A guerra programada e permanente contra o consumidor, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A guerra programada e permanente contra o consumidor, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No último capítulo da II parte do livro Shoshana Zuboff faz um resumo das principais características que garantiram o sucesso do capitalismo de vigilância: a inexistência de precedentes, declarações como invasão, contexto histórico, fortificações, ciclo de expropriação, dependência, interesse próprio, inclusão, identificação, autoridade, persuasão social, alternativas excluídas, inevitabilismo, ideologia da fragilidade humana, ignorância e velocidade.

Para elucidar como a simples rejeição pública de todas ou de algumas características do capitalismo de vigilância será incapaz de nos libertar dele, a autora menciona a realidade criada pelo Muro de Berlim:

“I turn to the history of the Berlin Wall as an illustration of these two forms of disagreement. From 1961 through the early 1980s, courageous East Berliners carved seventy-one tunnels through the sandy doil beneth the city, affording several hundred people a means of escape to West Berlin. The tunnels are testament to the necessity of counter-declarations, but they did not bring down the wall or the power that sustained it.

The synthetic declaration gathered force over decades, but its full expression would have to wait until near midnight on November 9, 1989, when Harald Jäger, the senior officer on duty that night at the Bornholmer Street passage, gave the order to open the gates, and twnty thousand people surged across the wall into West Berlin. As one historian describes that event, ‘By the night of November 9, when the people appeared at the Berlin Wall and demanded to knw of the border officials, Will you let us pass?, those people had become so certain of thenselves, and the officials so unsure of themselves, that the answer was We will.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 345)

Tradução:

“Volto-me para história do Muro de Berlim como ilustração dessas duas formas de desacordo. Desde 1961 até o início dos anos 80, os corajosos berlinenses orientais cavaram setenta e um túneis através do rio arenoso na cidade, proporcionando a várias centenas de pessoas um meio de fuga para Berlim Ocidental. Os túneis atestam a necessidade de contra-declarações, mas não derrubaram o muro ou a força que o sustentava.

A declaração sintética ganhou força ao longo de décadas, mas sua expressão completa teria que esperar até quase meia-noite de 9 de novembro de 1989, quando Harald Jäger, oficial sênior de serviço naquela noite na passagem da Rua Bornholmer, deu ordem para abrir os portões, e vinte mil pessoas atravessaram o muro em direção a Berlim Ocidental. Como um historiador descreve esse evento, ‘Na noite de 9 de novembro, quando as pessoas apareceram no Muro de Berlim e exigiram que os oficiais da fronteira soubessem: Você nos deixaria passar?’, Essas pessoas haviam se tornado tão certas de si mesmas, e os funcionários tão inseguros de si mesmos, que a resposta foi Nós vamos fazer isso.”

Um pouco adiante, a autora afirma que:

“… it would be wrong to suppose that surveillance capitalism can be grasped solely through the prism of its economic action or that the challenges we face are restricted to dicerning, containing, and transforming its fundational mechanisms. The consequences of this new logic of accumulation have already leaked and continue to leak beyond commercial practices into the fabric of our social relations, transforming our relationships to ourselves and to one another. These transformations provide the soil in which surveillance capitalism has flourished: an invasive species that creates its own food suply. In transforming us, it produces nourishment for its own march forward.

It is easier, perhaps, to see these dynamics by looking to the past. The difference between industrial capitalism and industrial civilizations is the difference between the economic operation and the societies it produced. The variant of industrial capitalism that route to dominance in the late nineenth and early twntieth centuries produce a specific kind of moral milieu that we sense intuitively even when do not name it.

Industrial capitalism was marked by the specialized division of labor, with its historical specific characteristics: the conversion of craft work to mass production based on standardization, rationalization, and the interchangeability of parts; the moving assembly line; volume production; large populations of wage earners concentrated in factory serrings; professionalized administrative hierarchies; managerial athority, functional specialization; and the distinction between white-collar work and blue-collar work.

The list is illustrative, not exhaustive, but enogh to remind us that industrial civilization was dran fron these expressions of the economic imperatives that ruled industrial expansion. The dividion of labor shaped culture, psychology, and social experience. The shift from craft to hourly wages created new populations of employees and consumers, men and wonen wholly depedent of the means of production owned and operated by private firms.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 347/348)

Tradução:

“… seria errado supor que o capitalismo de vigilância possa ser compreendido apenas através do prisma de sua ação econômica ou que os desafios que enfrentamos sejam restritos a identificar, conter e transformar seus mecanismos de financiamento. As consequências dessa nova lógica de acumulação já vazaram e continuam a vazar além das práticas comerciais no tecido de nossas relações sociais, transformando nossos relacionamentos para nós mesmos e uns para os outros. Essas transformações fornecem o solo em que o capitalismo de vigilância floresceu: uma espécie invasora que cria seu próprio alimento. Ao nos transformar, produz alimento para sua própria marcha adiante.

