A eminência parda de Bolsonaro, por Sergio Saraiva

Alguém do governo Bolsonaro temeria o que a CPI pudesse descobrir e tratava de deixar claro que tinha poder para impedir que as investigações prosseguissem, caso prosseguissem no caminho que “não interessava”.

Foto Agência Brasil

do Oficina de Concertos Gerais e Poesia

A eminência parda de Bolsonaro

por Sergio Saraiva

Braga Netto, a figura poderosa e discreta na República.

Em 07 de julho de 2021, Roberto Dias – o diretor de logística demitido do Ministério da Saúde e ligado ao atual líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros – depunha no Senado no âmbito da CPI da COVID-19. Roberto Dias é acusado de pedir propina na compra de vacinas. Em determinado momento, comenta que havia sido sargento da Aeronáutica. Ouve então de senador Omar Aziz – presidente da CPI:

“Você foi sargento da Aeronáutica? Conhece o coronel Guerra? Olha, eu vou dizer uma coisa, as Forças Armadas… os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo, fazia muitos anos”.

Essas palavras desencadearam uma duríssima nota do Ministério da Defesa que nada mais era que uma tentativa de intimidação a CPI do Senado que investiga responsabilidades em relação ao combate da pandemia que já custou mais de meio milhão de vidas brasileiras.

“Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável… As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro.”

Desproporcional e destemperada, a nota foi interpretada, em seguida, por vários analistas políticos, muito mais como uma reação de temor do que uma defesa da honradez da Forças Armadas, claramente não ferida pelas palavras de Aziz – palavras que configurariam, aliás, muito mais um comentário do que uma declaração, e de modo algum um eram um pronunciamento oficial.

Alguém do governo Bolsonaro temeria o que a CPI pudesse descobrir e tratava de deixar claro que tinha poder para impedir que as investigações prosseguissem, caso prosseguissem no caminho que “não interessava”. Algo assim como: “se o senhor começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”.

Mas quem seria essa pessoa?

Bolsonaro, sem dúvida tem muito a temer, mas Bolsonaro não assina notas; esbraveja em lives e cercadinhos usando palavras de baixo calão. Por óbvio não seriam os três comandantes das armas que assinavam conjuntamente a nota – recém empossados nos cargos, não tinham, até aquele momento, se pronunciado ou tomado qualquer ação que extrapolasse os muros de seus quartéis.  

Como a nota era assinada por quatro pessoas, naturalmente à quarta voltaram-se os olhares: Braga Netto, o ministro da Defesa – general reformado do Exército.

Braga Netto é uma figura poderosa e discreta na República, pelo menos desde o governo Temer. Em 2018, foi o interventor de Temer na segurança pública do Rio de Janeiro.  E quem o conhece pode confirmar o quanto da sua discrição é mantida à custa de autoritarismo.

Foi no seu interventonato que se deu o assassinato da vereadora Marielle Franco. Coube então a ele conduzir as investigações policiais. O que sabe sobre esse caso, além do que é público, e sobre o mandante, não sabemos – trata-se de um homem discreto.

Saberia alguma coisa da reunião dos assassinos no condomínio Vivendas da Barra – onde mora a família Bolsonaro – ou do porquê do número 58 – a casa de Bolsonaro – ter sido anotado pelo porteiro como o destino dos assassinos que ali se reuniram? Como saber?

Braga Netto é um homem discreto. Essa descrição, por certo, em nada desagrada Bolsonaro que o levou para seu governo, assim que assumiu a presidência da República.

No governo Bolsonaro, ocupou vários postos: de chefe do Estado Maior do Exército a ministro da Defesa, passando por um insólito ministério da Casa Civil comandado por um militar – insólito, mas coerente com o governo Bolsonaro. E passou de um cargo para outro sempre em mudanças que envolviam algumas das muitas polêmicas desse governo.

De cargo em cargo, foi se tornando cada vez mais poderoso, sem deixar de ser discreto e autoritário.

Uma personalidade autoritária que fica explícita na cena da demissão de ninguém menos do que os três comandantes das Forças Armadas nos desdobramentos da demissão de seu próprio antecessor no Ministério da Defesa: tapas na mesa e gritos na cara entre generais, almirante e brigadeiro, não deve ser algo muito comum. Talvez, a discrição de Braga Netto desapareça quando em privado e sobre apenas o autoritarismo… talvez.

O certo é que essa demissão coletiva em área tão sensível como o comando das Forças Armadas – e que consolidou Braga Netto no comando militar – foi a maior demonstração de poder de Bolsonaro até aqui. Uma inaudita demonstração de poder, vinda de um governante reconhecido como fraco. E que talvez seja um fraco mesmo, exposto ao sol e deixando à sombra quem realmente tem poder: Braga Netto… talvez.

Mas, por que alguém tão poderoso assim como Braga Netto estaria temeroso com os trabalhos da CPI a ponto de abrir mão de sua descrição e deixar que em uma nota oficial o seu temor e o seu autoritarismo se tornassem públicos?

Para tanto, talvez uma matéria da Veja sobre as pressões para compra vacina Covaxin nos ajude a entender.

