Antonio Helio Junqueira
Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.
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A gente quer comida…, mas comida de verdade! Que o prato brasileiro seja são! Que a comida não nos mate!, por Antonio Hélio Junqueira

Temos agora que nos mobilizar, ainda, para defender o Guia Alimentar para a População Brasileira das intempestivas, despropositadas e interesseiras investidas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

A gente quer comida…, mas comida de verdade! Que o prato brasileiro seja são! Que a comida não nos mate!

por Antonio Hélio Junqueira[1]

A comida do brasileiro acaba de ganhar mais uma frente de batalha, que vem engrossar a arena dos já tantos leões que temos todos que enfrentar no dia a dia desse triste e imenso país tropical. Não bastasse a imensa quantidade de desempregados e desamparados, sem renda suficiente para a alimentação do dia ou sequer para sonhar com a sua garantia; fosse de pouca monta a afrontosa liberalidade com que é tratada a questão do uso dos agrotóxicos em produtos alimentares; não tivessem importância a carestia e a falta de mecanismos de segurança alimentar, como os estoques reguladores; não chegasse a intensidade dos achaques cotidianos contra a agricultura familiar, o meio ambiente e a biodiversidade; não fosse já intolerável tudo isso, temos agora que nos mobilizar, ainda, para defender o Guia Alimentar para a População Brasileira das intempestivas, despropositadas e interesseiras investidas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Nesse último 16 de setembro, as mídias sociais e a imprensa em geral receberam, surpreendidas, documentos que davam conta de um estranho, agressivo e cientificamente precário posicionamento do MAPA, através dos quais o órgão explicitava duras e infundadas críticas ao vigente e oficial guia de orientação da população brasileira para uma alimentação adequada, suficiente e saudável, que é, em suma, o que todos almejamos.  Tais documentos, cujo destino e endereço seriam o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, revelaram-se compostos por uma carta da ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento solicitando a “revisão urgente” do texto do referido Guia, acompanhada da Nota Técnica n.º 42/2020, com o propósito de revestir toda a iniciativa de um caráter técnico-científico, que ela, absolutamente, não tem.

Cabe lembrar que o Guia Alimentar para a População Brasileira é um documento oficial de governo, aprovado e publicado pelo Ministério da Saúde em 5 de novembro de 2014, após longa e exaustiva rodadas de discussão técnico-científicas, com o explícito propósito de oferecer diretrizes para políticas públicas e orientação da população no tocante à sua própria alimentação e nutrição. Trabalharam na sua elaboração técnicos do Ministério da Saúde, em parceria com pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/ USP) e o apoio da Organização Panamericana de Saúde (Opas).

A presente ofensiva do MAPA – que se alinha a uma série de atitudes desassossegadas e inconformadas anteriores, sempre motivadas por representantes da indústria nacional de alimentos – tenta fundamentar-se em críticas à classificação dos alimentos utilizada para a elaboração do Guia, denominada NOVA, na qual os gêneros são divididos em quatro categorias determinadas por seus respectivos graus de processamento: 1) “in natura”, que são obtidos diretamente das plantas ou animais (como frutas, hortaliças, leite, ovos e cereais), adquiridos e consumidos sem sofrerem preparos ou alterações e os minimamente processados, que são os produtos que foram submetidos a alterações mínimas (como grãos polidos e empacotados, moídos na forma de farinhas, cortes de carnes resfriados ou congelados e o leite pasteurizado); 2) produtos extraídos de alimentos “in natura” ou diretamente da natureza para serem usados no tempero e preparo de comida (como óleos, açúcar e sal); 3)  produtos processados, que incluem os alimentos “in natura” que tiveram adição de óleos, açúcar, sal ou substâncias para aumentar sua durabilidade (como legumes em conservas, queijos, pães e frutas em calda), e 4) os alimentos ultraprocessados, geralmente fabricados em escala industrial, com a presença de conservantes artificiais (como salgadinhos, embutidos e outras carnes processadas, biscoitos recheados, macarrões instantâneos e refrigerantes, por exemplo).

O Guia enfatiza os benefícios do processamento alimentar para a conservação dos produtos e redução dos desperdícios, porém, alinhava recomendações de dietas que privilegiem os alimentos naturais ou pouco processados, ao mesmo tempo em que aponta para os malefícios do consumo dos produtos ultraprocessados para a saúde, internacionalmente reconhecidos pelas comunidades médicas dados os riscos e comprometimentos que acarretam em relação à obesidade, diabetes e cardiopatias, entre outros.