Talvez seja mais fácil ver essa dinâmica olhando para o passado. A diferença entre capitalismo industrial e civilizações industriais é a diferença entre a operação econômica e as sociedades que produziu. A variante do capitalismo industrial que leva ao domínio no final do século IX e no início do século XX produz um tipo específico de ambiente moral que sentimos intuitivamente, mesmo quando não o nomeamos.

O capitalismo industrial foi marcado pela divisão especializada do trabalho, com suas características históricas específicas: a conversão do trabalho artesanal em produção em massa com base na padronização, racionalização e permutabilidade de peças; a linha de montagem móvel; volume de produção; grandes populações de assalariados concentrados em serviços de fábrica; hierarquias administrativas profissionalizadas; autoridade gerencial, especialização funcional; e a distinção entre trabalho de colarinho branco e trabalho de colarinho azul.

A lista é ilustrativa, não exaustiva, mas serve para nos lembrar que a civilização industrial teve essas expressões dos imperativos econômicos que governavam a expansão industrial. A divisão do trabalho moldou a cultura, a psicologia e a experiência social. A mudança do artesanato para o salário horário criou novas populações de funcionários e consumidores, homens e trabalhadores, totalmente dependentes dos meios de produção pertencentes e operados por empresas privadas. ”

Assim como o capitalismo industrial modelou as relações sociais e políticas ajudando a construir o que nós acostumamos a chamar o Estado moderno industrial, o capitalismo de vigilância está fazendo algo semelhante. O resultado, entretanto, é muito diferente.

“At a time when surveillance capitalism has emerged as the determinant form of information capitalism, we must ask the question: what kinde of civilization does it foretell?” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 348)

Tradução:

“Numa época em que o capitalismo de vigilância emergiu como a forma determinante do capitalismo da informação, devemos fazer a pergunta: que tipo de civilização ele prediz?”

A resposta a esta pergunta Shoshana Zuboff dará na terceira parte do livro. Contudo, nesse ponto da obra ela nos dá uma pista do que vem pela frente retomando a questão do ‘não contrato’.

“In the dystopia of the uncontract, surveillance capitalism’s drive toward certainty fills the space once occupied by all the human work of building and replenishing social trust, which is now reinterpreted as unnecessary friction in the march toward guaranteed outcomes. The deletion of uncertainty is celebrated as a victory over humam nature: our cunning and our opportunism. All that’s left to matter are the rules that translate reasons into action, the objective measures of behavior, and the degree of conformance between the two. Social trust eventually withers, a kind of vestigial oddity like a third nipple or wisdom teeth: traces of an evolutionary past that no longer appear in operational form because their context and therefore their purpose have vanished.

The uncontract and the for-profit circuits of behavior modification in which it executes its objectives construe society as an acrid wasteland in which mistrust is taken for granted. By positing our lives together as already failed, it justifies coercive intervention for the sake of certainty. Against this background of the gradual normalization of the automated plan and its planners, the human response of one repo man bear simple witness to precisely what surveilance capitalism must extinguish.

Human replenishment from the failures and triumphs of choosing the future in the face of uncertainly gives way to the blankness of perpetual compliance. The word trust lingers, but its referent in human experience dissolves into reminiscende, an archaic footnote to a barely remenbered dream of dream that has long faded for the sake of a new dictatorship of market reasons. As the dream dies, só too does our sense of astonishment and protest. We grow numb, and our numbness paves the way for more compliance. A pathological division of learning forged by unprecedented asymmetries of knowledge and power fixes us in a new inequality market by the tuners and the tuned, the herders and herded, the raw material and its miners, the experimenters and their unwitting subjects, those who will the future and future and those who are shunted towaard other’s guaranteed outcomes.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 336/337)

Tradução:

“Na distopia dos ‘não contratos’, o impulso do capitalismo de vigilância em direção à certeza preenche o espaço antes ocupado por todo o trabalho humano de construção e reabastecimento da confiança social, que agora é reinterpretada como atrito desnecessário na marcha em direção a resultados garantidos. A eliminação da incerteza é comemorada como uma vitória sobre a natureza humana: nossa astúcia e nosso oportunismo. Tudo o que importa é as regras que traduzem razões em ação, as medidas objetivas de comportamento e o grau de conformidade entre os dois. A confiança social acaba por murchar, uma espécie de estranheza vestigial como um terceiro mamilo ou dentes do siso: traços de um passado evolutivo que não aparece mais na forma operacional porque o contexto deles e, portanto, seus propósitos já desapareceram.

