturas
    Via coisas, objetos
    Produtos, manufaturas.
    Via tudo o que fazia
    O lucro do seu patrão
    E em cada coisa que via
    Misteriosamente havia
    A marca de sua mão.
    E o operário disse: Não!

    – Loucura! – gritou o patrão
    Não vês o que te dou eu?
    – Mentira! – disse o operário
    Não podes dar-me o que é meu.

    E um grande silêncio fez-se
    Dentro do seu coração
    Um silêncio de martírios
    Um silêncio de prisão.
    Um silêncio povoado
    De pedidos de perdão
    Um silêncio apavorado
    Com o medo em solidão.

    Um silêncio de torturas
    E gritos de maldição
    Um silêncio de fraturas
    A se arrastarem no chão.
    E o operário ouviu a voz
    De todos os seus irmãos
    Os seus irmãos que morreram
    Por outros que viverão.
    Uma esperança sincera
    Cresceu no seu coração
    E dentro da tarde mansa
    Agigantou-se a razão
    De um homem pobre e esquecido
    Razão porém que fizera
    Em operário construído
    O operário em construção.

  2. Viva Haroldo de Campos!

    Lindo, Fernando. Gracias por compartilhar essa maravilha.

     

    CANTO 45 

     

    Ezra Pound

     

    Com Usura

     

    Com usura nenhum homem tem casa de boa pedra

    blocos lisos e certos

    que o desenho possa cobrir,

    com usura

    nenhum homem tem um paraíso

    pintado na parede de sua igreja

    harpes e luthes

    ou onde a virgem receba a mensagem

    e um halo se irradie do entalhe,

    com usura

    ninguém vê Gonzaga seus herdeiros e concubinas

    nenhum quadro é feito para durar e viver conosco,

    mas para vender, vender depressa,

    com usura, pecado contra natureza,

    Teu pão é mais e mais feito de panos podres

    teu pão é um papel seco,

    sem trigo do monte, sem farinha pura

    com usura o traço se torna espesso

    com usura não há clara demarcação

    e ninguém acha lugar para sua casa.

    Quem lavra a pedra é afastado da pedra

    o tecelão é afastado do tear

    COM USURA

    a  lã não chega ao mercado

    a ovelha não dá lucro com a usura

    A usura é uma praga, a usura

    embota a agulha nos dedos da donzela

    tolhe a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo

    não veio da usura

    Duccio não veio da usura

    nem Pier della Francesca, nem Zuan Bellini veio

    nem Usura pintou “La Callunia”.

    Angelico não veio da usura; Ambrogio Praedis não veio,

    Nenhuma igreja de pedra lavrada, com inscrição Adamo me fecit.

    Nenhuma St. Trophime

    Nenhuma Saint Hilaire

    Usura enferruja o cinzel

    Enferruja a arte e o artesão

    Rói o fio no tear

    Mulher alguma aprende a urdir o ouro em sua trama;

    A usura é um câncer no azul; o carmesim não é bordado,

    O esmeralda não encontra um Memling.

    Usura mata a criança no ventre

    Detém o galanteio do moço

    Ela trouxe paralisia ao leito, jaz

    entre noivo e noiva

    CONTRA NATURAM

    Putas para Elêusis

    Cadáveres no banquete

    A comando da usura.

     

    Tradução:  Haroldo Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, in EZRA POUND POESIA . Ed. Hucitec.

  3. cultura gera cultura

    fui pesquisar o termo corvéia e achei os nomes dos impostos de antigamente, em suma nós os servos estamos condenados desde então a sustentar os senhores feudais e os padrecos associados, e ambos nos garantem que se entrararem em guerra com seus vizinhos nós seremos reponsáveis por defendê-los.

     

    Talha, Corvéia e Banalidades
    As principais obrigações dos servos na época do feudalismo

    talha, corvéia e banalidades
    Servos (camponeses) trabalhando no feudo: muitas obrigações devidas aos senhores feudais

     

    Introdução

    Na época do feudalismo, durante a Idade Média, os servos (camponeses) habitavam as terras dos senhores feudais. Em troca, eram obrigados a pagar taxas em forma de trabalho e mercadorias. Quase tudo que produziam acabava indo para as mãos dos senhores feudais. Para os servos, sobrava apenas o pouco para a sobrevivência da família.

    Talha

    Era uma obrigação pela qual o servo deveria passar, para o senhor feudal, metade de tudo que produzia nas terras que ocupava no feudo. Se colhesse 20 quilos de batata, 10 quilos deveriam ser separados para o pagamento da talha. 

    Corvéia

    Esta obrigação correspondia ao pagamento através de serviços prestados nas terras ou instalações do senhor feudal. De 3 a 4 dias por semana, o servo era obrigado a cumprir diversos trabalhos como, por exemplo, fazer a manutenção do castelo, construir um muro, limpar o fosso do castelo, limpar o moinho, etc. Podia também realizar trabalhos de plantio e colheita no manso senhorial (parte das terras do feudo de uso exclusivo do senhor feudal).

    Banalidades

    Esta obrigação correspondia ao pagamento pela utilização das instalações do castelo. Se o servo precisasse usar o moinho ou o forno, deveria pagar uma taxa em mercadoria para o senhor feudal.

    Outras obrigações

    Além da talha, da corvéia e das banalidades, os servos também deviam pagar outras taxas e impostos. Havia a mão-morta, que era uma espécie de taxa que o servo devia pagar ao senhor feudal para permanecer no feudo quando o pai morria. Havia também o Tostão de Pedro (10% da produção), que o servo devia pagar à Igreja de sua região.

    apenas essa merreca, por nosso direito de poder viver!!!

  4.  
    Operário do mar (Poema em

     

    Operário do mar (Poema em prosa da obra Sentimento do mundo), de Carlos Drummond de Andrade

     

     

    Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

  5. Não conhecia esse. Belíssimo.

    Não conhecia esse. Belíssimo.  Fosse um manifesto anti liberal não seria tão contundente.

    A bossa nova é phoda, mas a poesia é mais.

    (falar em Liberal, alguém tem notícia do  Aliança?)

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