“A democracia sem a sua componente liberal pode ser uma fera muito perigosa” avalia pesquisador italiano, por Arnaldo Cardoso

Para uma melhor compreensão sobre o populismo uma entrevista com o estudioso da política italiana Goffredo Adinolfi, que é doutor em História Contemporânea pela Universidade de Milão e autor de diversos artigos acadêmicos.

“A democracia sem a sua componente liberal pode ser uma fera muito perigosa” avalia pesquisador italiano

por Arnaldo Cardoso

Quando ainda se encontravam nas fases iniciais as curvas de contágio do SARS-CoV-2 em países asiáticos e europeus, já surgiram as primeiras análises alertando para as ameaças à democracia potencializadas pela necessidade de adoção de medidas excepcionais e leis de emergência por governos para o enfrentamento da pandemia. Não tardou para que evidências disso ganhassem visibilidade, como as ações (alegando motivos de saúde pública) do governo chinês em Hong Kong para proibir manifestações em defesa da autonomia da região; a aprovação na Hungria de uma lei permitindo que Viktor Orban governe por decreto durante a pandemia e, em países como Rússia, Índia, Tailândia, Bielorrússia, Brasil e Estados Unidos, entre outros, uma série de medidas para ampliação de poderes ao Executivo.

Também a necessidade de liberação de vultosos recursos financeiros para mitigar os danos econômicos e sociais provocados pela pandemia se converteu em mais um instrumento poderoso nas mãos de governantes que seletivamente passaram a recompensar fidelidades ou punir opositores.

O clima de medo e a necessidade de segurança criaram as condições propícias para que tais governantes empreendessem suas ações sem a pressão de manifestações e protestos de rua em função da proibição de grandes aglomerações pelo risco de contágios em massa.

Em sociedades onde o governante por falta de pendor autoritário ou por maior eficiência das instituições democráticas em freá-lo, viu-se a elevação da temperatura do embate político impulsionada por grupos e partidos políticos extremistas, destacadamente de direita, com as já conhecidas táticas da política do ódio, usando especialmente de mídias sociais e demais plataformas digitais de comunicação para, inclusive por meio de fake news, instigar a revolta de cidadãos contra o governo e com isso aumentar a instabilidade política.

Em países como Itália, Brasil e Estados Unidos, que nos últimos anos tem vivido a experiência da polarização de suas sociedades e do fortalecimento de movimentos de extrema direita, diferentes estudiosos da política tem utilizado do conceito do populismo que, revisado, tem servido para a investigação da atual dinâmica política marcada pelo desprezo de seus governantes pelas instituições e canais de mediação para a representação política, busca de comunicação direta do líder com o povo e discurso de ódio contra “elites”.

Marcada por contínua instabilidade política desde a crise financeira de 2008, a Itália tem sido vista por muitos analistas como um laboratório político onde tem prosperado fenômenos como a criação do Movimento 5 Estrelas (M5S) – o primeiro “partido digital” criado a partir da crítica dos partidos tradicionais e das formas de representação e participação na democracia representativa –; a expansão e fortalecimento de partidos de extrema direita como a Liga liderada por Matteo Salvini – exemplar representativo do populista de direita –  e o fortalecimento de partidos neofascistas como o Irmãos da Itália (FdI) liderado por Giorgia Meloni. Na mais recente pesquisa de intenção de voto na Itália os partidos de direita e extrema direita somaram quase 50% das intenções de voto. A Liga obteve o primeiro lugar com 25% das intenções de voto, o Partido Democrático (Pd) teve 21,4%, o M5S 17,2%, o Irmãos da Itália (FdI) 14,4% e o Força Itália 7,6% e os outros quatro partidos mencionados por eleitores obtiveram individualmente menos de 5%.

Para uma melhor compreensão sobre o populismo, especialmente na Itália, tive a oportunidade de entrevistar o estudioso da política italiana Goffredo Adinolfi, que é doutor em História Contemporânea pela Universidade de Milão e autor de diversos artigos acadêmicos. Reproduzo abaixo os principais trechos da entrevista com Adinolfi.

Arnaldo Cardoso – Na última década, com o alastramento pelo mundo dos efeitos deletérios da crise econômica iniciada em 2008 nos EUA, viu-se um fortalecimento da extrema-direita tradicional e da alt-right em diferentes países. Nesse contexto os intelectuais das Ciências Sociais se viram diante de reconfigurações da ação política e de seus respectivos regimes para as quais os tradicionais conceitos da Ciência Política pareceram insuficientes para explicá-las. Democracia iliberal, democratura, neofascismo e outras proposições/conceitos ganharam espaço nos debates, mas foi o conceito de populismo que passou por revisão e ganhou nova aceitação por vários intelectuais, especialmente a partir do trabalho “A razão populista” do filósofo Ernesto Laclau, argentino radicado na Inglaterra e professor da Universidade de Essex. Na referida obra, o populismo, cuja característica central é a conexão direta entre o líder (fortalecido por carisma) e o povo, passa a ser entendido como modelo capaz de ampliar as bases democráticas da sociedade, enfraquecidas pelo avanço da técnica em detrimento da política. Como você se situa em relação a essa nova interpretação do conceito de populismo? Você o adota em suas análises sobre a política contemporânea?