A compra da Covaxin é o maior escândalo do governo Bolsonaro. Envolve um empresário atravessador de vacinas, uma medida provisória que facilita seus negócios enquanto dificulta o negócio com outros fornecedores. E vai além, trata-se da decisão pela compra – em um contrato de R$ 1,6 bilhões – da vacina mais cara – US$ 15,00 a dose – em detrimento da vacina da Pfizer – US$ 10,00 a dose – intensamente oferecida e rebarbada por Bolsonaro. Mais ainda, há a tentativa de pagamento antecipado de US$ 40 milhões em Cingapura – um paraíso fiscal – para uma empresa que não estava no contrato firmado pelo governo.

E tudo isso acontecendo com um também general no comando do Ministério da Saúde – Eduardo Pazzuelo – célebre pelas mortes por falta de oxigênio nos hospitais de Manaus e pela firmeza da frase: ”é simples assim: um manda e o outro obedece” – quando, em outubro de 2020, Bolsonaro o fez voltar atrás na compra de vacinas de um outro fornecedor – a CoronaVac fornecida pelo laboratório chinês Sinovac. Na época, Bolsonaro estava interessado era em cloroquina e outras quinas do tratamento precoce. O que fez muito bem para a saúde financeira dos produtores desses medicamentos. E só para eles.

Por fim, o golpe da compra da Covaxin foi desmontado por um zeloso servidor do Ministério da Saúde, Luís Ricado Miranda, que se recusou a fazer vistas grossas à falcatrua e a denunciou não só ao Ministério Público, como também, acompanhado de seu irmão, o deputado Luís Miranda, ao próprio Bolsonaro. Que confrontado com a denúncia teria entregado o seu líder no Congresso como o provável responsável. E nada mais fez.

Mas o que teria Braga Netto a ver com isso? Não tem, pelo que se saiba, maiores relações com Ricardo Barros – o líder do governo entregue por Bolsonaro. Aliás, como Bolsonaro teria sido ingênuo ou descuidado a ponto de entregar seu líder no Congresso em uma conversa informal que pode ter sido gravada é mistério ainda a se esclarecer – ou talvez não.

Voltemos a revista Veja. O que diz a matéria que faria Braga Netto partir para cima da CPI? Diz que informantes da CPI insinuaram que as ordens para privilegiar a Covaxin partiram justamente de Braga Netto, quando chefe da Casa Civil. E do também general Luiz Eduardo Ramos, seu sucessor na Casa Civil – e na época ministro chefe da Secretaria de Governo – “só a diretoria”.

E porque ordens sobre um assunto afeito ao Ministério da Saúde seriam emitidas a partir da Casa Civil? Pazzuelo, como visto acima, seria um incompetente útil, um testa-de-ferro, colocado no ministério justamente para não decidir? E não atrapalhar a quem realmente decidia: Braga Netto?

Esse cenário hipotético – Braga Netto no poder de facto do Ministério da Saúde e Pazzuelo dando a cara a tapa – também explicaria uma segunda demonstração de poder de Bolsonaro, quando submeteu o comandante do Exército a não punir Pazzuelo, depois dele, que ainda é general da ativa, afastado do Ministério da Saúde, subir em um palanque político de Bolsonaro. Pazzuelo não só não foi punido conforme manda o regulamento do Exército com ainda retornou a um cargo junto à Presidência da República: secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos – seja lá o que esse cargo for.

Muitos estranhamos que Bolsonaro – um ex-capitão expulso do Exército por indisciplina – tivesse tanto poder sobre a rígida hierarquia militar. Ele talvez não o tenha mesmo, já Braga Netto… talvez.

Que Braga Netto teria poder de influência no Ministério da Saúde mostra-nos um texto de Josias de Souza: na Casa Civil, Braga Netto comandou o comitê interministerial de combate à pandemia. Braga Netto comunicava-se diretamente com Elcio Franco – o coronel que ocupava o posto de secretário-executivo do Ministério da Saúde na gestão Pazzuelo e que foi apontado como o principal negociador na compra da Covaxin. Hoje, Elcio Franco é assessor especial na casa Civil do general Luiz Eduardo Ramos – que citamos acima. Gira a roda, mas para sempre nos mesmos pontos – um circuito fechado, bem fechado. 

Pois bem, quando no seu depoimento a CPI, Roberto Dias – a única pessoa que até agora ouviu uma voz de prisão no caso da Coaxin – aponta para Elcio Franco, colocaria foco em Braga Neto. E o retiraria da sua posição de discrição. Sabemos como Braga Netto reage nessas ocasiões. E então, voltamos à intimidação do Senado e a outras manifestações dos militares afinados com Braga Netto.

E assim, Braga Neto teria mexido suas pedras, tentando se antecipar e bloquear o próximo movimento do lado contrário.

Pois bem, o que temos até aqui é uma tentativa de alinhavar com alguma coerência o noticiário disperso sobre a CPI da Pandemia e a recorrente citação de Braga Netto contida nele. Não tiro a razão de quem afirmar que tudo aqui descrito não passa da criação de um personagem imaginário – uma eminência parda e poderosa do governo Bolsonaro.

Imaginar um agente poderoso e agindo nas sobras. Tentador, sem dúvida, até porque responderia a várias perguntas soltas no ar.

Verdadeiro? Como saber?

Uma alternativa seria Braga Netto abrir mão de sua discrição e pronunciar-se na CPI – e que por necessário contivesse o autoritarismo que revela quando alguma indiscrição ao alcança. Necessário inclusive em respeito à Constituição que afirmou defender.

Sérgio Saraiva – Fui trabalhador químico do ABC paulista, estudei para ser professor e, hoje, ganho a vida como um operário do conhecimento.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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