A constituição é inconstitucional, pois nossos juízes não são gregos frígios, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Nós já conhecemos as deficiências grotescas do judiciário que temos. Agora devemos debater o Judiciário que queremos.

A constituição é inconstitucional, pois nossos juízes não são gregos frígios

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Um Decreto de 334 aC ou 333 aC sobre a demarcação e o registro de terras públicas, da colônia grega de Zeléia (Frígia, Ásia Menor), prescreve a seguinte maneira para a solução dos conflitos:

“Um total de onze cidadãos constituirá o corpo de juízes, eleitos pelo povo entre aqueles que não têm a posse de nenhuma terra pública. Dos onze, três deverão ser designados para atuar como advogados. E os juízes e os advogados deverão jurar por Ártemis, de acordo com a lei. E os magistrados deverão mandar inscrever em uma estela o decreto e as multas a serem pagas com relação aos terrenos, e esta deverá ser erigida no santuário de Apolo Pítio. Os magistrados deverão gastar o dinheiro em templos públicos e naquilo que a pólis precisar.” (Leis da Grécia Antiga, Ilas Arnautoglou, Odysseus Editora Ltda., São Paulo, 2003, p. 124)

Esse decreto contém alguns princípios jurídicos que nós conhecemos muito bem.

As disputas acerca da demarcação e registro de terras públicas não podiam ser resolvidos por quem tinha a posse de terras públicas. A Lei presume que aqueles que estavam na mesma situação dos litigantes não teriam isenção de ânimo para julgar. O bem jurídico tutelado por esse aspecto da norma é evidentemente a necessidade das decisões judiciais serem imparciais. Caso contrário elas causarão novos conflitos sem pacificar aqueles que deveriam ser resolvidos.

Princípio semelhante é tutelado pela legislação brasileira e internacional.

Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.”

Essa garantia do art. X, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem validade e eficácia constitucional no Brasil por força do art. 5º, LXXVIII, §2º e §3º, da CF/88.

Os juízes e advogados encarregados de estudar a resolver o conflito eram escolhidos no mesmo ato. Inexistia qualquer distinção de status entre juízes e advogados. Todos deveriam jurar à mesma deusa.

“Ártemis caçadora, selvagem senhora de feras” (Ilíada, Canto XXI, 470). Foi assim que Homero se referiu à deusa mencionada na Lei de Zeléia. Obrigados a jurar por Ártemis, os juízes e advogados encarregados do caso profeririam uma decisão garantida por aquela deusa. Nada poderia ser mais apropriado, pois as terras públicas somente poderiam estar sob a tutela protetora da vida selvagem.

Entre nós, a ausência de hierarquia entre advogados e juízes é garantida pelo art. 133, da CF/88. Nenhuma divindade tutela o processo e seu resultado. Apenas a própria Constituição Cidadã deve ser considerada como fonte da segurança jurídica outorgada à solução dos conflitos que ela mesmo disciplinou ao prescrever os princípios do devido processo legal.

Ártemis era a deusa da vida selvagem, mas é óbvio que a selvageria não tinha lugar nas disputas entre os gregos. Isso explica a necessidade da decisão ser pública e publicada no templo do irmão de Ártemis. Apolo Pítio, ou seja, aquele que matou Píton (serpente que ameaçava Leto, uma divindade associada ao recato e à modéstia), tinha vários atributos dentre os quais podemos destacar quatro que eram e, de certa maneira, ainda são exigidos quando da solução dos conflitos: perfeição, harmonia, equilíbrio e razão.

No Brasil a publicidade das decisões judiciais é obrigatória (art. 93, IX, da CF/88). Não existem decisões secretas proferidas por tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII, da CF/88). Todos os cidadãos têm o direito de conhecer os fundamentos e os dispositivos das decisões judiciais, inclusive e principalmente aqueles que foram partes nos processos. A segurança jurídica não emana da publicação das sentenças num templo, mas na divulgação delas por todos os meios conhecidos (impressão no Diário Oficial e divulgação no website do Tribunal).

Imparcialidade judicial, respeito aos advogados, publicidade, autoridade e proteção das decisões judiciais proferidas com o intuito de pacificar a sociedade com perfeição, harmonia, equilíbrio e razão.

O método do Direito entre nós não é muito diferente daquele que existia entre os gregos da Ásia Menor em 334 aC ou 333 aC. Todavia, os juízes de Zeléia não eram especialistas e sim apenas cidadãos que se colocavam sob a proteção dos deuses para proferir decisões isentas que seriam conhecidas e respeitadas por seus iguais.

Essa diferença é essencial. Mas ela não é capaz de, por si só, explicar um fato curioso. Apesar de serem especialistas obrigados a cumprir e fazer cumprir a legislação alguns juízes brasileiros são simplesmente incapazes de respeitar os princípios constitucionais. Digo isso pensando especificamente na decisão que censurou um vídeo do Porta dos Fundos.

Ao tentar pacificar a sociedade reprimindo a liberdade de consciência e de expressão, o TJRJ apenas conseguirá uma coisa: estimular a violência política dos fanáticos evangélicos contra os artistas. Essa decisão irracional, desequilibrada e, sobretudo inconstitucional, certamente não conseguirá pacificar a sociedade brasileira. Ela apenas submeterá o próprio judiciário ao escrutínio público.

Outra diferença importante entre os nossos juízes e os de Zeléia é evidenciada pela última frase do texto transcrito: Os magistrados deverão gastar o dinheiro em templos públicos e naquilo que a pólis precisar.  No Brasil os juízes são extremamente gananciosos. Eles recebem salários acima do teto, aposentadorias abaixo moralidade e penduricalhos odiosos. Quando o Estado fica sem dinheiro (como ocorreu com o Rio de Janeiro) eles ajuízam medidas judiciais para sequestrar verbas públicas a fim de garantir seus pagamentos sem nenhuma consideração pelo interesse público. A distribuição de justiça no Brasil não é um fim em si mesmo, mas um meio para garantir vida boa e farta para os juízes.

Nós já conhecemos as deficiências grotescas do judiciário que temos. Agora devemos debater o Judiciário que queremos.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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