A etnia Uigur de Xinjiang e a Guerra Fria contra a China, por Ruben Rosenthal

Como parte da campanha para deter a ascensão econômica da China, os Estados Unidos recorrem à acusações de perseguição religiosa a muçulmanos em Xinjiang.

Província chinesa de Xinjiang, foco do separatismo uigur \ Arte gráfica: VOA

do Chacoalhando

A etnia Uigur de Xinjiang e a Guerra Fria contra a China, por Ruben Rosenthal

Antes do surgimento da crise do coronavírus e das acusações de Trump sobre “o vírus chinês”, a mídia corporativa ocidental já estava em plena campanha contra a China, ao acusar o governo de Pequim de perseguição religiosa a muçulmanos da etnia Uigur na província de Xinjiang, noroeste do país. Campanhas contra a China tem sido constantes desde a revolução comunista de 1949, que contrariou interesses econômicos e geopolíticos do Ocidente.

O recrudescimento desta campanha em diversas frentes de embate faz evocar o clima da chamada Guerra Fria entre Estados Unidos e a então União Soviética, que prevaleceu na segunda metade do século 20, e que deixava o mundo em constante sobressalto de um conflito bélico direto entre as duas superpotências, que pudesse evoluir para o confronto nuclear.

As denúncias de violação dos direitos humanos dos uigures vêm sendo difundidas desde 2017, sem que no entanto fosse verificada a veracidade das mesmas. O que também não foi revelado pela mídia, é que as fontes das acusações recebem financiamento de Washington.Segundo artigo de Ajit Singh e Max Blumenthal no blogue de notícias The Grayzone, toda a mídia corporativa, e mesmo veículos da imprensa independente, como Democracy Now!   e The Intercept  participaram da divulgação das acusações, sem qualquer investigação prévia séria.

Portanto, não constitui surpresa a adesão da mídia do Brasil a esta campanha contra a China, pois sistematicamente reproduz o noticiário das grandes agências noticiosas do Ocidente, sem a menor visão crítica.

Em fevereiro deste ano, o portal G1, associado a Oglobo, repassou informações vindas da CNN de que o governo chinês promoveu perseguições a muçulmanos integrantes da etnia Uigur, “pela prática ilegal de orações, por uso impróprio da internet, a casais que tivessem mais filhos do que o permitido pela ‘ditadura chinesa’ (sic), a homens com barba longa, e a mulheres que cobrissem o rosto com véu”.

Anteriormente, em novembro de 2019, o portal G1  já relatara que “documentos vazados mostravam que a China mantinha em campos de detenção cerca de 1 milhão de muçulmanos”. Os documentos teriam sido encaminhados ao The New York Times  por uma “fonte anônima” oriunda do escalão político chinês.

documento chines vazado
Trecho do documento chinês vazado para o The New York Times

A referida “fonte” responsabilizou o presidente Xi Jinping, por este ter anteriormente defendido “uma cura ideológica para reprimir a agitação em Xinjiang, através de um programa de doutrinação nas prisões”. Conforme também reproduzido pelo G1, “meses após o discurso do presidente chinês, campos de doutrinação começaram a ser abertos, onde cidadãos da etnia Uigur eram pressionados a renegar sua devoção ao Islã, e demonstrar lealdade ao Partido Comunista da China”.

Ainda segundo o relato difundido pelo NYT, a situação teria se agravado em 2017, quando o novo governante local iniciou uma detenção em massa de muçulmanos uigures. O documento faz também referência de que o combate ao Islã iria se estender a outras regiões da China. O Congresso norte-americano, usando como justificativa a suposta detenção de mais de 1 milhão de muçulmanos em Xinjiang, aprovou legislação em 3 de dezembro de 2019, tratando da “Política de Direitos Humanos dos Uigures”, e demandou que Donald Trump impusesse sanções econômicas contra a China, conforme relatado no The Guardian.

Para criar o clima propício que levasse à aprovação das sanções, membros do Congresso norte-americano compararam a China à Alemanha nazista: “a internação em massa de milhões (de uigures) em campos de concentração tem uma dimensão não vista desde o Holocausto”, segundo publicado pela Al Jazeera.

fardos de algodão
Fazendeiro transporta fardos de algodão em uma fábrica de Shihezi, Xinjiang 2007 \ Foto: China Photos / Getty Images

Na contramão do relato majoritário que prevaleceu nas mídias corporativas, o artigo no Grayzone considera que as acusações contra o governo chinês foram baseadas em dois estudos altamente dúbios, cuja veracidade não foi questionada.

