A era da insensatez e o caso do neto de Lula: Deus não perdoará!, por Lenio Luiz Streck

A crueldade humana não tem efeito constitutivo; é declaratório. Assim como a imbecilidade, ela sempre esteve aí. A internet a revelou! Se o mundo tem pessoas horríveis, meu dever é incomodá-las!

do ConJur

A era da insensatez e o caso do neto de Lula: Deus não perdoará!

por Lenio Luiz Streck

Duas frases marcaram a semana: a blogueira Alessandra Strutzel (sim, temos de dar nome aos bois e bois aos nomes!) disse, ao saber da trágica morte do neto de Lula, de 7 anos: “Pelo menos, uma notícia boa”. E a do deputado Eduardo Bolsonaro (Deus acima de todos – eis o slogan da moda): A ida de Lula ao enterro “só deixa o larápio em voga posando de coitado”! Houve ainda muitos outros “pronunciamentos” de ódio e regozijo pela morte do menino de 7 anos.

Até onde chegamos? É o fundo do poço? O que Deus diria disso, ele que, conforme o slogan, “está acima de todos?”

Confesso a vocês – e Rosane, minha esposa e Gilberto, um de meus assistentes, são testemunhas – que esse episódio me abalou profundamente. Embarguei a voz. Triste pela morte da criança e estupefacto e magoado com a raça humana e com a reação das pessoas nas neocarvernas que são as redes sociais. Ah, blogueiros e influenciadores, coachings e quejandos, ah, quantos justos haverá em Sodoma? Abraão será um advogado que lhes conseguirá um HC?

Peço paciência para me seguirem no que vou dizer. No auge do macartismo, em audiência no Senado, o advogado Joseph Welch teve a coragem de perguntar ao senador McCarthy, o homem que deu nome à prática de ver comunismo em tudo:

Senhor, você perdeu, afinal, todo senso de decência?” Pergunto aos odiadores que comemoraram ou trataram com raiva de Lula o episódio fatídico:Senhores e senhoras, parlamentares, blogueiros, twuiteiros, whatsapianos e faceboqueanos: vocês perderam, afinal, todo senso de decência?”

Em tempos de hinos nas escolas, na era das acusações de marxismo cultural (sic), eu poderia muito bem falar aqui sobre o macartismo à brasileira. Não vou. Falo, hoje, sobre nosso senso de decência. Ou melhor, tento falar sobre o senso de decência que perdemos.

Também não vou falar — não diretamente — sobre aquilo que, agora, todos já sabem ter acontecido. Lamentavelmente, morreu o neto, de sete anos, do ex-Presidente Lula. Sobre isso, não há o que falar. É o zero total. É Timon de Atenas, de Shakespeare, propondo o fim da linguagem. Shakespeare, logo ele, que bem sabia que a linguagem é a casa do Ser (Heidegger).

Sou um hermeneuta. Bem sei que a linguagem é, como dizia Ortega y Gasset, um sacramento que exige administração muito delicada. Da palavra não se abusa; não se pode colocá-la em risco de desprestígio. É precisamente por isso que sei que sobre a morte de uma criança não se fala; lamenta-se. Chora-se.

Vou (tentar) falar, portanto, repito, sobre o senso de decência que perdemos. Confesso, é difícil: às vezes, a degradação e a desumanidade são tão grandes que também parecem impor o silêncio. Mas como Auberon Waugh dizia sabiamente,

se é verdade que o mundo é um lugar horrível com pessoas horríveis, temos o dever sagrado de incomodá-los sempre que possível.

Eis a minha tarefa: incomodar as pessoas horríveis. O que dizer em tempos nos quais uma legião de imbecis, para usar as palavras de Eco, aproveita-se da morte de uma criança e utiliza as redes sociais para destilar ódio e externar a própria baixeza? É hora do grito de Schönberg: Palavra, oh Palavra, que falta me faz!!!!

O que dizer quando se torna normal que um deputado — o mais votado da história do país — vai às redes sociais, sempre as redes sociais, para dizer que “cogitar” a saída de Lula para o enterro do neto (saída que está prevista na lei, diga-se) “só deixa o larápio [sicem voga posando de coitado“?

Perdemos, afinal, todo senso de decência? Não, não tenho raiva. Sinto é…pena.

O que Deus, que está “acima de todos”, diria? Ou dirá? Deus, que disse que nunca mais inundaria a terra:

nunca mais será ceifada nenhuma forma de vida pelas águas de um dilúvio; nunca mais haverá dilúvio para destruir a terra”.

Deus disse também que sempre que houvesse nuvens sobre a terra, e o arco aparecesse nas nuvens, lembrar-se-ia “da eterna aliança entre Deus e todos os seres vivos de todas as espécies sobre a terra”.

E se o Altíssimo mudasse de ideia? E se Deus dissesse que, afinal, a humanidade deu tão errado que é hora de um novo dilúvio?

