Jose Luis Fiori
José Luís Fiori - Professor emérito dos Programas de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), da UFRJ. Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ,
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A Esquerda e o Governo: suas ideias e lições históricas, por José Luís Fiori

Nesse momento, para não perder a luta pelo futuro, é fundamental que a esquerda releia e repense sua própria história, em particular a história de sua relação com o governo

A Esquerda e o Governo: suas ideias e lições históricas

por José Luís Fiori

Entre 1922 e 1926, Leon Blum desenvolveu uma distinção conceitual entre a “conquista do poder” e o “exercício do poder”. A “conquista do poder” era uma ideia revolucionária embora não fosse necessariamente um ato violento, que levaria a uma nova ordem social baseada em novas relações de propriedade [..] E o segundo conceito – de “exercício do poder” – funcionaria como uma justificação teórica para quando o Partido Socialista Francês fosse obrigado a governar, antes que as condições da conquista do poder estivessem maduras” – Sassoon, “One Hundred Years of Socialism”, Fontana Press, London, 1997, p. 53

Ao começar a terceira década do século XXI, a esquerda e as forças progressistas da América Latina estão sendo chamadas para governar o México e a Argentina, e o mesmo deve acontecer no Chile e na Bolívia, depois de suas eleições presidenciais de 2020. E não é impossível que isto se repita no Brasil, e até mesmo na Colômbia, depois de 2022. Num momento em que cresce em todo o continente latino-americano – menos no Brasil, por enquanto – a consciência de que as políticas neoliberais não conseguem atender à necessidade de um crescimento econômico acelerado, nem muito menos a urgência da eliminação da miséria e da diminuição da desigualdade social. Mas em um momento em que também cresce a consciência de que o velho modelo nacional-desenvolvimentista esgotou seu potencial, depois de completar a agenda da Segunda Revolução Industrial, e depois perder o apoio norte-americano, no final dos anos 70.

Mesmo no caso do “social-desenvolvimentismo” do governo Lula, que teve um grande sucesso econômico e social em seus primeiros dez anos, discute-se ainda hoje por que ele não conseguiu dar uma resposta adequada à desaceleração da economia mundial, à perda do seu apoio empresarial e ao boicote parlamentar que sofreu das forças conservadoras. Muitos ainda pensam que tudo foi consequência de algum “erro” de política econômica, quando de fato o governo foi surpreendido por uma grande mutação sociológica interna, promovida por suas próprias políticas, e por um “tufão” geopolítico e geoeconômico internacional que colocou o Brasil de joelhos, numa “bifurcação histórica” em que as fórmulas e soluções tradicionais já não funcionam mais.

Nesse momento, para não perder a luta pelo futuro, é fundamental que a esquerda releia e repense sua própria história, em particular a história de sua relação com o governo, e com a dificuldade de governar e reformar – a um só tempo – uma economia capitalista periférica e extremamente desigual.

O problema da “gestão socialista” do capitalismo só se colocou efetivamente para os partidos socialistas e comunistas europeus no momento em que foram chamados a participar, de forma urgente e minoritária, nos governos de “unidade nacional” e nas “frentes populares” que se formaram durante a Primeira Guerra Mundial e a crise econômico-financeira de 1929/30.[1] Duas situações “emergenciais” em que a esquerda abriu mão – pela primeira vez -–de seus objetivos revolucionários para ajudar as forças conservadoras a responderem a um desafio grave e imediato que ameaçava suas nações.

Naquele momento, os principais problemas eram o desemprego massivo e a hiperinflação, provocados pelo colapso das economias europeias, e os partidos de esquerda não tinham nenhuma posição própria sobre este assunto, que não estava previsto, literalmente, nos seus debates doutrinários do século XIX. Por isso, quando foram chamados a ocupar posições de governo, e em alguns casos os próprios ministérios econômicos, acabaram repetindo as mesmas ideias e políticas ortodoxas praticadas pelos governos conservadores de antes da guerra. A notável exceção foram os social-democratas suecos, que enfrentaram a crise de 30 com uma política original e ousada de incentivo ao crescimento econômico e ao pleno emprego, através das políticas anticíclicas propostas pela Escola de Estocolmo, de Johan Wicksell.

