A evitação de sobressaltar-se diante das mensagens entre Moro e os procuradores da Lava-Jato, por Gabriela Costardi.

Transparência e ação contraditória são bases importantes desse sistema. Isso foi frontalmente atacado por Moro quando fez conluio com os procuradores em sua atuação no caso de Lula, como diversas evidências já denunciavam, além das mensagens recentemente divulgadas pelo The Intercept Brasil

do Psicanalistas pela Democracia

A evitação de sobressaltar-se diante das mensagens entre Moro e os procuradores da Lava-Jato

Por Gabriela Costardi, de Los Angeles, especialmente para o PPD

As mensagens tornadas públicas pelo site The Intercept Brasil (e seus órgãos parceiros) desnudou um fato há muito tempo denunciado pelos críticos da Lava Jato: o de que um ideal moral colocou em andamento um projeto de limpeza do terreno político no Brasil por meio de uma montagem legal. A incapacidade dos personagens dos diálogos revelados nas mensagens de refutar aquilo que está publicado, além da reconhecida idoneidade e competência do órgão jornalístico que a publica, atestam sua veracidade. Os desdobramentos dessas revelações, contudo, ainda são motivo de grande incerteza. Chama a atenção, sobretudo, a sólida resistência de vários estratos sociais a deixarem-se sobressaltar pelas revelações e, ao contrário, sua grave luta por blindarem suas convicções prévias contra qualquer tremor. No final das contas, os apoiadores da Lava Jato estão assombrados pela possibilidade de verem esfarrapada sua capacidade de separar o joio do trigo. Afinal, o mundo passou a fazer algum sentido quando se estabeleceu que, no Brasil, há um lado corrupto e outro incorruptível. Finalmente, certo senso de justiça se instaurou para um povo historicamente desempoderado que sabia que o sistema político brasileiro é fundado em uma simbiose desavergonhada entre a elite nacional e os grandes partidos políticos com vistas à perpetuação do seu poder mútuo e, também, assistira inúmeras vezes a impunidade de poderosos que usaram a máquina pública para enriquecimento ilícito. Nesse contexto, a Lava Jatoresponde a um anseio profundo e legítimo da população.Para tal, ela estabeleceu uma visão simples sobre os problemas políticos e econômicos do país para o qual sua existência é a solução: nosso meio político está contaminado pela corrupção e colocar os corruptos na cadeia promoverá a necessária assepsia. Certamente, a corrupção é um problema grave e deve ser encarada como tal, no entanto, a implementação da simplista visão de mundo da Lava Jato se mostrou problemática por várias razões, como por exemplo, a ilusão de que seu combate seria remédio para (quase) todos os males do país, a demonização geral da política e, ainda, a operacionalização do combate à corrupção por meios alheios a nossos acordos coletivos, no caso, à revelia de nossa Constituição, segundo o concluiu revelado pelas mensagens acima citadas entre o juiz e os procuradores no processo que aprisionou Lula. Vou me deter no último ponto.