E se o critério de seleção para o dilúvio fosse aquilo que se diz, espalha, compartilha, no WhatsApp? Já pensaram? Como falei na coluna passada (ler aqui), que tal se Deus fizer uma PEC e alterar o estatuto do purgatório? Então, a partir de agora, o juízo final será feito por Ele a partir do exame do WhatsApp de cada um (e também do twitter e face). Uma olhadinha e Deus manda para o inferno. Platão foi o primeiro a denunciar as fake news. Platão mostrou que dizer aos néscios que as sombras são sombras é uma coisa perigosa. Pode ser apedrejado. Como o sujeito que saiu da caverna o foi.

Dizer hoje, a quem está mergulhado nas redes e pensa que o mundo são as redes, que esse mundo é imundo, em que o joio fez fagocitose ruim no trigo, pode também ser perigoso. Denunciar isso pode dar apedrejamento. Por isso, Deus acertou em fazer essa PEC alterando o regulamento do purgatório. O critério é simples: uma olhadinha no whatts e face. E, bingo. Vai para o fogo do inferno!

George Steiner bem dizia: tornamo-nos a civilização pós-verbo. A banalização da linguagem, por meio das redes sociais, corrompe a ideia da verdade. O limite do que é socialmente aceito é colocado cada vez mais longe. O que é verdadeiro? Não há mais critérios. O que se pode dizer? Tudo, porque limites já não há.

A era da técnica e das redes sociais, que prometiam a democratização da informação, desenvolveram um vocabulário próprio; estabeleceu-se um novo jogo de linguagem. No lugar do paraíso da horizontalidade, o inferno da barbárie interior que se exterioriza. (“Hipocrisia, que falta você faz”, diz Hélio Schwartsman.) Será que a blogueira que comemorou a morte do neto de Lula externaria o pensamento na fila do banco?

No princípio era o Verbo. E no fim, o que será? No final era o whattsapp? O facebook?

Nenhum homem é uma ilha. A morte de todo ser humano diminui a nós, que somos parte da humanidade. Talvez as palavras, sempre as palavras, de John Donne nunca tenham sido tão urgentes.

Mas um alerta: não pergunte, afinal, por quem os sinos dobram. A resposta pode vir pelo WhatsApp.

(Pergunto mais uma vez aos macartistas que recusam as regras do jogo de linguagem da decência e aderem ao jogo das redes, e já têm – sempre – comentários prontos: senhoras e senhores, perdemos todo senso de decência?)

Post scriptum: gesto humano foi, dentre outros, o demonstrado por Gilmar Mendes, conforme noticiou Mônica Bergamo (aqui). Também me emocionei quando li a matéria de Mônica. E entendi melhor ainda a minha emoção anterior.

Redação

13 Comentários

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  1. Algumas vezes comentava em tom de brincadeira que so a arte nos salva. Pois cada vez mais tenho esse sentimento de que apreciar as coisas simples, amar o belo, a poesia, a musica, as plantas, os animais, as crianças; coisas prosaicas, banalizadas, mas é o amor ao que faz produzir, ao que ilumina, transcende, sensibiliza, nos toca; são essas as coisas que nos faz humanos, nos sentir proximos ao outro, sem necessariamente conhecê-lo. Como diza Tom Jobim pouco antes de morrer “os meninos e meninas ja não sabem mais os nomes dos bichos e das plantas…” E essa geração ficou meio autômata e vazia.
    Quanto a Bolsonaro e seus filhos são pessoas muito carentes de tudo o que cito acima.

  2. Acho que essa minoria de brasileiros que se acham elite considere a família do Lula menos “gente” que a deles… é preconceito de classe, do mais mesquinho, do mais baixo e nojento. Deus não tem nada a ver com isso, pois Jesus (em quem eles tão acreditam) disse: “Melhor lhe seria que se lhe atasse em volta do pescoço uma pedra de moinho e que fosse lançado ao mar, do que levar para o mal a um só destes pequeninos. Tomai cuidado de vós mesmos” (Lc. 17,2).

  3. Há mais ou menos sessenta mil anos, o primeiro homem começou a pensar, criando os simbolos, a linguagem, a cultura e tudo isso culminou na internet, nas redes sociais, com as quais os humanos estão deixando de se comunicar, substituindo agora as palavras pelos instintos, regredindo à idade da pedra lascada.