E é exatamente esse o ponto nevrálgico de toda disputa: os alimentos ultraprocessados. Críticos improvisados e analistas de última hora se alvoroçaram para encetar as mais duras críticas à classificação NOVA e ao guia, seguindo posicionamentos negacionistas e revisionistas do MAPA, na tentativa de desqualificar os documentos de orientação alimentar e nutricional em vigor, acusando-os de serem muito amplos, vagos e pouco específicos em relação aos nutrientes e componentes específicos de cada categoria de alimentos, especialmente dos ultraprocessados. Pouco informadas, ou apenas astutamente interessadas, as falas desses agentes ignoram ser essa, aliás, uma das estratégias chave da orientação alimentar e nutricional do Guia.

De fato, superando as versões dos Guias Alimentares anteriores, como o de 2006, os conceitos ora defendidos e implementados superam os tecnicismos das contagens das porções a serem ingeridas de cada alimento ou nutriente específico, para avançar na recomendação da ingestão do que se pode considerar uma “comida de verdade”, reconhecível pelos consumidores, para além das astúcias e seduções das embalagens, das propagandas e do marketing e que reinstaurem o lugar das práticas socioculturais dos diferentes grupos sociais. Coerentemente com as visões ecossustentáveis mais avançadas do planeta, o guia brasileiro supera as antigas concepções mecanicistas do corpo humano como receptáculo de partes e componentes necessários para o seu “funcionamento adequado”, na direção de uma visão holística da alimentação como produtora de vida, no seu sentido mais amplo, o que inclui suas dimensões afetivas e culturais da comensalidade. E é esse o seu verdadeiro “tour de force”.

Para desvario, choro e ranger de dentes do negacionismo de plantão, autoridades políticas e científicas de todo o mundo desenvolvido já pregam a recriação do próprio capitalismo global, alinhando-o à busca do bem-estar social, para além da simples busca do crescimento e do lucro a qualquer custo. Conceitos como os da chamada “Economia Donut”[2] – em um bem-humorado trocadilho com os ultraprocessados da discórdia – olha para um mundo onde todos terão acesso ao que é básico, no que se inclui, obviamente comida e saúde, ou melhor, comida com saúde. Nessa direção, é preciso que os estilos da vida humana e os modos de produção e consumo sejam compatíveis com os recursos finitos do planeta. A obtenção de lucros e juros não pode ser ilimitada, sob o custo da destruição coletiva. Repensar as maneiras como nos relacionamos com a comida está, sem dúvida, no cerne dessas questões e o Guia Alimentar para a População Brasileira é um grande aliado nesse percurso já de todo incontornável.

A movimentação presente acontece poucos dias antes de se completarem exatos dois meses da reunião realizada entre o MAPA e o presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), em 23 de julho, na qual, seguindo a pauta do encontro, a organização privada manifestou seu desacordo e pediu a revisão do Guia, conforme apurou o jornal “O Estado de São Paulo”[3]. Há que se notar, portanto, que a iniciativa revisionista não parte dos setores técnico-científicos da sociedade brasileira, nem, tampouco, das associações de categorias representativas da área da saúde. Trata-se da estrita defesa de interesses de ordens econômica e comercial.

Uma leitura ainda que superficial da documentação ora alinhavada pelo MAPA evidencia um embasamento técnico insuficiente e precário, que contraria frontalmente a comunidade científica internacional e omite que os cientistas brasileiros responsáveis pela construção da NOVA e do Guia Alimentar para a População Brasileira foram recentemente considerados entre os mais importantes do mundo e seus trabalhos são citados e adotados como referência por organismos técnicos das Nações Unidas, como a FAO, para a agricultura e alimentação, a OMS, na área da saúde e o UNICEF, na proteção da infância e da juventude. Além disso, exatamente esses mesmos trabalhos brasileiros foram adotados como fontes técnico-científicas de referência pelos Ministérios da Saúde do Canadá, da França, do Uruguai, do Peru e do Equador, na elaboração dos Guias Alimentares para as suas respectivas populações.

Na virulência do seu ataque, os pareceres engendrados pelo MAPA chegam a se referir ao Guia Alimentar como “um dos piores [do planeta]”, em flagrante discórdia com os autores de um rigoroso estudo publicado em 2019 pela revista internacional “Frontiers in Sustainable Food Systems”, que elegeu, entre muitos congêneres analisados, o guia alimentar brasileiro como o que melhor atendia a critérios previamente estipulados quanto à promoção da saúde humana, do meio ambiente, da economia e da vida política e sociocultural[4], segundo nos informa nota oficial do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), em resposta à ofensiva.

