A fragmentação do eu digital em tempos de fascismo, por Gustavo Conde

O rito da interpretação de texto se estilhaçou. Interpreta-se 'pedaços' de enunciados. Ao mesmo tempo, e como não poderia ser diferente, enuncia-se aos 'pedaços'.

Imagem: L’Immagine del cuore, Margot Homan, 2016.

A fragmentação do eu digital em tempos de fascismo

por Gustavo Conde

O ‘brasileiro médio’, o ‘brasileiro médio’… Que raios quer dizer ‘brasileiro médio’?

Nós temos que tomar um certo cuidado quando formos falar de nós mesmos. Dizer ‘brasileiro médio’ é se excluir de si.

E é preciso perguntar: o que seria um brasileiro não médio?

Venho alertando que, após as redes sociais, a linguagem vem passando por mudanças sensíveis.

O assunto é cascudo e exige mil ponderações. Vou tentar simplificar ao máximo.

Há uma ‘fragmentação’ do enunciado propiciado pelo funcionamento das redes e dos compartilhamentos massivos.

Essa fragmentação leva a um efeito de ‘literalização’.

Deixa-se de restituir a dimensão metafórica dos enunciados e do discurso, bem como o contexto, a identidade e o ‘conjunto da obra’ do enunciador.

É por isso que a Folha de S. Paulo acha que o enunciado de Lula “passei 580 dias numa ‘solitária'” é mentira, pois ele não estava em uma ‘solitária’, tecnicamente falando.

Trata-se do pior nível de interpretação de texto da história de um jornal. Chega a ser constrangedor, infantil. Lula usou a palavra ‘solitária’ de maneira ilocutória, expressiva. Ele não estava redigindo um boletim de ocorrência.

A literalização está dando as cartas na precarização da interpretação de texto neste turno infame da história brasileira. Leve-se a reboque taxações de feminismo onde ele não existe e isenções de nazismo onde ele, efetivamente, viceja.

É terreno tortuoso e movediço, que não suporta a falação de pseudo ‘especialistas’ em linguagem que nunca leram um livro de linguística.

O rito da interpretação de texto se estilhaçou. Interpreta-se ‘pedaços’ de enunciados. Ao mesmo tempo, e como não poderia ser diferente, enuncia-se aos ‘pedaços’.

O resultado prático disso é Bolsonaro e o jornalismo brasileiro, essa dupla dinâmica da despolitização aplicada, unha e carne, faces da mesma miserável moeda.

A crise, mais uma vez, é de tempo. Nós aceleramos os processos de interpretação e o sucateamos como se sucateia toda a sociedade.

Sucateiam-se, a rigor, as próprias identidades, consequência elementar da atividade social da linguagem.

Fato é que o sistema simbólico mais importante da espécie humana – a língua – é complexo demais para ser completamente devorado por uma nova e imensa plataforma tecnológica.

Ele resiste.

E confunde.

Essa fragmentação da interpretação é inerente à atividade linguística. Ela só foi exacerbada e se tornou eixo dominante na vertigem das redes.

O sintagma ‘brasileiro médio’ destaca-se obrigatoriamente de seus enunciadores, sobretudo, porque decorre de um tratamento semântico social, global.

Não tem, por assim dizer, ‘autor’.

Nesse caso, a destacabilidade não é só uma consequência, mas uma necessidade.

Quando digo ‘brasileiro médio’, opero na zona mais rarefeita da subjetividade humana e habito a subserviência ideológica que tem nos feito os brasileiros todos – médios, pequenos ou grandes – afundarem cada vez mais no lodaçal do totalitarismo, da patrulha e da intolerância.

É o sintagma-enunciado que precisa ser reconectado ao tecido do discurso para que se liberte de sua condição de apagamento (para que a mecanicidade de sua emergência seja desmascarada).

Onde está a contradição? Na necessidade de se fragmentar para conter a fragmentação generalizada. É a vacina para combater este novo ciclo de desestruturação da linguagem, primo-irmão dos ciclos do nascimento da escrita (há 3 mil anos), da tipografia (há 565 anos), da industrialização (há 260 anos) e daquilo que eu chamo de “intelectualização dos processos políticos” – o comunismo – (há 103 anos).

A linguagem sobreviveu e se reacomodou depois de todos esses ‘traumas’.

É daí que vem a força espontânea do discurso que faz trazer sempre o tema do comunismo para os embates políticos, estejam eles no contexto em que estiverem.

O desafio neste momento, no entanto, é não sermos tragados pela regressão nos processos de interpretação.

A arte costuma ser a melhor resposta a esses solavancos da linguagem.

Uma literatura que lide com a fragmentação versus a universalização do enunciado e do discurso certamente já está em gestação para romper esse processo de deslumbramento com as novas formas de se produzir subjetividade digital.

Até lá, brasileiros médios, pequenos ou grandes agonizarão incrédulos em suas trincheiras do silêncio auto consentido.

Tentemos, no entanto, agir como sujeitos da história – e não como seus capachos.

Redação

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