  4. Imaginou-se que após Auschwitz a Humanidade, ou melhor dizendo, os “civilizados”, tomariam jeito.
    Triste engano: se não o replicamos na totalidade, o fizemos em partes que, no final, acabaram ficando maior.
    E não demorou muito: ainda na concomitância dessa vergonha tivemos dois ataques nucleares desnecessários que torraram mais de duzentas mil vidas e um ataque aéreo do estilo “vingança”-bombardeio de Dresden, numa Alemanha já derrotada.
    Desde então a sequência não parou. Imaginava-se que mais e melhor integrados após os estupendos avanços tecnológicos talvez amainasse um pouco esse nosso “esporte” favorito que é a auto destruição.
    Outro triste engano: com as (ben)ditas redes (nada)sociais abriram-se as portas de outros infernos. Ficou bem mais fácil e seguro expelir o fel estocado nos corações e mentes.
    Um coletivo enraivecido causa medo. Mas há uma certa contenção provinda da fiscalização mútua. Já um homem só e num pseudo anonimato se transforma num monstro.
    Nessa empreitada, não há distinções de raça, nacionalidade, origem social, sexo…Quem poderia e deveria se conter, a exemplo de figuras públicas que menosprezam a magnificência do cargo, caso de uma JUÍZA DE DIREITO que pelo tuíte fez piada com o Guilherme Boulos tendo como “inspiração” a tragédia do neto de Lula.
    A Humanidade não muda e nunca mudará.

  5. A mim parece que vivemos em transe coletivo, sob constante terror, sob o império do medo. O frequentador de redes sociais agride por ter certeza absoluta – ou mais apropriadamente, subjetiva percepção – de que só está se defendendo. “Os outros todos é que querem me agredir, querem tomar o que é meu.” Datena que o diga…

    Não podíamos ter deixado a iniciativa privada tomar conta da Internet. Estimular fissuras, medos e carências, aterrorizar, incomodar para vender conforto estimula o consumo, é bom para as vendas mas… olha só o estado em que ficamos!

    O certo, a meu ver, seria tomarmos algum antídoto anti-propaganda comércio-ideológica-capitalista. Mas se não participarmos dessa loucura, sentimo-nos excluídos. E exclusão é a maior ameaça que o capitalismo nos impõe, um sistema que tripudia sobre nossa necessidade fundamental de pertencimento.

    “Não leia revistas de beleza. Elas só te farão sentir-se feia.”
    (Mary Schmich, Chicago Tribune, 01/07/1997)

    Até esse artigo de jornal, firme alerta contra o consumismo, o sistema transformou. A autora intitulou-o “Conselhos, assim como a juventude, provavelmente desperdiçados pelos jovens”. O capitalismo transformou em “Use filtro solar”, um apelo ao consumo de cosmético. Da mesma forma com que fez da Liberdade uma calça de brim, “velha”, “azul e desbotada que você pode usar como quiser”.

    Mas tem saída, sim. Buscar pertencimento entre os que realmente o querem e o têm para dar (e não aquele simulacro de pertencimento comprável e vendável).

  6. O paradoxo do qual fala o comentário de WG. Um salto tecnológico que permite que avioes guiados por computadores, sem um piloto, devastem um país, é a mesma tecnologia que permitiria a todos descobrirem através da arte e do conhecimento tudo de mais sublime , generoso e transcendente que a humanidade criou. Mas isto seria transformar a piramide social numa “Terra plana” pois seres humanos plenos nao permitiriam a injustiça social. Seria ameaça fatal a essas poucas familias que concentram toda riqueza mundial. Portanto era óbvio que esses poucos sanguessugas usariam a tecnologia pra hipertrofiar tudo de cruel que possa existir no ser humano. Eduardo e a blogueira Alessandra seriam os precursores de uma nova espécie? O filósofo que queria que cortássemos os ” ramos fracos da videira” (pessoas com algum problema de saúde ou menos capacidade intelectual ou etnias asssim considerada)… para que esse “rebotalho” nao atrasasse o surgimento do super-homem. É o que esse pessoal deseja: exterminar quem defenda direitos iguais a todos pra permitir que vivam apenas aqueles detentores de uma suposta meritocracia. Que tal, Lenio, ter uma entrevista na guaiba aparteada pelo novo membro da equipe da rádio, aquele que pergunta “distribuem camisinhas mas proibem o assédio?” e que diz sobre o contexto da morte de Arthur: “é isso que acontece com quem mexe com o que é público”

  7. CARACAS

    Deixa DEUS fora disso talquei ??!!

    Esse problema é ASSUNTO NOSSO, dos brasileiros

    Se a maioria esta acuada e acovardada, e tal qual os discípulos de JESUS CRISTO, na hora H, quando ele precisava mais deles, resolveram dar as costas ao seu líder e fugiram de medo, isso é outra parada

    fato – morro de vergonha de andar pelas ruas do BRASIL e de ter a sensação de que nada esta acontecendo de fato em prol da JUSTIÇA ..de que toda essa barbaridade que vem sendo cometida por uma MINORIA sociopata, esta sendo aceita sem a menor resistência ..e depois falavam dos escravos sem luta ou dos judeus..

  8. Esse texto expressa exatamente a situação real do ser desumano em que se transformaram certas criaturas. As redes sociais são, infelizmente, locais onde os frustrados se aproveitam pra vomitar toda a podridão de seu interior. Mas não se esqueçam, a justiça na Terra tá podre, porque permite essas atrocidades, mas a de Deus não passa a mão na cabeça de ninguém. Afinal, Deus acima de todos, não é?

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