A suprema ironia de tudo isso foi que no mesmíssimo dia em que a mídia anunciou essas injustas e ofensivas investidas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) contra o Guia Alimentar para a População Brasileira e o novo sistema de classificação dos alimentos (NOVA), a rede de fast food Burger King ganhava páginas inteiras dos jornais para anunciar estar convencida de que “comida de verdade é mais saborosa” e que a empresa está promovendo a substituição de todos os conservantes de origem artificial do Whopper, sanduíche de hambúrguer que é o carro-chefe e o verdadeiro emblema internacional da rede. A medida acarretará a eliminação de 277 toneladas desses aditivos artificiais no Brasil, que equivalem a 18 caminhões desses ingredientes por ano. Mais do que isso, a rede afirmou em sua comunicação mercadológica que “já está trabalhando para que 100% do seu cardápio seja livre de tudo o que não for comida de verdade” e que espera que sua atitude “possa inspirar toda nossa indústria a oferecer apenas alimentos livres de ingredientes artificiais”.

O discurso da marca e a apropriação retórica de termos como, por exemplo, “comida de verdade” são absolutamente tributários dos esforços, trabalho e vitórias dos técnicos, profissionais, lideranças e movimentos sociais militantes nas frentes da segurança e soberania alimentar para o Brasil, dos quais surgiram, entre outras tantas conquistas o NOVA e o Guia Alimentar.

Alguns dias depois, foi a vez do público brasileiro conhecer o conjunto de peças publicitárias da multinacional Kraft Heinz para o ketchup de sua marca Heinz. Nessa comunicação, a fabricante ressalta sua opção convicta pela produção do alimento exclusivamente com ingredientes naturais, aproveitando-se do momento para ironizar o negacionismo que toma conta de estratos da população brasileira, e mundial também. Com muita felicidade e ótimo timing, a propaganda posiciona-se na mídia e especialmente nas redes sociais digitais com a hashtag #NegadoresNegarão.

Como já tive oportunidade de assinalar em outros artigos publicados nessa coluna, hábitos e práticas de consumo – assim como suas interinfluências com a esfera da produção dos bens e serviços – não surgem de um dia para o outro e não decorrem de alterações meramente circunstanciais e momentâneas das condições prevalecentes nos mercados. Muito pelo contrário, se consolidam lentamente no fogo brando e nos banhos-marias dos jogos sociais entre forças, hegemonias e contrahegemonias, narrativas e contranarrativas.

Nesse momento, deveríamos estar todos nos congratulando pela mudança da postura já conquistada junto à indústria do fast food e do food service, entre as mais ativas vilãs na pandemia da má nutrição. Afinal, é inegável o avanço da construção social e democrática de novos e promissores olhares, posturas e ações sobre a qualidade e a sanidade dos alimentos.

No entanto, estamos apreensivos e revoltados com as iniciativas do Ministério da Agricultura. Cabe ressaltar, ao final, que após as veementes reações de repúdio da opinião pública e das negativas repercussões na mídia, o MAPA veio a público para tentar minimizar sua intenção revisionista na questão alimentar junto à área da Saúde.  Os argumentos foram de que se tratava tão somente de uma minuta inicial de um documento interno, que ainda será discutido nas Câmaras Setoriais. A manifestação atual sugere, ainda, “que todos os setores da sociedade envolvidos com o tema serão ouvidos”, o que de fato surpreende, especialmente frente às incisivas manifestações previamente registradas nos documentos que circulam amplamente por toda a sociedade brasileira e, também, porque se trata de uma nítida extrapolação dos poderes e competências do MAPA. Sim, pois a orientação das políticas públicas de alimentação e nutrição é competência da área da Saúde. A atual atitude do MAPA não apenas vai institucionalmente de encontro com uma outra esfera pública de poder, como solenemente ignora todo o processo democrático já percorrido na construção do Guia Alimentar para a População Brasileira, que envolveu extensíssima base de participação social, implementada ao logo de anos de trabalho, incluindo a entrega de uma versão para consulta pública, que também recebeu muitas sugestões, posteriormente incorporadas. Conquistas legítimas, democráticas e voltadas aos verdadeiros anseios populares têm que ser preservadas!

Em total defesa do Guia Alimentar para a População Brasileira!

[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.

[2] RAWORTH, Kate. Economia Donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

[3] CAMBRICOLI, F. Agricultura quer mudanças no guia alimentar. O Estado de São Paulo, p. A20, 18 de setembro de 2020.

[4] AHMED S., DOWNS, S.; FANZO J. Advancing an Integrative framework to evaluate sustainability in national dietary guidelines. Front. Sustain. Food Syst. 2019, 3:76. doi: 10.3389/fsufs.2019.00076.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

2 Comentários

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  1. E pensar que temos todas as condições de ser uma potência mundial, inclusive no que diz respeito à alimentação. Como disse Caminha, aqui, em se plantando, tudo dá! Temos solo, clima, diversidade de espécies propícias a ter uma excelente alimentação. E ainda exportar, guardados os devidos estoques reguladores. Primeiro nós. Depois o que sobrar. Infelizmente, com esse DE$GOVERNO e com parte desse povo…?

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