A esquerda latino-americana ainda não está morta

O que diferencia a Bolívia e o Uruguai é a força dos laços entre os partidos de esquerda e os movimentos sociais aliados. O contrário disso influenciou a falta de responsabilidade e capacidade de resposta na Venezuela, Brasil e Chile

Reuters / Agustin Marcarian

Por Santiago Anria e Kenneth M. Roberts

No The Conversation

Argentina, Bolívia e Uruguai realizarão eleições presidenciais em outubro. E, por enquanto, os esquerdistas são fortes candidatos nos três países.

Este é um desempenho um tanto inesperado. A partir de 2015, os conservadores derrubaram os principais redutos da esquerda, incluindo Brasil, Argentina e Chile. A esquerda latino-americana socialmente progressista foi declarada morta várias vezes.

Mas a vitória do populista de esquerda Andrés Manuel López Obrador no México em julho de 2018 mostrou que os ventos políticos da América Latina nem sempre sopram na mesma direção.

Então, o que se pode aprender com os fracassos e sucessos dos partidos e governos de esquerda da América Latina no passado muito recente?

“Curva à esquerda” da América Latina

Cerca de dois terços de todos os latino-americanos viviam sob alguma forma de governo de esquerda até 2010 – uma “maré rosa” que tomou conta da região após a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998.

Apenas alguns países – principalmente Colômbia e México – permaneceram sob liderança política conservadora durante esse período.

Os acadêmicos agruparam convencionalmente essa esquerda latino-americana em dois campos.

Havia a esquerda “social-democrata” moderada do Brasil, Chile e Uruguai, que adotava uma agenda de igualitarismo e aceitava os preceitos básicos da economia de mercado.

Esse grupo geralmente era contrastado com a esquerda “populista” mais radical que governava Venezuela, Bolívia , Nicarágua e Equador. Esses governos compartilhavam o compromisso da esquerda moderada com mudanças sociais progressivas, mas tinham objetivos mais ousados: uma alternativa à economia de mercado e mudanças profundas nas instituições políticas.

Esses agrupamentos pouco fizeram para prever os destinos divergentes desses países.

Em alguns lugares, os governos de esquerda permaneceram populares, vibrantes e competitivos eleitoral após mais de uma década no poder – a Bolívia e o Uruguai.

Mas em 2015, Brasil, Venezuela e Nicarágua se tornaram catástrofes políticas e econômicas. O governo esquerdista do Chile caiu drasticamente em popularidade.

A tentação conformista

Nossa pesquisa em ciência política identifica algumas fraquezas compartilhadas da esquerda latino-americana.

A primeira lição vem do Partido dos Trabalhadores, que governou o Brasil entre 2003 e 2016.

Como muitos partidos progressistas, os líderes fundadores do Partido dos Trabalhadores eram idealistas – comprometidos com a política brasileira como de costume.

Sob o Partido dos Trabalhadores, o Brasil experimentou uma expansão maciça dos direitos de cidadania social. Em 2008, o presidente brasileiro Lula da Silva era indiscutivelmente o presidente mais popular do mundo.

Mas o Partido dos Trabalhadores se separou dos movimentos sociais que defendia. Profundamente imerso na normal – e até corrupta – troca [de cargos] e devolução [de favores] da política brasileira, o partido foi moldado pelo sistema defeituoso que procurava mudar.

Chamamos essa armadilha de “tentação conformista”.

O governo do Partido dos Trabalhadores terminou com o impeachment de 2016 da presidente Dilma Rousseff, sucessora escolhida a dedo por Lula. Embora a própria Dilma não tenha enfrentado acusações de corrupção, o Partido dos Trabalhadores deixou o poder associado a escândalos de corrupção, violações de financiamento de campanhas e má administração econômica – os problemas exatos que prometera corrigir.

O Partido Socialista do Chile teve um destino semelhante.

Sob os presidentes Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, esquerdistas moderados que governaram o Chile quase ininterruptamente de 2001 a 2018, o partido se distanciou de seus apoiadores em movimentos sociais.

Em 2011, estudantes e professores começaram a protestar contra os baixos níveis de financiamento da educação pública do Chile e a alta desigualdade. O movimento de protesto juvenil cresceu, expondo a decepção dos chilenos pelo progresso limitado dos socialistas nas reformas sociais.

Essas divisões à esquerda permitiram que a forte ala direita do Chile vencesse as eleições presidenciais de 2018 em Chile.

A tentação autocrática

As crises na Venezuela, Nicarágua e Equador resultam de uma falha fatal diferente.

Nesses três países, os líderes esquerdistas sucumbiram ao que chamamos de “tentação autocrática” – a ideia de que um líder carismático ou movimento político popular não só pode falar por uma nação inteira, mas ainda pode fazê-lo para sempre.

Como muitos líderes autoritários, Nicolás Maduro, da Venezuela, e Daniel Ortega, da Nicarágua, perderam contato com seus eleitores. Quando os líderes se tornam muito isolados, as pesquisas mostram que as salvaguardas contra a corrupção e políticas públicas irresponsáveis ​​enfraquecem.

