A história de um erro judiciário, por Rômulo de Andrade Moreira

E como disse Voltaire, "a pressão da opinião pública supriu a falta de provas." Nada tão atual!

A história de um erro judiciário

por Rômulo de Andrade Moreira

Em meados do século XVIII, exatamente no dia 9 de março de 1762, o francês Jean Calas, um sexagenário comerciante de tecidos na cidade de Toulouse, foi condenado à morte pelo suposto assassinato do seu filho mais velho, Marc-Antoine Calas, 28 anos, um jovem forte e saudável. Esta sentença à pena capital, tratou-se de um dos maiores erros judiciários que se tem notícia; um caso emblemático, e tão significativo que levou Voltaire a escrever um livro: “TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA”.[1]

A obra começou a ser escrita em outubro de 1762, mas a sua impressão deu-se apenas em abril do ano seguinte, e a sua divulgação foi imediatamente proibida na França. Nele, e a propósito de contar a saga da família Calas, Voltaire trata de um tema extremamente delicado até hoje: a questão da intolerância religiosa.

De início, é preciso observar que, à época, em França, “o poder se arrogava mui normalmente no direito de atormentar homens por suas crenças“, especialmente durante os reinados de Luís XIV e Luís XV. Assim, leis previam expressamente a “pena capital contra os pastores surpreendidos no exercício de seu ministério; quanto aos protestantes presos em flagrante delito de praticar o culto, galés perpétuas para os homens, prisão perpétua para as mulheres.” Mais particularmente, os huguenotes “estavam sujeitos a medidas discriminatórias muito penosas. Não tinham estado civil. Seus nascimentos, seus casamentos fora da Igreja não eram reconhecidos legalmente. Seus filhos eram considerados bastardos, com todas as consequências daí decorrentes, notadamente no que tange à transmissão das heranças.

Outrossim, estavam “excluídos de grande número de profissões“, razão pela qual muitos calvinistas “resignavam-se a atos puramente formais de catolicidade“, tais como o batismo e o casamento; por isso, chamavam-se-lhes de “católicos novos.”

Logo depois de sua ascensão, Luís XV, influenciado pelo seu primeiro-ministro, o Duque de Bourbon, declara oficialmente “que o desígnio do rei da França continuava a ser o de extirpar a heresia“, aumentando a intolerância e as punições. O livro de Voltaire, então, “evoca as fases de crise desse enfrentamento prolongado.”

Em resumo, deu-se a seguinte tragédia com os Calas: no dia 13 de outubro de 1761 jantavam na residência da família o pai, Jean Calas, 64 anos, sua esposa, seus filhos Marc-Antoine Calas (o mais velho, com 28 anos) e Pierre Calas, além de um amigo da família, Gaubert Lavaisse, de 19 anos, todos protestantes.[2]

Na casa da família também estava Jeanne Viguière, “dedicada empregada católica que ajudara a criar todos os filhos da família há trinta anos.” Após o jantar, levantaram-se todos e foram para uma sala contígua, com exceção do primogênito, Marc-Antoine, que se dirigiu à loja do pai como se fosse dar uma volta pela cidade, como de costume fazia.

Por volta das 21h30, o amigo Gaubert Lavaisse despede-se dos Calas e é acompanhado por Pierre, o outro filho que jantara há pouco. Ao se aproximarem da saída, avistam o corpo de Marc-Antoine, estendido ao chão, com sinais de estrangulamento e o pescoço com marcas de uma corda. Encontrava-se vestido com um camisolão “em perfeito estado; os cabelos continuavam bem penteados; não havia no corpo nenhum ferimento, nenhum machucado.”

O amigo e o filho saem de casa à procura de ajuda médica e das autoridades da Justiça, enquanto os pais e a empregada desesperam-se diante do corpo morto. Neste momento, alertados pelos gritos de sofrimento vindos da casa, populares dirigem-se para a residência dos Calas.

Era um “povo supersticioso e violento; vê como monstros seus irmãos que não são da mesma religião que ele.” Um deles, então, “gritou que Jean Calas havia enforcado seu próprio filho. Esse grito, repetido, logo tornou-se unânime; outros acrescentaram que o morto pretendia fazer abjuração no dia seguinte; que sua família e o jovem Lavaisse o haviam estrangulado por ódio contra a religião católica. Um momento depois, ninguém duvidava mais, pois, uma vez excitados, os espíritos não mais se detém.

Poucas horas depois, todos já estavam presos, inclusive a empregada da família, por ordem do magistrado David de Beaudrigue, a quem pareceu convincentes os “boatos e mexericos” vindos do povo. Ele, que também era chefe de Polícia, “excitado por esses rumores e querendo valorizar-se por uma ação imediata, fez um processo contrário às normas”, encarcerando todos até o julgamento final (uma prisão provisória, portanto, tão comum no Brasil de hoje).

Ignorando todas as evidências[3], e sem qualquer prova do parricídio, a Justiça de Toulouse, cinco meses depois do fato, profere uma sentença condenatória, decretando a pena de morte para o pai da vítima, um velho “de pernas inchadas e fracas“, num processo fraudado a partir de “uma instrução dominada pela prevenção e, por isso, mal conduzida.”

Logo no dia seguinte à condenação, o comerciante é executado em plena praça Saint-Georges de Toulouse, após um suplício de duas horas na roda.[4] Depois de “ser quebrado vivo, foi estrangulado e atirado em uma fogueira ardente. Assim, Jean Calas foi condenado a uma morte atroz com base numa mera verossimilhança“: a escolha de sua religião.

Portanto, como disse Voltaire, “a pressão da opinião pública supriu a falta de provas.” Nada tão atual!

