A estátua e a liberdade, por Rogério Mattos

A transformação da bailarina Razão na rainha Liberdade também é uma questão de estilo e de bons costumes.

A rainha sendo entronizada, na França, antes de iluminar a América

A estátua e a liberdade, por Rogério Mattos

A Estátua da Liberdade foi inaugurada em 28 de outubro de 1886. Quatro anos antes, ficara pronta em seu solo de origem, a França. A princípio um projeto imperial, as despesas da guerra franco-prussiana e o colapso generalizado da sociedade francesa durante o reinado do imperador à romana, Napoleão III – proto-fascista como seu tio, porém sem a genialidade do mesmo –, a Estátua, oficialmente, seria presenteada aos norte-americanos como símbolo da antiga amizade franco-americana, primordial na conquista da Independência pelos americanos do norte. Inicialmente concebida por uma facção republicana financiada pelo erário régio, a estátua serviria por parte do imperador, simbolicamente, como reconhecimento dos anos que passou estudando e conhecendo as tradições do país modelo da democracia no mundo. Napoleão III, realmente, foi filho da democracia. Chegou ao poder através de um golpe eleitoral-demagógico, proclamando-se logo em seguida imperador. Sem seus anos de estágio no norte da América, talvez não tivesse a oportunidade de conceber sua única ideia original em toda a vida e que lhe rendeu fama nos livros de história: o golpe de Estado. Porém, como era complicada a situação financeira do império, devastado pela guerra ranco-prussiana, ainda que não seja uma contradição em si um império homenagear uma república, o projeto de construção da estátua foi adiado, sendo novamente restabelecido após a queda do último dos napoleões. O fim da Guerra de Secessão serviu de marco para os intelectuais franceses deslancharem o projeto da homenagem. Se a Revolução Francesa foi um projeto frustrado de se estabelecer neste país um sistema constitucional tal como elaborado pelo círculo de dirigentes ao redor de George Washington e Benjamin Franklin, através de Bailly e Lafayete, na França, tropeçando em seguida no terror jacobino e no fascismo napoleônico, a construção da Estátua da Liberdade foi a materialização na América da deusa pagã idolatrada durante o Terror e só destronada temporariamente pelo primeiro dos fascistas, Napoleão. O Colosso de Rhodes, inspirador da obra, só é colosso na medida em que essa palavra significa o objeto de adoração nas representações religiosas da Antiguidade, adquirindo seu significado contemporâneo somente a partir de seu tamanho físico, sendo esquecida sua função ritual. Como diz Carlo Ginzburg, “o dogma da transubstanciação, na medida em que negava os dados sensíveis em nome de uma realidade profunda e invisível, pode ser interpretado (pelo menos por um observador externo) como uma vitória extraordinária da abstração1”. Quer dizer o historiador italiano que a troca dos objetos rituais, tais como as relíquias dos mártires e as imagens dos santos, ainda representações de um além, não tinham o caráter de presença exemplificado pelo dogma em que se entende o corpo e o sangue de Cristo no pão e no vinho, ou seja, o dogma da transubstanciação ou o significado ritual da eucaristia: a presença de Cristo aqui e agora. Posteriormente, um bastão, uma coroa, um brasão ou um escudo, tudo passa a significar não somente a representação da realeza, mas sua presença dentro de seus domínios. Uma presença ritualizada, não espontânea e não real, é verdade, mas esse o foi o desenvolvimento próprio do Antigo Regime dentro do quesito da adoração das imagens sagradas, ou de um contato com um além. O mundo dos mortos, o mundo que governa os vivos, se encarna na figura do rei, sendo ele não só representante, mas o próprio Deus na Terra. O contato com o além passa a se dar de maneira imediata. Assim, difunde-se por todos os cantos, pois não pertence mais apenas aos lugares sagrados. O além passa a se tornar terrível, como só o protestantismo poderia compreender em suas aspirações pela liberdade primitiva cristã, como exemplificado por Lutero: o além deixa de ser um mero invisível ou acessível através de determinados rituais; o além é uma abstração real no autoritarismo dos Estados monárquico-ilustrados desenvolvidos depois do século XVI. A transformação da bailarina Razão na rainha Liberdade também é uma questão de estilo e de bons costumes. A degeneração completa do reino francês a