Os circuitos com fins lucrativos do ‘não contrato’, de modificação do comportamento em que executa seus objetivos, interpretam a sociedade como um terreno baldio amargo no qual a desconfiança é dada como certa. Colocar nossas vidas em comum como algo que já falhou, justifica a intervenção coercitiva em prol da certeza. Nesse contexto de normalização gradual do plano automatizado e de seus planejadores, a resposta humana de um representante compromete-se a testemunhar com precisão o que o capitalismo de vigilância deve extinguir.

O reabastecimento humano das falhas e triunfos da escolha do futuro diante da incerteza cede lugar ao vazio da conformidade perpétua. A palavra confiança permanece, mas seu referente à experiência humana se dissolve em uma reminiscência, uma nota de rodapé arcaica para um sonho mal lembrado que sonha há muito desaparecido por causa de uma nova ditadura de razões de mercado. À medida que o sonho morre, o mesmo acontece com o nosso sentimento de espanto e protesto. Ficamos entorpecidos e nossa dormência abre caminho para mais conformidade. Uma divisão patológica da aprendizagem forjada por assimetrias sem precedentes de conhecimento e poder nos fixa em um novo mercado de desigualdade pelos sintonizadores e sintonizados, pelos pastores e pastoreados, pela matéria-prima e seus mineiros, pelos experimentadores e indivíduos inconscientes, por quem quer ter um futuro e o futuro daqueles que são expropriados para obter os resultados garantidos de outros.”

Aqui mesmo no GGN, ao comentar uma aula magistral de Boaventura de Souza Santos eu disse que:

“A guerra migrou do território para o ciberespaço. Os ‘campos minados’ colonizam a internet com uma velocidade imensa.”
https://jornalggn.com.br/analise/boaventura-de-sousa-santos-e-os-campos-minados-brasileiros/

A distopia do “não contrato” narrada por Shoshana Zuboff de maneira tão eloquente também pode ser comparada a um campo minado. Todavia, não podemos de deixar de notar algumas diferentes.

Entre as tropas de elite dos capitalistas de vigilância e as massas desarmadas dos usuários de internet não existe e não pode existir qualquer equivalência tecnológica ou militar. Apenas os primeiros estão em condições de garantir seus lucros (e os lucros dos seus clientes) espalhando minas no trajeto que será percorrido pelos consumidores dos novos produtos e serviços que estão sendo criados.

Num guerra convencional, mesmo que os estrategistas sejam obrigados a antecipar o futuro ao conceber seus planos, as batalhas sempre ocorrem no tempo presente e nunca são inteiramente previsíveis. Imprevistos podem transformar um plano militar numa relações de coisas que não aconteceu ou que aconteceu de maneira totalmente diversa do que foi planejado.

As minas lançadas no futuro do consumidor pelo capitalista de vigilância não podem ser por ele desarmadas ou contornadas. Nenhuma medida de segurança pode ser adotada por quem é compelido a adentrar nesse campo minado. O consumidor está completamente a mercê do seu inimigo. Nesse sentido, o consumo deixa de ser um ato pacífico e se transforma numa agressão programada totalmente controlada por uma das partes.

Essa agressão, entretanto, não é sentida no momento em que o “não contrato” é celebrado. Ela será protelada no tempo e exercitada num espaço dominado apenas pelo capitalista de vigilância. O consumidor não é apenas obrigado a confiar na sua capacidade de cumprir obrigações futuras. Ele é constrangido a fazer isso, caso contrário não poderá aquirir o que deseja. Portanto, a liberdade dele não deixa de existir quando o “não contrato” é executado e sim antes mesmo que ele tenha sido celebrado.

O resultado de uma guerra é sempre incerto. Mas na guerra permanente imposta pelo capitalismo de vigilância aos consumidores não há espaço para qualquer incerteza. Os consumidores já entram derrotados num campo minado sem saber exatamente quando e onde uma mina pré-programada explodirá inevitavelmente seus sonhos de consumo.

Em qualquer conflito armado a paz pode sempre resultar de negociações. O capitalismo de vigilância se caracteriza pela impossibilidade total de qualquer coisa que não seja a capitulação prévia preventiva e uma derrota futura programada. Não negociamos com terroristas, dizem os políticos norte-americanos. A não negociação com o consumidor inadimplente é um produto garantido pelos capitalistas da vigilância.

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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