A crise brasileira: a emergência da nova direita e a decadência da direita tradicional, por Luccas Eduardo Maldonado

Um lumping, cultivado nessa ideologia de direita, começou a ser construído nas manifestações de 2013 e ele seria articulado para determinados fins nos anos seguintes.

Sugestão de Roberto Bitencourt da Silva

Publicado originalmente em La Onda

A crise brasileira: a emergência da nova direita e a decadência da direita tradicional

Por Luccas Eduardo Maldonado

Quando Bolsonaro foi eleito, questionei, em um texto anteriormente publicado neste blog, o processo de depravação da democracia brasileira que possibilitou a ascensão de um idiota. Jabuti não sobe em árvore por si só, certo? No mundo animal talvez, porém tal ditado não funciona na política. Em determinados momentos, o jabuti sobe na árvore, não porque desenvolve as habilidades de um escalador, mas porque a própria árvore encolhe ao seu mínimo tamanho. É isso que possibilitou a escalada do cágado Bolsonaro ao topo da pequena árvore brasileira. Pretendo em uma série de três textos dar conta do processo que fez possível essa ocasião. Nesse primeiro escrito, destaco as transformações da direita e a profunda crise institucional que começou a emergir no Brasil no final de 2013.

Desde 2013, desdobrou-se um processo de degeneração das instituições estatais e da sociedade civil brasileira responsáveis pela democracia – não estou falando em fraude eleitoral ou outro processo de deturpação no pleito, o problema é mais complexo. O Brasil tem uma longa história de instabilidade política. No século XX, há uma sequência de golpes. A existência de sete constituições desde a Independência dá o tom de como é inverossímil crer em manutenção jurídico-institucional. Houve uma certa garantia com a fim da ditadura militar em 1985. Foi o período mais longo na história brasileira. Contudo, este agora alcançou seus limites e flerta em se resolver com uma anomia diante dos desafios postos pela crise internacional do corona-vírus. A resolução obviamente se encaminha para saídas autoritárias. Começam a emergir rachaduras nas nossas instituições que parecem irreparáveis a curto prazo.

Ao se iniciar o segundo mandato de Dilma Rousseff em 1° janeiro de 2015, uma mudança de rumo expressiva ocorreu na política econômica: de um keynesianismo fraco, visando a redução dos juros e o estimulo do crédito a setores estratégicos, a uma ortodoxia aberta. A saída do acadêmico Guido Mantega para a entrada do banqueiro Joaquim Levy no Ministério da Fazenda deu o tom da virada. Pouco antes o candidato derrotado no pleito de 2014 contestara o resultado das eleições, Aécio Neves realizara o primeiro ataque às instituições. A situação mostrava-se mais como um choro de uma criança mimada do que uma agressão de fato, contudo já era o começo da relativização. O primeiro dobrar da direita que renunciava a ordem democrática, inclusive realizada por um partido que tem o termo social-democrata em seu nome, mas que nada cultiva da II Internacional. O Brasil é muito confuso.

Não pretendo entrar em detalhes técnico-econômicos, pouco importa para o objetivo desse texto tais precisões, até mesmo porque o novo titular da pasta ainda estava muito distante do neoliberalismo visceral que seria assumido pelos presidentes conseguintes. A questão fundamental é que a economia que já não ia bem continuou a deteriorar-se e que um programa político vitorioso nas urnas era renegado, gritando-se uma mensagem antidemocrática nas orelhas dos milhões de votantes. Era o “estelionato eleitoral”, como alguns expoentes da direita e outros da esquerda denominaram. Processo semelhante aconteceu com Tony Blair na Inglaterra dos anos 2000 e o resultado já sabemos qual foi para o trabalhismo, porém há de se ter clareza: a história não se repete, apesar de poder ser muito semelhante. Na Europa, uma traição se resolveu com rearticulações de forças; no Brasil, uma traição foi só um ponto de um processo mais amplo que cindiu a ordem institucional, demonstrando a ausência de coesão do país latino-americano.

Nesse movimento, o Partido dos Trabalhadores (PT) gerou uma cisão dentro da sua própria coalização. O governo defrontou as suas bases e afirmou das alturas palacianas: o voto não é decisivo para o que será feito, o determinante foram os grupos de pressão do patronato brasileiro. Há de se considerar também que a não realização dessa opção poderia significar a perda do apoio de um grupo fundamental para o exercício do poder, dispondo um caminho de ação muito restrito para a mandatária. Entretanto, não se julga a história por aquilo que não aconteceu. Desmobilizou-se, assim, uma parte fundamental da sua base de apoio que poderia ter sido essencial, somente uma parcela muito fiel saiu às ruas em sua defesa mais tarde. Como Alexander Kerensky na Revolução de Outubro, solicitou apoio à população e ninguém veio em seu socorro. Pressionado, o Executivo tomou uma medida que dava a primeira grande estocada na República. A partir de então, foi a derrocada e só a direita deu as cartas.