O “primeiro estudo”  foi apresentado pela Rede Chinesa de Defensores de Direitos Humanos (NCHRD ou CHRD, na sigla em inglês), sediada em Washington, e apoiada financeiramente pela National Endowment for Democracy, o Fundo Nacional pela Democracia (NED, na sigla em inglês). Esta se trata de uma fundação privada, financiada principalmente pelo Congresso norte-americano, e cujo conselho diretor tem participação igualitária de republicanos e democratas.

O referido estudo foi baseado em entrevistas com apenas oito pessoas, e originou um relatório submetido ao Comitê na ONU para a Eliminação da Discriminação Racial. Neste relatório de 2018 foi apresentada a estimativa de que cerca de 1 milhão de pessoas da etnia Uigur haviam sido enviadas para campos de reeducação,  e que cerca de 2 milhões eram forçadas a frequentar programas de reeducação em Xinjiang, segundo a versão do CHRD.

Para se chegar às estimativas apresentadas no relatório encaminhado ao órgão da ONU, os dados obtidos a partir da pequena amostra de entrevistados em vilarejos de Kashgar foram extrapolados para uma população que totaliza 20 milhões de pessoas, analisa o Grayzone.

Uyghur Life Endures in Kashgar's Old City
Mulher uigur varrendo fora de sua casa em Kashgar \ Foto: Kevin Frayer/Getty Images

agência Reuters aproveitou para publicar em 10 de agosto de 2018, que a ONU diz possuir relatórios confiáveis de que a China mantém 1 milhão de uigures em campos secretos. No entanto, segundo o Grayzone esta notícia é falsa, pois a ONU não fez tal declaração. No documento emitido pelo Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial consta de fato menção a campos de reeducação, mas feita apenas por Gay McDougall, representante norte-americana no Comitê.

The New York Times e The Washington Post foram ávidos em denunciar a China, e pedir uma ação internacional. Mesmo o Intercept  embarcou nesta onda, com o artigo de Mehdi Hasan, “Um milhão de muçulmanos uigures foram detidos pela China, ONU afirma. Onde está a indignação mundial?”.

Com base nestes dados, o governo norte-americano acusou a China de “detenção arbitrária de 800 mil a possivelmente 2 milhões de uigures, cazaques e outros muçulmanos em campos de internação, para apagar suas identidades religiosas e étnicas”.

Ainda segundo o Grayzone, o governo chinês rejeitou as alegações dos Estados Unidos, embora reconheça que de fato estabeleceu “centros de educação e de treinamento vocacional”, para prevenir a difusão do terrorismo e do extremismo religioso. O propósito seria o de “capacitar profissionalmente um pequeno número de pessoas afetadas pela ideologia extremista, de forma que estas possam se reintegrar na sociedade”.

O “segundo estudo” que proclama que a China deteve milhões de uigures se baseou em relatos de autoria do alemão Adrian Zenz, um fundamentalista cristão de extrema direita. Zenz, que se apresenta como um pesquisador independente, é conhecido por suas posições contra o homossexualismo, igualdade de gêneros, e a favor de castigos corporais em crianças, tudo com base no cristianismo.

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Adrian Zenz, apresentado como pesquisador independente no noticiário do Democracy Now!

Este “especialista em Xinjiang”, adepto do “evangelismo do fim dos tempos”, se considera enviado de Deus em uma cruzada contra a China, como declarou em entrevista recente ao The Wall Street Journal.

Segundo o Grayzone, Zenz é um membro senior da Fundação Memorial para as Vítimas do Comunismo, organização estabelecida nos Estados Unidos em 1983, e com vinculações a pessoas e entidades simpatizantes de neonazistas, fascistas e extremistas antissemitas. A Fundação também atua contra o governo da Venezuela.

Em 2018, Adrian Zenz estimou “em mais de um milhão, o número de internos nos campos de reeducação em Xinjiang”. O Grayzone revela que estes dados se basearam em um relato da TV Istiqlal, sediada na Turquia, e ligada a exilados uigures. A emissora promove a causa separatista da região de Xinjiang para formar o Turquistão Oriental.

Relata ainda o Grayzone que o Movimento Islâmico do Turquistão Oriental tem laços com a al-Qaeda, e foi declarado como sendo uma organização terrorista pelos Estados Unidos, União Européia, e Conselho de Segurança da ONU. Segundo a agência noticiosa Associated Press, desde 2013 milhares de uigures se juntaram ao Partido Islâmico do Turquistão, para lutar ao lado da al-Qaeda na Síria, e algumas centenas aderiram ao Estado Islâmico.

Posteriormente, em 2019, Zenz inflou para 1,5 milhão o número de detidos em Xinjiang pertencentes a minorias étnicas muçulmanas. Ao Der Spiegel, ele declarou que a prática do islamismo foi efetivamente banida de Xinjiang pela China. Zenz passou a ser o especialista em Xinjiang a quem a mídia Ocidental recorre quando necessita de relatos acusatórios contra a China. Aí se incluem veículos de informação como o New York TimesWashington Post CNN.