Logo depois da Segunda Guerra, ao conquistar o governo da Inglaterra e da Áustria, Bélgica, Holanda e da própria Suécia, os trabalhistas ingleses e os governos social-democratas desses pequenos países experimentaram, com grande sucesso, um novo tipo de “pacto social” visando regular preços e salários, e um novo tipo de planejamento econômico democrático, inspirado na própria experiência das duas Grandes Guerras. Depois disso, já nos anos 50, a esquerda europeia acabou formulando progressivamente as ideias básicas de duas grandes estratégias fundamentais: a primeira e mais bem-sucedida, de construção do “Estado de bem-estar social”, adotado por quase todos os partidos e governos social-democratas e trabalhistas da Europa, nas décadas de 60 e 70; e a segunda, associada mais diretamente aos comunistas franceses, que propunha a construção de um “capitalismo organizado de Estado”, mas que foi muito pouco utilizada pelos governos social-democratas daquele período, apesar de ter exercido grande influência sobre a esquerda “nacional-desenvolvimentista” latino-americana.

O programa social-democrata de construção do “Estado de bem-estar social” combinava uma política fiscal ativa do “tipo keynesiano”, com o objetivo do pleno emprego, através da construção de sistemas de saúde, educação e proteção social públicos e universais, junto com um forte investimento estatal em redes de infraestrutura e de transporte público. Já o projeto do “capitalismo” propunha a criação de um setor produtivo estatal que fosse estratégico e que liderasse o desenvolvimento de uma economia nacional capitalista dinâmica e igualitária.

A partir dos anos 80, mas sobretudo depois da “Queda do Muro de Berlim” e da crise do comunismo internacional, os socialistas e social-democratas europeus aderiram à grande “onda neoliberal” iniciada e difundida pelos países anglo-saxões. Nesse período, a transição democrática e o neoliberalismo do governo socialista de Felipe González transformaram-se numa espécie de um “show case” que teve grande impacto sobre a esquerda mundial, e de maneira particular, sobre a esquerda latino-americana. Muito mais do que a “deserção keynesiana” do governo de François Mitterrand, com seu estatismo mitigado e “gaullismo europeizado”. González foi eleito com um programa clássico de governo de tipo keynesiano, com um plano negociado de estabilização e crescimento econômico voltado para o pleno emprego e para a diminuição da desigualdade social. Mas logo no início do seu governo, assim como Mitterrand, González abandonou sua política econômica inicial e seu projeto de “Estado de bem-estar social”, trocando a ideia de um “pacto social” pela ortodoxia fiscal e o desemprego, como forma de controlar preços e salários, e abandonando completamente a ideia de utilização e fortalecimento do setor produtivo estatal espanhol, que vinha do período franquista e era bastante expressiva.

No final do século XX, entretanto, já havia ficado claro que as novas políticas e reformas neoliberais tinham diminuído a participação dos salários na renda nacional, restringido e condicionado os gastos sociais, acabado com a segurança do trabalhador e promovido um aumento gigantesco do desemprego, sobretudo no caso espanhol. Com o passar do tempo, foi ficando claro que as novas políticas tinham um viés fortemente “pró-capital”, como no caso das políticas anteriores, mas não produziam os mesmos resultados favoráveis aos trabalhadores, como foi o caso do “Estado de bem-estar social” e do pleno emprego do ”período keynesiano”. Como consequência, a esquerda europeia sofreu sucessivas derrotas eleitorais e acabou perdendo inteiramente sua própria identidade, ao contribuir para a destruição de sua principal obra, que havia sido o “Estado de bem-estar social”. Culminou com o caso dramático da vitória e humilhação sucessiva, pela União Europeia, do governo de esquerda de Alexis Tsipas, na Grécia, em 2015. Dali para a frente, o que se assistiu foi um avanço generalizado das forças de direita e uma verdadeira “ressaca progressista” que só começou a se dissipar recentemente, com a vitória eleitoral e a formação dos governos de esquerda em Portugal e na Espanha, apesar de ainda não se ter uma perspectiva bem clara sobre o seu futuro nesta terceira década do século XXI.