Isso foi um terreno fértil para o crescimento dos grupos de direita que até então estavam adormecidos ou secundarizados. Descrevo direita como ideologia organizada articulada em aparelhos da sociedade civil. A ascensão de Bolsonaro, um deputado do baixo clero conhecido por suas declarações polêmicas e violentas dadas em programas de televisão de baixa qualidade, tem a ver com as manifestações de rua que começaram a acontecer no Brasil em junho de 2013. Foi carregado por uma das forças que dali emergiu e que se espraiou para a parte dominante do eleitorado brasileiro, conquistando assombroso apoio popular no final de 2018. Há muito uma liderança de direita não tinha tamanha popularidade no Brasil.

Iniciada com as esquerdas de partido e movimento social, as manifestações de 2013 tomaram corpo monumental ao atrair uma série de pessoas de distintos espectros ideológicos. Rapidamente essa nova massa tomou as ruas para si. À direita ou à esquerda havia uma predominância muito grande de universitários, contudo esses não souberam lidar com a situação. As do segundo momento se caracterizaram por um absoluto afastamento da política e por cultivar uma ode ao consumo, que progressivamente foi se convertendo em um anticomunismo, que na realidade era um antiesquerdismo, em pleno século XXI. Estavam longe de serem consequentes. Anunciavam meramente consignas antipolíticas, inspiradas em um discurso anticorrupção, problema realmente histórico e generalizado do país. Olhavam os cargos legislativos e executivos e viam a representação da degeneração. Pensavam em uma instituição quando deviam se voltar para um problema. Rapidamente o PT se tornou a encarnação de todo o mal. Começava a se esboçar uma condição favorável para um aventureiro e diversos quiseram sê-lo. Por que o mais grotesco entre eles saiu vitorioso?

As massas de esquerda não estavam muito diferentes, não souberam reagir, permaneceram irresolutas com a virada e foram arrastadas pela história. O predomínio das pautas identitárias nessa juventude, centradas quase exclusivamente em questões quantitativas de representatividade, deram um sentido pobre à política diante do desafio do tempo presente. Tinham uma dimensão ética mais rica do que qualquer ator da direita, no entanto sua ética não valeu de nada nessa luta, pois careciam de instrumentalização e isso a nova direita soube fazer a longo prazo. A esquerda partidária que estava no poder da mesma maneira foi arrastada, reagindo menos ainda. As outras esquerdas, ou não existiam politicamente, vivendo em pequenos grupos no subterrâneo da universidade pública e agora no Youtube, ou tomavam posições ainda mais inocentes, pedindo insurreição em pleno período de reação colocando assim água no moinho da direita.

Um lumping, cultivado nessa ideologia de direita, começou a ser construído nas manifestações de 2013 e ele seria articulado para determinados fins nos anos seguintes. O seu caráter espontâneo dos primeiros atos seria logo cooptado. Organizações civis de direita (Movimento Brasil Livre, Revoltados Online etc.) foram moldadas com o fim de dar sentido a essas manifestações – o financiamento desses grupos de longe é uma das maiores questões do tempo presente, quem colocou dinheiro e tornou possível esses encaminhamentos? Mais precisamente, esse discurso antidemocrático, que vivia no subterrâneo social, articulou-se na sociedade civil e foi se tornando hegemônico. Partidos nanicos também se adaptaram para receber essa nova ideologia que vinha dos esgotos das ruas.

A direita tradicional vivia até então em torno de um fisiologismo partidário, meramente se contentando com os cargos que o partido dominante oferecia, ou como antagonista secundarizado sem capacidade de ganhar qualquer pleito. De fato, a antiga direita foi a maior derrotada ao longo de todo esse processo histórico. Perdeu seu lugar e foi depositada na lata de lixo da história. Deixou a responsabilidade da defesa institucional para a esquerda, parte fundamental do seu espaço ideológico tradicional era renegado, e deixou seu espaço parlamentar para a extrema-direita, tornando-se nada ao mesmo tempo em que o lumping se institucionalizava. Em regime representativo, se não tem cadeiras, não se é nada. Mostra-se interessante como foi se construindo uma traição intraclasse nesse processo. A antiga direita antagonista traiu seus princípios e em seguida foi traída por seus eleitores e por seus homens fortes. Os fisiológicos só mudaram de lado por sua vez, seguindo a maré. Rapidamente uma parte expressiva da burguesia, especialmente o agronegócio e os industriais, abandonou seus antigos representantes partidários. O PT não sofreu esse determinante abalo, apenas reduziu sua influência, tornando-se oposição.

