A “demissão” de Mandetta, a normalidade bolsonarista e a “capitulação inconsciente” da sociedade brasileira, por Eduardo Borges

A eleição para o cargo mais importante da nação de um político com o perfil do ex-capitão Bolsonaro dificilmente não provocaria fissuras no jogo político brasileiro.

A “demissão” de Mandetta, a normalidade bolsonarista e a “capitulação inconsciente” da sociedade brasileira

por Eduardo Borges

O pastor luterano Martin Niemöller ficou famoso através de um singelo poema que questionava a passividade humana diante das atrocidades nazistas. O poema continuaria sendo lembrado sempre que a humanidade estivesse correndo algum risco de imposição autoritária. Ao mesmo tempo, é um libelo contra nosso egoísmo e individualidade. Procurem no google, adianto apenas a parte final do poema: “No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia ninguém para reclamar”. No decorrer do artigo vocês vão entender o motivo de citar o poema de Niemöller.

A eleição para o cargo mais importante da nação de um político com o perfil do ex-capitão Bolsonaro dificilmente não provocaria fissuras no jogo político brasileiro. De Collor a Dilma Rousseff, nossa frágil e jovem democracia, até conheceu reveses, mas sobreviveu em nome de um mínimo de civilidade em termos de relação entre os poderes. As instituições da República, responsáveis por manter o equilíbrio da sociedade e o funcionamento do sistema de pesos e contrapesos manteve-se firme como sustentáculo do funcionamento do país.

Ao chegar ao poder se beneficiando de uma fatalidade (a facada) e de uma série de narrativas falsas devidamente massificadas pelas redes sociais, um candidato improvável como Jair Messias Bolsonaro não teria outra opção que não fosse implodir o sistema político e instituir uma alternativa autoritária e boçal de exercício do poder estabelecendo o que vou chamar aqui nesse artigo de “normalidade bolsonarista”.

Formada por alguns dos mais abjetos exemplos de comportamento humano a “normalidade bolsonarista” foi sendo assimilada pela sociedade brasileira, entre os quais eu me incluo, somente como uma conjuntural distorção do sistema democrático. Aos poucos Bolsonaro, sua filhocracia e sua horda de seguidores fanáticos, foram minando o tecido social e político com suas condenáveis práticas, e nos forçando a fazer o contraponto como se fosse tais práticas uma dinâmica que respeitasse minimamente regras de civilidade. Sem perceber entravamos em uma “capitulação inconsciente” diante da “normalidade” imposta pelo bolsonarismo.

Político medíocre, com quase trinta anos de vida pública passados no limbo do baixo clero da Câmara Federal, Bolsonaro não é mais do que uma grotesca caricatura de si mesmo. Com a eleição do capitão Jair o Bobo da corte assumiu o poder. Contudo, falta nele até mesmo o lado irônico e sarcástico do único indivíduo com permissão de tripudiar sobre a vida do rei. Não se faz isso quando se é desprovido de inteligência. O risco era perder a cabeça literalmente.

Diante desse cenário patético o Brasil de Bolsonaro transformou nossa democracia em um grande picadeiro em que palhaços travestidos de ministros e parlamentares mandam às favas qualquer resquício de civilidade e bom senso. A filhocracia, formada pela tríade 01, 02, 03 sob a batuta da caricatura de ideólogo morador do Estado da Virginia nos EUA, consolidou o grotesco e a pusilanimidade como alimento diário a consumirmos como uma guloseima no café da manhã de cada dia. Parafraseando o poema do pastor Niemöller, “como não era comigo não me incomodei”.

A troca de farpas e a lavagem de roupa suja em público por parte de nobres deputadas do PSL, cujo nível da linguagem faria corar a saudosa Dercy Gonçalves, transformou-se em espetáculo aguardado por todos e todas nesse grande palco público chamado rede social. Mas isso é divertimento de bom nível para uma sociedade que está acostumada a dar grande audiência a programas grotescos como o BBB.

Os ataques frontais às instituições por parte dos seguidores da seita bolsonarista, muitos deles a pedirem publicamente a intervenção militar, expunha diariamente ao ridículo nossa combalida democracia. A reforma trabalhista, em nome de uma obsessiva proteção aos donos do capital, fragilizava ainda mais a já aviltada CLT. Nesse caso, teve quem argumentasse a favor com base na ideia de que a CLT é uma sucata dos anos quarenta do século passado que precisa ser urgentemente modernizada. Interessante essa tese da modernização da miséria. Às vezes me pego perguntando, e se essa gente se lembrar que a Lei Aurea é de 1888?

A reforma da Previdência, como a solução de todos os problemas do país, com suas explícitas incongruências e maldades a médio e longo prazo, foi defendida nas ruas por trabalhadores, sua principal  vítima, em nome da demonização dos servidores públicos e do equilíbrio orçamentário defendido pelo ultraliberal rentista Paulo Guedes.

Não podemos esquecer os ataques diários do presidente à imprensa, sob o aplauso da claque presente nas tais entrevistas na saída do Alvorada. Por que os veículos de comunicação continuam se submetendo a esse ridículo? Falta-lhes dignidade, até isso a “normalidade bolsonarista” lhes tirou?