partir de uma sucessão de líderes fracos ou autoritários, fez um país parcamente industrializado, com cidades semi-desenvolvidas repletas de mendigos, prostitutas e canalhas, como se numa antiga sociedade escravocrata ou abalada por uma profunda guerra, pelo menos desde Luís XV. A bailarina reinou em seus bordéis onde se gestou a revolução da guilhotina e da desordem, e deram-lhe um nome belo, Razão, uma ficção nominal e uma fantasia na construção de personagens que só as prostitutas são capazes de fazer. Na terra da Independência, a primeira a heroicamente desenhar uma Constituição, não se aceitaria a presença tão ostensiva de uma meretriz, pelo menos não se trajando vulgarmente e com um nome comum como Marianne. Deram aos norte-americanos, portanto, uma abstração: a Liberdade. Os antigos deuses e toda uma simbologia magística voltaram a ser usados e adorados na voga espiritualista no século XIX. A antiga deusa Cibele volta como Marianne, Britânia, como liberdade e como razão. Não é mais uma deusa adorada nas representações ritualísticas dos altares devidamente esculpidos para dar jus aos colóssos, e sua presença se dá não apenas pela iconografia do tempo dos chamados “déspotas esclarecidos”. A antiga deusa aparece novamente em forma de arte, com barrete frígio, com louros romanos, com véus esvoaçantes mal escondendo sua nudez, e, mais importante, como portadora da palavra de ordem, da liberdade e da democracia. Ela é uma abstração não tão concreta quanto a simbologia dos reis absolutistas. A Estátua da Liberdade é, com sua tocha flamejante, com seu olhar que norteia todas as atenções da grande Manhattan, o produto melhor acabado da sociedade do controle desde o protótipo fundador, o panóptico de Jeremy Bentham. É a simbologia mais abstrata, mais complexa e profunda, que nem Hitler foi capaz de materializar. Sua suástica é um experimento fracassado frente ao sucesso da Britânia que invade a América, que é retratada triunfante na instituição vigilante de Hollywood, e os banqueiros e demais viciados em jogatina lhe prestam homenagem todos os dias a partir das ruas iluminadas de Wall Street. A mitologia em torno da simbologia maçônica na Estátua da Liberdade é uma piada frente à distinção fundamental que se opera com a queda do Antigo Regime. A ausência de representação pregada por Rousseau e pelos jacobinos não é nada mais do que uma deturpação do projeto original debatido na França e realizado nos EUA de deslocar a representatividade política da divindade dos reis para a impessoalidade de uma constituição nacional, delimitadora de todas as leis e deveres de um país soberano. É uma deturpação por transportar a representatividade concretamente estabelecida no código de lei, firmemente atada aos pressupostos científicos, morais, e o respeito e conhecimento das leis naturais que guiaram os Pais Fundadores, produzindo a impessoalidade necessária à administração da coisa pública, para uma representatividade abstrata, regida por palavras de ordem e discursos morais, que alça o povo demagogicamente ao papel de líder inconteste da nação ao mesmo tempo em que o tutela com todo um panteão de simbologias obscuras e mal intencionadas. Essa foi a pureza do Terror, a razão da guilhotina, e a liberdade do deus cabalístico chamado Mercado, mas que poderia ser chamado de Mitra, Apolo ou Cirene, os verdadeiros bancos do mundo antigo. As pitonisas da Antiguidade bem podem ser nossos analistas financeiros e políticos, nossos acadêmicos engalanados e artistas deslumbrados em serem nada mais do que serem meros serviçais do mundo sagrado onde vivem os verdadeiros deuses do Olimpo. São todos intérpretes das palavras inarticuladas do velho Oráculo, não mais o de Delfos, mas do Império Invisível com a boca arregalada do anjo de Klee, que nos devora em meio a tempestade produzida por suas asas. O Angelus Novus, como visto por Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito de história, é a história à contrapelo das imagens com que se querem representar a liberdade. NOTA 1 GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. Companhia das Letras: São Paulo, 2001, p. 103. Esse texto é uma continuação das reflexões feitas sobre as Teses, de Walter Benjamim, O olhar petrificante. Esse texto pode ser lido em Pdf no Academia.edu. Clique aqui. Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.
Redação

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