Na verdade, esperavam os algozes – como se dava no costume – que o acusado, durante o suplício na roda, confessasse o crime, legitimando a sentença de morte, inclusive em relação aos demais. Nada obstante a tortura e os pedidos do Juiz-inquisidor para que confessasse o assassinato, o pai não o fez, repetindo até o último suspiro que era inocente, pedindo sempre a Deus que perdoasse os seus algozes. Um padre católico que esteve durante as duas horas de sofrimento atestou “lealmente a firmeza de alma de Jean Calas.”

Tampouco conseguiram a confissão ou a delação do jovem Lavaisse, apesar de o terem ameaçado de tortura e morte. Ao contrário, ele preferiu expor-se ao suplício do que mentir, afirmando falsamente que havia se afastado dos Calas por um momento, quando então teriam matado Marc-Antoine Calas.

Diante da ausência de confissão, os Juízes, contraditoriamente, deixam de condenar os demais acusados à pena de morte – que seria o óbvio -, já que todos haviam sido acusados pelo mesmo crime. O filho Pierre é condenado ao banimento (e depois encarcerado em um convento de dominicanos) e os demais são postos “para fora do tribunal; noutras palavras, absolvem-nos. Era reconhecer implicitamente o erro judiciário.” A mãe, depois de ver as duas filhas obrigatoriamente postas também em um convento católico, ficou “só no mundo, sem pão, sem esperança e sucumbindo ao peso de sua infelicidade.

Tomando conhecimento do absurdo erro judiciário, Voltaire (que até então não conhecia a família Calas) dedica-se a provar a inocência do pai, advogando perante “a Europa das luzes, movido apenas por um espírito de justiça, de verdade e de paz.

Após três meses de estudo do caso, interrogatórios, diligências e investigações, o filósofo consegue, em 9 de março de 1765 (exatos três anos depois da primeira decisão), por unanimidade, uma sentença de reabilitação da memória do pai.

Não houvera um homicídio! A vítima suicidara-se.

O jovem Marc-Antoine Calas, “um homem de letras, e um espírito inquieto, sombrio e violento“, impedido de ser advogado (como desejava) em razão da religião que professava, inapetente para o comércio (como queria o pai) e tendo acabado de perder uma pequena fortuna no jogo, “decidiu acabar com sua vida e fez pressentir esse propósito a um de seus amigos; firmou-se em sua resolução através da leitura de tudo o que até então se escrevera sobre o suicídio.

Toda a família foi declarada inocente, reconhecendo-se que o julgamento foi “iníquo e abusivo, levado por indícios equívocos e pelos gritos de uma multidão insensata, causando a ruína inteira de uma família inocente.”

As filhas foram devolvidas à mãe, e os Calas foram autorizados a processar os juízes tolosanos, responsabilizando-os por perdas e danos. O Rei mandou entregar trinta e seis mil libras à mãe, às filhas e ao filho, três mil das quais para ser dada à empregada “que defendera constantemente a verdade ao defender seus patrões.”

Então, como descreve Voltaire, “foi uma grande festa em Paris; as pessoas reuniam-se nas praças públicas, nos passeios; todos queriam ver essa família tão infortunada e tão bem justificada; os juízes eram aplaudidos, cumulados de sentimentos de gratidão.”

O processo de reabilitação durou, como se nota, muito mais tempo do que o de condenação, afinal, “tanto é fácil ao fanatismo arrancar a vida à inocência, como é difícil à razão restituir-lhe a justiça. Foi preciso suportar demoras inevitáveis, necessariamente ligadas às formalidades. Quanto menos essas formalidades foram observadas na condenação de Calas, tanto mais deviam sê-lo rigorosamente pelo Conselho de Estado.”

Enfim, trata-se de um livro especialmente dedicado ao estudo da tolerância religiosa, da liberdade de pensar e do ato de julgar, sendo “uma petição que a humanidade apresenta muito humildemente ao poder e à prudência.” Voltaire queria semear “um grão que algum dia pudesse produzir uma grande colheita.” Infelizmente, a semente não fez produzir a colheita desejada, e, hoje, em pleno século XXI, mata-se em nome de Deus, persegue-se quem não professa determinada religião, tortura-se a partir de um fundamentalismo religioso inaceitável, e os fariseus e fanáticos religiosos desprezam a vida humana.

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS

[1] A presente resenha baseia-se na 2ª. edição da Editora Martins Fontes, São Paulo, 2000.

[2] O outro filho, Louis Calas, não mais vivia com a família, pois, alguns anos antes, convertera-se ao catolicismo, com a aprovação do pai, inclusive. Vivia, desde então, à custa de uma pensão paga pelo pai após a abjuração, obrigação imposta pelo bispo da Igreja Católica (que também o obrigou a quitar todas as dívidas do filho): “levava uma vida preguiçosa, incapaz de ocupar um emprego fixo, subsistindo apenas da mesada paterna.” Um outro filho, o mais jovem, Donat Calas, também ausente do jantar naquele dia, estava como aprendiz em Nîmes. O casal também tinha duas filhas, Rosine e Nanette, respectivamente, com 20 e 19 anos, ambas também ausentes, pois tinham ido ao campo colher uvas, como todos os anos faziam.

[3] Perguntava Voltaire: “como é que todos juntos teriam podido estrangular um jovem tão robusto quanto eles todos, sem um combate longo e violento, sem gritos terríveis que teriam alertado a vizinhança, sem golpes reiterados, sem ferimentos, sem roupas rasgadas?

[4] Cinco anos antes, em 2 de março de 1757, Damiens também havia sido condenado na França por um “dito parricídio”, tendo seu corpo sido “puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento; e, finalmente esquartejado: essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retarlhar-lhe as juntas.” (FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 9.

Redação

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