Vivemos sob uma nova ordem desde o dia primeiro de janeiro de 2019 e como bem escreveu a brilhante jornalista Eliane Brum, continuamos batendo palmas para maluco dançar. Admito que uma parcela da sociedade brasileira tem buscado mostrar ao Brasil e ao mundo o quanto ridículos e perigosos são os malucos que dançam no picadeiro de nossa democracia.

Entretanto, apesar de tudo isso, a “normalidade bolsonarista” continua sendo uma realidade. Como uma Fênix, Bolsonaro revive diariamente ao nutrir-se com sua própria mediocridade. Apoiado pelos membros de sua seita e por um conjunto de lideranças empresariais do campo religioso, o presidente da República segue resistindo e nos impondo sua incomoda presença. E nós, que estamos do outro lado da trincheira, começamos a correr o risco de nos acostumarmos com a boçalidade da “normalidade bolsonarista” e capitularmos, mesmo que inconscientemente, às soluções ditadas por essa própria “normalidade”.

Um exemplo concreto de nossa capitulação “inconsciente” se deu nos últimos dias diante da treta entre Bolsonaro e seu ministro da saúde. Em meio a todo esse caminho tortuoso provocado pela pandemia da Covid 19, é certo que o destino colocou à frente da nação brasileira a liderança menos provável para assumir essa responsabilidade. Ignóbil em vários aspectos, a postura insolente de Bolsonaro diante da crise conseguiu provocar alguns dos mais insólitos comportamentos

Inimigo histórico de Lula, o oportunista João Dória compartilhou eventual semelhança com o petista. A pandemia tem servido ao outrora “Bolsodória” se estabelecer como “estadista”, ocupar o lugar de contraponto a Bolsonaro, e se viabilizar para 2022. Tudo isso com a legitimação das pesquisas de opinião. O DEM, partido do ministro da saúde e dos presidentes da Câmara e do Senado, mesmo com todo seu histórico de tataraneto da velha Arena do regime militar, transformou-se na legenda mais “progressista” do país.

A cereja do bolo de nossa “capitulação inconsciente” foi a vibração nacional com a não demissão do ministro Mandetta. Quase que transformado em herói nacional é irônico ver o ministro com o colete do SUS. Em entrevista ao programa Roda Viva”, da TV Cultura, esse mesmo Mandetta, questionado sobre a gratuidade universal do SUS, teria dito que essa era uma discussão que ele queria provocar no Congresso Nacional. Com fama de fazer parte do tal grupo de ministros “técnicos”, Mandetta é político até a medula. No Parlamento foi um dos que seguraram cartazes de ‘tchau querida” em comemoração ao impeachment de Dilma Rousseff e fez campanha contra o programa Mais Médicos, agora chamados de volta diante da pandemia. Estamos sedados ou seduzidos?

Recebi através de redes sociais mensagens de pessoas progressistas vibrando com o fato do general Braga Neto ter evitado a demissão de Mandetta enquadrando o presidente da República e expondo seu isolamento no cargo. Pensei com meus botões: quer dizer que a “militarização” do governo, imposta pela normalização bolsonarista, agora é um fato positivo? Pode ser encarado como um mal menor?

O governador Flávio Dino (PC do B), do Maranhão, que tem se posicionado como uma liderança da oposição, também demonstra certa assimilação da normalidade bolsonarista ao afirmar que apesar de ainda existir formalmente, o governo Bolsonaro teria acabado em termos de exercício efetivo do poder por parte do presidente da República. Isso pode ser apenas um sentimento, um desejo do governador Dino, mas não é a realidade. Essa espécie de bipolaridade administrativa é a própria lógica de funcionamento da normalidade bolsonarista. O governo Bolsonaro será um grande engodo até 2022.

Em um determinado site um texto relatava, em tom de normalidade, que o presidente do Senado teria entrado em contato com militares influentes do governo buscando interferir na possível demissão, pelo presidente da República, de um ministro de estado. Em uma videoconferência, o cada vez mais “político” ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), fala em união nacional. Essa confusão de funções e tarefas entre poderes também pode ser considerado algo normal?

Definitivamente, a normalidade bolsonarista está provocando entre nós uma perigosa crise de identidade política. O fato de ser uma aberração de grandes proporções tem feito do governo Bolsonaro uma referência que permite nos contentarmos com algumas migalhas de civilidade. Contudo, é chegada a hora de pensarmos formas mais efetivas de salvar o país da barbárie bolsonarista. Existe uma classe trabalhadora, um contingente de vulneráveis sociais e um Estado indutor de desenvolvimento que precisa ser defendido da sanha canibalesca de Paulo Guedes et caterva. Portanto, quando em plena democracia um general ocupa a função de um presidente da República eleito, e tem uma grande parcela da sociedade enxergando isso como um movimento normal do jogo democrático, é hora de ligar o sinal de alerta. Existe algo de podre no Reino de Pindorama.

Eduardo Borges – Doutor em História, professor Adjunto do Departamento de Educação – UNEB/Campus XIV.

Redação

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