As mensagens do The Intercept Brasil geraram algumas reações mais ou menos agrupáveis. Tem a turma do “Eu já sabia”, que há tempos denunciava as inúmeras evidências da suspeição de Moro; tem o pessoal que se deixou sobressaltar, pois sabe que seguir a lei é importante e “os fins não justificam os meios”; e tem um terceiro grupo que continua bravamente agarrado à convicção “Moro de lado corruptos do outro”. Além de blasfemarem contra o site e a origem das mensagens, os devotos do juiz parecem, de fato, estargenuinamente dispostos a autorizar o descumprimento da lei neste caso. Às vezes por cinismo, é claro, mas muitas outras vezes movidos pela sincera desconfiança de que isso seria apenas uma manobra para tirar Lula e outros condenados da cadeia e afrontar o que é, em sua visão, a verdadeira justiça. O nó aqui me parece bem firme e posições legalistas de que a Constituição precisa ser cumprida em qualquer instância porque ela carregaria uma espécie de autoridade sagrada ou argumentos mais ameaçadores como “imagine se amanhã é você que está sendoinjustamenteacusado de algo” não parecem ter muita penetração nessa grande parcela de nossa sociedade. A lógica que sustenta essa posição é de que “todos sabemos que os políticos roubam” e, como somos honestos, entregamos a Moro a incumbência de puni-los. O juiz assume o lugar de exceção, que não precisa seguir a lei, e com sua existência garante que todos os demais pagarão por seus crimes. Ele não participa do regime humano da falha e da corrupção; ele sabe distinguir o homem mal do bom porque possui um tipo de habilidade inerente, fundada em seu caráter incorruptível. Ou seja, substituímos o regime de acordos mútuos entre iguais, os quais são frágeis porque dependem de palavras e ações de atores sujeitos a falhas de toda a sorte, pelo regime do mando pelo homem forte, que detém tanto uma capacidade infalível de julgamento quanto os meios exemplares de punição dos homens comuns. Ora, esse sonho dourado não encontra amparo na realidade! Ele é fruto de uma transposição ingênua de nossas experiências privadas para o campo político, dos tempos em que nutríamos a ilusão de que família boa é aquela em que tudo se vai pro lugar quando papai dá uns gritos.

Na esfera política, diferentemente da vida privada, as pessoas tem o direito e o dever de assumirem sua condição de iguais. Garantir esse direito custa muito caro e requer luta constante. Exercer esse dever exige que lidemos com os riscos que decorrem do fato de que a ação política é um artefato frágil, que requer o compromisso sempre renovado de pessoas falíveis. Nesse cenário, a Constituição tem uma papel muito importante, no sentido de que ela se fundou sobre um compromisso firmado por diversos setores da sociedade a representar uma certa visão sobre o que queremos para nossa vida coletiva. O enquadramento que ela propõe resiste aos ventos agitados de uma opinião pública facilmente mobilizada por temas emocionalmente carregados. Sobretudo, ela tem a função de garantir direitos fundamentais a todos, não permitindo que pessoas participantes de grupos minoritários/estigmatizados ou menos poderosos sejam excluídos de sua condição cidadã. A atuação das instituições/organizações de forma independente umas das outras permite a criação de um sistema de pesos e contrapesos, de fiscalização mútua, de balanceamento de forças, contribuindo para evitar que grupos poderosos monopolizem o espaço público e os recursos do Estado. Transparência e ação contraditória são bases importantes desse sistema. Isso foi frontalmente atacado por Moro quando fez conluio com os procuradores em sua atuação no caso de Lula, como diversas evidências já denunciavam, além das mensagens recentemente divulgadas pelo The Intercept Brasil. Se indignar com sua conduta é prerrogativa de quem preza os acordos coletivos, ainda que isso desnude a falibilidade inerente aos assuntos humanos, em lugar de aplaudir o justiceiro, a fim de se resguardar na ilusão messiânica de que há um indivíduo que possa salvar a humanidade de seu destino imperfeito.

Redação

1 Comentário

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  1. Estamos incorrendo em erro primário: se o Lula é o ponto midiático-politico de quem se posiciona contra a criminalidade desMoronada, não podemos esquecer que tantos outros foram condenados dentro do mesmo cinismo que cerca as ações daquela vareta-judiciosa-gravata-com-lencinho. Tantas vidas foram destroçadas pelo morobolso em conluio com os que se aproveitaram dos “causos” para fazer de conta que trabalham (né, dallanzóis?). Pior, os ladrões do dinheiro público, sabem as antas e as ostras, estão em casa de tornozeleiras ou não, gozando seus milhões “ladrados”. Então, além do Lula, há diversas pessoas “amarrotadas” por essa máfia. Sem contar, obviamente, a quebra institucional e a quebradeira generalizada das empresas envolvidas ou não. Tanto faz, diria o morequinho: não vem ao caso. Bando é muito pouco.

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