Outro artigo do The Grayzone revela que a entidade conhecida como Congresso Mundial Uigur (WUC, na sigla em inglês), que se proclama como uma organização engajada em “um movimento pacífico, não violento e democrático em prol dos direitos humanos”, está na verdade focada na desestabilização da China, e na queda do sistema comunista. Assim como a Rede Chinesa de Defensores de Direitos Humanos, o WUC também recebe financiamento norte-americano através da National Endowment for Democracy. O WUC está sediado em Munique, com presença em 18 países.

O Congresso Mundial Uigur considera que os muçulmanos da etnia Uigur são membros de uma nação pan-turca, que se estende da Ásia Central à Turquia. O patriarca do movimento separatista de Xinjiang foi Isa Yusuf Alptekin, que se exilou em 1949 na Turquia, com a vitória dos comunistas na Revolução Chinesa. Alptekin defendeu a intervenção norte-americana no Vietname, e pedia ao então presidente norte-americano Richard Nixon que apoiasse os nacionalistas do Turquistão Oriental, como forma de apressar o desmembramento da China.

O velho Alptekin em 1966
Isa Alptekin (segurando um livro) lidera manifestação pelo separatismo de Xinjiang, 1966. Na faixa: “Comunismo é o inimigo do Islã”. Foto: Reprodução

Seu filho, Erkin Alptekin, fundou o WUC em 2004 e se manteve fiel ao objetivo do pai de “provocar a queda da China, da mesma forma como a União Soviética se desmantelara alguns anos antes”. Dolkun Isa, atual presidente do WUC, faz lobby constante em Washington pela aplicação de sanções econômicas contra a China.

WUC tem vínculos próximos com o Dalai Lama, também financiado pelos Estados Unidos através da CIA, relata o Grayzone. Cabe notar que as províncias de Xinjiang e do Tibet são vizinhas.

WUC também mantém ligações estreitas com movimentos de direita etno-nacionalistas.  A organização estabeleceu vínculos com o grupo turco Grey Wolves (Lobos Cinzentos), engajado em violência sectária na Síria e Leste da Ásia. O atentado sofrido pelo Papa João Paulo II, em 1981, foi perpetrado por um membro dos Lobos Cinzentos.

Militantes dos Lobos Cinzentos estiveram envolvidos no atentado a bomba em um local religioso na Tailândia, que resultou na morte de 20 pessoas. Segundo a polícia tailandesa militantes uigures também estiveram envolvidos no ataque, que foi uma retaliação à repatriação de um grupo vindo de Xinjiang, que fora impedido de se juntar a combatentes do Estado Islâmico e da al-Qaeda no Iraque e na Síria1.

“Líderes do WUC, ‘a pacífica organização de direitos humanos’ apoiada por Washington, proclamaram que centenas de milhares de uigures de Xinjiang estariam dispostos a se alistar no exército turco para invadir o norte da Síria, se o presidente turco Recep Erdogan assim o determinasse”, revelou Grayzone.

jihadistas chineses

Independentemente da questão dos uigures, a deterioração das relações sino-americanas cresceu no governo Trump. Artigo de dezembro de 2019 no New York Times, “A nova Guerra Fria? É com a China e já começou”ressalta que 2019 foi o ano que pode ficar na História como o início da Segunda Guerra Fria, e não 2014, quando a Rússia mandou tropas para a Ucrânia.

Além da situação em Xinjiang, o artigo levanta principalmente a questão da guerra tecnológica com a empresa Huawei, pela dominação global da tecnologia 5G nas telecomunicações, e a questão cambial, decorrente da desvalorização do Yuan frente ao dólar.

Surge então a crise do coronavírus em dezembro de 2019, que se tornou uma pandemia mundial em 2020. Em ano eleitoral, Trump procura culpar a China por suas próprias falhas em lidar com a pandemia, e ameaça com retaliações, inclusive cobrar uma  indenização bilionária dos chineses.

Nesta nova Guerra Fria, a China também tem trunfos a que poderá recorrer, como será visto em um próximo artigo. Agora é esperar por novos movimentos das peças, neste xadrez da geopolítica entre as duas principais potências econômicas.

Notas do autor:

1. Cerca de 5.000 uigures estiveram lutando na Síria, segundo o site SOFREP, formado por jornalistas norte-americanos, ex-veteranos de guerra. A estes jihadistas vinculados ao Partido Islâmico do Turquistão é atribuído o atentado com armas químicas em Lakatia, na Síria, uma tentativa de culpar o presidente Bashar al Assad, como noticiado anteriormente pelo blogue Chacolhando.

2. O atual artigo não deve ser interpretado como uma defesa incondicional do sistema político que vigora na China, e de sua política de direitos humanos.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Redação

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