Os líderes autoritários têm menos probabilidade de mudar de rumo quando as coisas dão errado.

As consequências podem ser devastadoras – como o flagrante fracasso de Maduro em ajustar as políticas cambiais da Venezuela durante sua queda na crise econômica e na hiperinflação.

A liderança autoritária degradou a democracia na Venezuela, Nicarágua e Equador de outras maneiras também. Os freios e contrapesos da autoridade presidencial foram enfraquecidos e as liberdades de imprensa, restringidas. Na Venezuela e Nicarágua, o processo eleitoral foi [supostamente] manipulado.

A tentação autocrática de leonizar um líder fundador carismático também enfraquece o partido político, tornando extremamente difícil o surgimento de novos líderes e a continuidade da agenda transformadora de longo prazo do partido.

Na Nicarágua e na Venezuela, isso significa que os autocratas se apegaram ao poder.

No Equador, os atuais e ex-presidentes – Lenín Moreno e Rafael Correa – estão envolvidos em uma disputa amarga. Os protestos abalaram o Equador devido às mudanças na política econômica de Moreno, afastadas da agenda de Correa.

Exceções esquerdistas

Então, o que explica a resiliência da esquerda na Bolívia e no Uruguai, onde os partidos de esquerda reduziram a desigualdade e fizeram um tremendo progresso em direção à inclusão social e política? Os candidatos de esquerda estão votando bem nas corridas presidenciais de ambos os países.

Em nossa avaliação, o que diferencia a Bolívia e o Uruguai é a força dos laços entre os partidos de esquerda e os movimentos sociais aliados de lá. Isso incentivou a falta de responsabilidade e capacidade de resposta na Venezuela, Brasil e Chile.

A sociedade civil na Bolívia e no Uruguai também manteve sua capacidade de mobilização independente, restringindo qualquer possível escorregamento à autocracia ou à ambição desenfreada.

Isso pode explicar por que a Bolívia até agora evitou as piores consequências sociais e econômicas da tentação autocrática – apesar de seu carismático presidente indígena, Evo Morales, eliminando limites de mandato e consolidando poder nos últimos 14 anos.

Na Argentina, o possível retorno da esquerda tem mais a ver com a má administração econômica do presidente conservador Mauricio Macri. Mas o ingresso de centro-esquerda que lidera a corrida presidencial da Argentina também teve sucesso porque os candidatos formaram uma ampla coalizão nacional – que inclui uma série de movimentos sociais, de sindicatos a grupos feministas.

A esquerda latino-americana ainda tem vida.

Santiago Anria é professor assistente de Ciência Política e Estudos da América Latina na Dickinson College. Kenneth M. Roberts é professor e diretor do Programa de Estudos da América Latina da Universidade de Cornell

Redação

4 Comentários

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  1. Atenção redação.
    Tenho a infomação no grupo de anistiados politicos dos Correios que o Vilasboas faleceu. Essa informação, segundo que postou lhe foi passada por gente bem posicionada em Brasília.
    Apurem a veracidade disso.
    Até agora a “grande imprensa” não deu nada.

  2. A Venezuela vive sob ataque estadunidense, comparável ao que sofre o Irã. Principalmente pós 2013, ou seja, após a morte de Chávez. Coincidentemente, é o momento em que Obama eleva os ataques ao governo Dilma, que, aqui, tiveram enorme e completo sucesso. E os “especialistas”, que elegeram Trump, trazem suas receitas e análises, que nada dizem. Derrotem Trump, Obama, Clinton et caterva primeiro, para depois virem fazer análises e nomear os que sofrem com suas guerras.

  3. E aqui a esquerda não se une na imensa importância da pauta #LulaInocente #LulaLivre, que representa atualmente a autonomia do Brasil enquanto nação. Todas as lideranças partidárias deveriam estar se programando a eventos corriqueiros de manifestações públicas com essa pauta Lula livre. Bloqueios de rodovias em prol de Lula inocente. Ações com mais vigor, virtude maquiavélica inclusive, visto que o que fizeram com Lula é imensa ameaça a todos nós, principalmente quem não concorda com o regime. Como permitir tamanho abuso de poder? Essa é a conscientização de “liga”, a que pode fornecer o “éter” que ligaria o interesse em comum numa catarse por justiça e proteção dos direitos. Mas cadê? Cadê a sabedoria da esquerda? Está no ressentimento de que o PT abandonou as bases, a esquerda. E Lula, agora, paga exatamente por ter sido mais conciliador? É isso a sabedoria e maturidade da esquerda? Esse sectarismo ressentido? Ou a sabedoria da esquerda está na esperança republicana que o stf vai devolver os direitos a Lula e ele será candidato de novo? É isso? Sério?

  4. Há alguns erros no artigo. A esquerda governou o Chile de 1990 ate 2010, elegendo varios presidentes da chamada Concertacion. A sequència de presidentes social-democratas foi interrompida em 2010, quando foi eleito o Pinera em seu primeiro mandato. Chama atencão ainda a total omissao em relacao ao papel dos EUA no que acontece aqui, mas nao surpreende tendo em vista a nacionalidade dos autores.

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