Na América Latina, a história da esquerda e de sua experiência governamental seguiu uma trajetória diferente da Europa, mas sofreu grande influência das ideias e estratégias discutidas e seguidas pelos europeus. De forma muito sintética, pode-se afirmar que tudo começou com a proposta revolucionária do Plano Ayala, apresentado em 1911 pelo líder camponês da Revolução Mexicana, Emiliano Zapata. Zapata propunha a coletivização da propriedade da terra e sua devolução à comunidade dos índios e camponeses mexicanos. Zapata foi derrotado e morto, mas seu programa agrário foi retomado alguns anos depois, pelo presidente Lázaro Cárdenas, um militar nacionalista que governou o México entre 1936 e 1940 e criou o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o país durante quase todo o século XX. O governo de Cárdenas fez a reforma agrária, estatizou as empresas estrangeiras produtoras de petróleo, criou os primeiros bancos estatais de desenvolvimento industrial e de comércio exterior da América Latina, investiu em infraestrutura, fez políticas de industrialização e proteção do mercado interno mexicano, criou uma legislação trabalhista, tomou medidas de proteção social dos trabalhadores e exercitou uma política externa independente e anti-imperialista.

O fundamental dessa história, no entanto, para a esquerda latino-americana, é que esse programa de políticas públicas do governo de Cárdenas se transformou, depois dele, numa espécie de denominador comum de vários governos latino-americanos – “nacional-populares” ou “nacional-desenvolvimentistas” – como foi o caso de Perón, na Argentina; de Vargas, no Brasil; de Velasco Ibarra, no Equador; e de Paz Estensoro, na Bolívia. Nenhum deles era socialista, comunista ou social-democrata, nem mesmo era de esquerda, mas suas propostas políticas e posições no campo da política externa se transformaram numa espécie de paradigma básico que acabou sendo adotado e apoiado por quase toda a esquerda reformista latino-americana, pelo menos até 1980.

Em grandes linhas, foram esses mesmos ideais e objetivos que inspiraram a revolução camponesa boliviana de 1952; o governo democrático de Jacobo Arbenz, na Guatemala, entre 1951 e 1954; a primeira fase da revolução cubana, entre 1959 e 1962; o governo militar reformista do general Velasco Alvarado, no Peru, entre 1968 e 1975; e o próprio governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973. No caso de Cuba, entretanto, a invasão de 1961 e as sanções americanas apressaram a opção socialista, que levou o governo de Fidel Castro à coletivização da terra e a estatização e planejamento central da economia. O mesmo modelo que orientaria, mais tarde, a primeira fase da revolução sandinista da Nicarágua, de 1979, e o próprio “socialismo do século XXI”, proposto pelo ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez que voltou a despertar a ira dos Estados Unidos e acabou transformando a Venezuela no segundo país da América Latina a desafiar a Doutrina Monroe. (CONTINUA)

 

28 de janeiro de 2020

[1] Este artigo reedita, atualiza e desenvolve informações e ideias que apareceram no texto “Olhando para a esquerda latino-americana”, publicado em Diniz, E. (Org). Globalização, Estados e Desenvolvimento, FGV Editora, Rio de Janeiro, 2007.

Jose Luis Fiori

José Luís Fiori - Professor emérito dos Programas de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), da UFRJ. Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ,

2 Comentários

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  1. Meu assunto é outro.Antes que me esqueçam
    e espalhem que digo amém para Lula em tudo,adianto que essa chapa com Flávio Dino não vai a lugar nenhum,principalmente depois que Tarso Genro entrou na parada.Ele atuava como uma espécie de Olavo de Carvalho,com sinais trocados de Dilma Rousseff,e foi responsável pela criaçao da inesquecível “República Gaúcha”.Tomara que eu esteja errado.

  2. Sobre o artigo acima, aponto uma falha: o autor ignora a política interna e o ciclo vicioso da classe dominante que impõe sua agenda contra os interesses de Soberania Nacional e da sociedade como um todo. Lula acertou na intenção de que a medida que a educação fosse universalizada e inclusiva, a cultura de forma consistente mudaria o status quo dessa mentalidade colonizada. Lula erra ao ser mal subsidiado de informações e acreditar no respeito às Instituições. O que vem daí é o que sabemos. A analogia disso é culpar a ‘mocinha porque esta de minissaia’. Houve a afronta e destruição do Estado de direito. “..com supremo e tudo…”. A era da ingenuidade no país acabou. O Brasil retrocedeu a política das cavernas: “o meu é maior que o seu”.

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