Goffredo Adinolfi – Laclau é imprescindível para compreender o populismo. A ciência política considera geralmente um único modelo político: a democracia liberal representativa tal como ela se afirmou maioritariamente depois da Segunda Guerra mundial. Todo o resto é uma forma de doença que deve ser tratada para voltar ao único modelo e, portanto, não merece muita credibilidade e atenção. Tem havido, portanto, uma grande dificuldade em pensar que, dentro do pensamento antiliberal, há modelos políticos coerentes e orgânicos que, infelizmente, são credíveis. Têm um modelo institucional, constitucionalista. Foram derrotados é verdade, mas isto não significa que no futuro não possam ter capacidade de implantação.

AC – Numa entrevista de Ernesto Laclau em 2014, diante da pergunta “Por que o populismo é frequentemente visto como algo negativo?” ele respondeu: “Esta é uma visão difundida por setores conservadores. Não devemos levar isso a sério. O populismo não é ruim ou bom em si mesmo. É uma forma de construção da política, baseada na criação de uma divisão na sociedade por meio de demandas sociais. Isso ocorre quando as instituições não conseguem atender às demandas populares”. Você concorda com a ideia de que o populismo é um conceito sem um conteúdo ideológico específico?

GA – O paradoxo é a questão ideológica. Milhares de páginas foram escritas para dizer que o fascismo não era uma ideologia, a mesma coisa agora é dita do populismo. Como se a ideia do povo que governa por si próprio através da voz de um líder não fosse por si só uma ideologia.

AC – Em estudos como “Democracy Disfigured: Opinion, Truth, and the People” da professora de teoria política da Universidade de Columbia, Nadia Urbinati, encontramos o populismo (de direita ou de esquerda) entendido como uma das ameaças de desfiguração da democracia representativa. Você compartilha dessa avaliação?

GA – A democracia sem a sua componente liberal pode ser uma fera muito perigosa, o voto popular sem limitação pode levar ao regime Nazi. Não é um acaso que uma das referências de Laclau seja Carl Schmitt e a ideia de que a legitimidade seja mais importante que a legalidade.

AC – Como responder à pergunta proposta por Nadia Urbinati “Que lugar deve ser atribuído à participação dos cidadãos nas instituições democráticas”? Você considera que (no debate e na prática) existe uma confusão entre as ideias de representação e participação?

GA – Eu considero que há uma confusão entre participação e democracia direta. A participação é uma forma de exercer a democracia muito positiva e não está em contradição com a democracia representativa e liberal, simplesmente a integra e lhe dá força e legitimidade. A democracia direta leva à plebiscitarização e desmobilização.

AC – Diante dos desafios de garantir o bom funcionamento de procedimentos democráticos você considera defensável uma intervenção do governo no campo da formação de opinião, tendo em vista o atual processo de vulgarização e ao mesmo tempo potencialização do poder dessa opinião por estratégias de políticos populistas?

GA – Penso que o Executivo nunca deve ter ações de contraste na forma como a opinião pública é formada. Tomar medidas contra as fake news por exemplo é um caminho muito perigoso que se sabe como começa e, infelizmente, também como acaba, numa censura. A melhor forma de se contrapor às fake news é ser credível, confiável.

AC – No referido livro da professora Urbinati, ao tecer a crítica da forma plebiscitária de democracia que mistura videocracia e “política cesarista” ela cita como exemplo o governo Berlusconi. O que vemos hoje na Itália, particularmente na estratégia política de Matteo Salvini da Liga, usando intensamente plataformas digitais (quando era governo e hoje como oposição) para a comunicação constante com seus seguidores pode ser visto como uma radicalização do “efeito Berlusconi” ou tem diferenças significativas?

GA – Há diferenças significativas. Hoje o sistema político está bastante mais frágil do que no período de Berlusconi. Salvini é muito mais radical. Berlusconi após o primeiro ano no governo, normalizou-se bastante, ou melhor, o sistema político conseguiu normalizar as pressões eversivas de Silvio Berlusconi.

AC – Em entrevista a professora Urbinati avaliou que hoje todos os partidos políticos na Itália são populistas. Você concorda com essa avaliação? Não tem nenhuma exceção? Há saídas para isso?

GA – Está posta uma grande discussão na Itália. Alguns afirmam a necessidade de voltar a partidos mais tradicionais. Difícil responder diante da atual crise econômica que adiciona mais tensões ao sistema político. Hoje em muitos países europeus há de fato um conflito entre populistas e antipopulistas, com os primeiros a ganhar no sentido em que as políticas por eles defendidas são assumidas também pelos partidos tradicionais.

AC – Hoje a Itália se encontra no processo de reabertura de suas fronteiras e de retomada das atividades econômicas. Nesse contexto como se encontra o jogo político em torno do governo de Giuseppe Conte?

GA – Entre a maioria que apoia o governo Conte há um grande conflito que gira em torno das medidas necessárias para o enfrentamento da crise econômica. São duas as principais formas para lidar com isso: uma intervenção maior do Estado ou deixar os agentes privados gerirem a montanha de dinheiro que provavelmente virá das agências europeias. Neste momento a crise econômica ainda está nas suas fases iniciais. Há especulações sobre a formação de um novo governo, inclusive com a participação da Liga de Matteo Salvini.

Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

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