O Brasil há pouco chegara ao ápice do seu poder econômico e político mundial e de repente emergia em sua crosta uma fissura antiga. O não reconhecimento do resultado eleitoral por parte do candidato derrotado, a intensificação da crise econômica, os descaminhos do Poder Executivo e as manifestações de rua provocaram uma queda abrupta da popularidade da mandatária e criaram um clima propício para pressões políticas exorbitantes e para golpes parlamentares. Ao mesmo tempo que Rousseff assistia aos jogos da Copa do Mundo do Brasil em 2016, as arquibancadas ocupadas por membros das classes mais abastadas berravam-lhe ofensas, demonstrando animalização. A derrota do Brasil para a Alemanha por 7 a 1 nas semifinais da Copa parecia ilustrar como a esquerda seria derrotada em primeiro plano e como as próprias instituições em segundo.

O principal ataque à ordem democrática emergiu de dentro do judiciário. É muito interessante como a mais ampla investigação da história brasileira para garantir a institucionalidade porta em si a sua própria contradição. Visando desarticular a corrupção do país, fez movimentos investigativos, pactuados ilegalmente entre promotor e juiz, que muitas vezes se construiu a despeito do Código do Processo Penal e outras balizas jurídicas. Tudo isso concatenado com uma mídia e uma população que aplaudiu as rupturas. A Operação Lava Jato equalizava reputações de um comprovado corrupto com uma liderança política sem as devidas provas. Em vez de se convocar investigados para depoimento em um regime de parcimônia, fazia um espetáculo com a Polícia Federal batendo na porta do réu às seis horas da manhã com os jornalistas na esquina para filmar. A massa aprendia assim que se podia fazer qualquer coisa contra a corrupção, até mesmo se corromper. A relativização dos direitos civis era construída, aproximava-se perigosamente a tirania da justiça. A árvore Brasil era aparada e o seus principais jardineiros eram o coordenador da Lava Jato, o promotor Deltan Dallagnol, e o seu juiz, Sergio Moro.

A Operação Lava Jato atacou diretamente o pacto governista do PT que oferecia cargos de confiança para membros da direita tradicional. Em troca do apoio legislativo vital para o funcionamento do Executivo, a presidência entregava cargos da imensa burocracia pública para membros da grande coalização de direita, coordenada pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Na prática, havia uma massa de mais de 20 partidos dentro do parlamento mobilizados por profundo interesse fisiológico. O Executivo podia estar na mão da esquerda, mas todo o resto estava na mão da direita tradicional. O PT estava disposto a se corromper para governar. Na realidade, nesse regime constitucional de presidencialismo de coalização só se governa se se corromper, não se pode confundir a agência dos indivíduos dentro do rigor pretoriano das instituições. A Constituição Brasileira traz em si a sua própria contradição, o que possibilita reprodução constante dos interesses particulares dentro de seu sistema público.

A presença de Luiz Inácio Lula da Silva e sua grande tributária de crédito político Dilma Rousseff na presidência foi resultado de um caminho inesperado das democracias representativas que de tempos em tempos ocorrem. A figura da grande liderança que se projeta nacionalmente ligando-se diretamente ao povo sem intermediações de instituições. O PT é o partido de Lula, mas para grande parte do seu eleitorado sua figura está para além de sua legenda. O seu poder se confunde com seu carisma pessoal. Essa lógica funciona frequentemente na grande política do Executivo federal no Brasil – Fernando Henrique Cardoso foi eleito por ser autor de um plano econômico bem-sucedido e Bolsonaro por representar os sentimentos anticorrupção e anti-institucionais. Todavia, esse procedimento não funciona na lógica parlamentar. Mais localizada e menos dependente do carisma, o poder econômico, já significativo no Executivo, exaspera-se dando grandes privilégios para os endinheirados. Dessa maneira, os plutocratas compõem o seu poder, elegendo seus membros e fazendo pressão nos eleitos. Lula e seus aliados não tinham como escapar disso. O seu carisma era dobrado pelo dinheiro.

A contradição da conduta da Lava Jato, aplaudida pela mídia e pela população, somou-se a contradição que encerra o próprio Executivo diante do Legislativo. A conexão e a exasperação das duas foi o primeiro passo para a criação de um contexto propício para ascensão de uma nova direita ao governo. Mais para frente essa direita adotaria Bolsonaro a despeito de outros personagens na eleição de 2018, o atentado lhe auxiliaria a angariar grande clamor popular. A faca que atingiu Bolsonaro atravessou-lhe e acertou o que restava da própria democracia já golpeada por vários outros personagens. Contudo, ligamos com isso apenas o primeiro a um dos últimos movimentos. Nos próximos textos, oferecerei maior detalhamento para as crises conseguintes, demonstrando como se deu o impeachment de Rousseff, o governo Temer e a eleição de Bolsonaro.

Luccas Eduardo Maldonado – mestrando em História (USP).

Redação

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