“Lacrar é preciso, debater não é preciso”.
#vdd #fato #ficadica #prontofalei
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Método que orienta estratégias de ação direta no imediatismo das redes ditas sociais, a razão lacradora não vem de hoje. Volta e meia dá o ar de sua graça, parecendo realizar a utopia reacionária de um mundo sem esquerda ou direita, não mais dividido entre progressistas e conservadores — todos aplainados na tábula rasa da agressividade superficial como método. Pois a razão lacradora desconhece sinalização ideológica: em sua lógica só há lacradores e lacrados, que trocam de posição ao sabor de movimentos impetuosos. A autocracia tuiteira, por exemplo, prefere lacrar a governar e, quando lacra, é lacrada por quem pensa a ela se opor. Vozes empoderadas lacram forte, lacram alto, até que são lacradas e voltam a lacrar mais forte, mais alto. Quem lacra, lacra alguém ou alguma coisa. E costuma passar ao largo do essencial.
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Ronald Russel Wallace de Chevalier, o Roniquito, foi caso raro de lacrador recreativo, lacrador-arte, que lacra pelo prazer de lacrar. Numa noite perdida no Antonio’s, o personagem-símbolo do folclore boêmio carioca dos anos 1960 interpela o pobre Antonio Callado:
“Callado, você conhece o Faulkner?”
“Conheço, Roniquito.”
“E diante do Faulkner, você não se acha um merda?”
“Acho, Roniquito.”
“E quem é você pra achar isso?”
#roniquito #lacrou #callado #fail
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Iluminista como um miliciano, o lacrador primeiro bate, depois pergunta — isso quando pergunta. Quem lacra sempre vence, mesmo que seja derrotado. Já quem é lacrado nem sempre perde — a extensão da derrota depende da estatura do vencedor. O lacrador é um boxeador improvável, quicando sozinho num ringue e acreditando que é campeão em tudo, sobre todos, sempre por nocaute. No fundo é um coração simples, que se contenta com pouquíssimo.
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Aos 31 anos, James Baldwin escreveu em Notas de um filho da terra: “O preço que um negro paga para aprender a se exprimir é constatar, no final das contas, que não há nada a ser expresso”. Argumentava que conquistar a voz não bastava; era preciso se apropriar de Shakespeare, da língua inglesa, transformar por dentro a cultura que fez dos negros “bastardos do Ocidente”. Eldridge Cleaver, líder dos Panteras Negras, achava-o no mínimo condescendente: “Há na obra de James Baldwin o mais cruel, total e agonizante ódio pelos negros, a começar por ele mesmo, e o mais vergonhoso, fanático, adulador e obsequioso amor pelos brancos que se pode encontrar nos escritos de qualquer escritor negro americano digno de nota em nossa época”.
#cleaver #lacrou #baldwin #fail
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A razão lacradora parece rigorosa, mas coleciona vitórias de Pirro. Quando, na refrega, o lacrador prevalece, parte para nova lacração. Ao lacrado resta o silêncio, que é objetivo último da lacração, mas, também, sua frustração e agonia. Por isso é preciso eleger o próximo lacrado. Incansável e nômade, a razão lacradora é extenuante.
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Entre o final de 1945 e o início de 1946, Karl Jaspers proferiu quatro palestras na universidade de Heidelberg sobre a culpa nacional no pós-guerra. Advertia aos exaltados: “Uma postura que silencia, orgulhosa, por um breve momento pode ser uma máscara justificada, atrás da qual se busca respirar e recobrar a consciência. Mas ela se transformará em autoengano e em astúcia diante do outro se for permitido esconder-se, renitente, em si mesmo, se ela impedir o esclarecimento para escapar da compungência da realidade”, escreveu na introdução de A questão da culpa — A Alemanha e o nazismo.
#jaspers #antilacrador
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Um dos piores efeitos da razão lacradora é fazer com que se valorize aquela que se pretende seu contraponto, uma razão supostamente consensual, leniente e frouxa que tem sido invocada como remédio para embates mais exaltados. Há sempre um intelectual sem posição, um isp, para lamentar enfrentamentos vigorosos como uma viuvinha suspirosa. É um apologista do debate pingue-pongue (por um lado, por outro lado) que também não dá em nada, mas dá pinta de conversa inteligente.
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Ao visitar o Brasil, em 1960, Jean-Paul Sartre declarou, peremptório: “O marxismo é inultrapassável”. Nelson Rodrigues, reacionário desde criancinha, nos tempos da Aldeia Campista, replicou: “Esse ‘marxismo inultrapassável’ é uma opinião de torcedor do Bonsucesso”.
#sartre #lacrou #nelson #lacrou #sartre #fail
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O textão é um arremedo do manifesto. No universo do Zucka, em que ele entra com o livro e a gente com a cara, todo mundo tem direito a quinze minutos de ativismo — direito conquistado com o suor advindo do trabalho não remunerado, em tempo integral, como produtor de “conteúdo”. É a oportunidade de virar um Zola de chanchada e sair por aí apontando o dedinho para todo mundo e para ninguém: “Eu acuso!” . Curtiu?
No dia 17 de abril de 1969, Theodor Adorno daria uma aula sobre a relação entre teoria e práxis na Universidade de Frankfurt. Acusado de covarde pelos estudantes, amotinados contra o capitalismo e tudo o que ali estava, foi impedido de falar. Na sala ocupada, alunas caminhavam de topless pelo tablado. “Justo comigo, que sempre me voltei contra toda sorte de repressão erótica e contra tabus sexuais!”, diria ele à revista Der Spiegel. “Submeter-me ao ridículo e atiçar contra mim três mocinhas fantasiadas de hippies! Achei isso abominável. O efeito hilariante que se consegue com isso no fundo não passava da reação do burguesão, com seu riso néscio, quando vê uma garota com os seios nus.” A entrevista, publicada em 6 de maio, foi a última que concedeu. O curso não seria retomado: Adorno morreu em agosto daquele ano.
#estudantada #lacrou #adorno #fail #adorno #rip
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A razão lacradora é o espírito do nosso tempo. Se mantido o virtuosismo com que é aplicada, em pouco tempo seremos todos imbatíveis. E, quem sabe, em 2022, à sombra das lacrações em flor, a confirmaremos no poder por mais quatro anos. Pois lacrar é só o que eles precisam. E é tudo o que podem.
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Sei que a intenção não é essa, mas se eu o lesse no livrocara diria: #lacrou
A questão é como romper com a lacração e construir debates/diálogos?
Debate/diálogo foram sistematicamente interrompidos pela mídia brasileira!!!! É estratégia planejada e aplicada com maestria!!!
Como furar as bolhas de informação do monopólio da comunicação nacional e internacional?
Os formadores de opinião da direita dominam o “mercado da informação”!!!
As novas tecnologias de informação favorecem muito mais aos conservadores!!!
Como? Como? Como romper as bolhas!!! Como dialogar??? Tá faltando conversar mais sobre isso!!!
Essa epidemia de “lacração” começou como uma resposta aos MBL’s da vida sem a grana e o apoio da mídia com o qual eles contam.