A inconveniente evidência jurídica da militância, por Eliseu Raphael Venturi

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Victor Brauner. Memory of Reflexes, 1954 [i] 

A inconveniente evidência jurídica da militância

por Eliseu Raphael Venturi 

“Militância”, “ativismo”, “abraço de causa”: poucos termos assumiram sentidos tão equivocados – e irônicos – na política contemporânea e seus “desesclarecimentos” quanto estes que, no mais, redundam em usos ideológicos que buscam mascarar o conflito social – e é justamente esta a sua função discursiva, quando o discurso é também ação.

O equívoco se apresenta justamente porque, no imaginário do senso comum – esta caixa de amarrotes autoritários, que se exponencia em redes e na qual se enleia muita gente boa e titulada – haveria algo de extremamente controverso, polêmico, inédito, e, mais, subversivo, no “pleito” de diversas populações em torno ao conteúdo dos direitos.

Fala-se, então, em “chatice”, em “politicamente correto”, em “policiamento” e outras expressões pejorativas e, no mais, um tanto superficiais em termos de leitura e de valoração de mundo, quando, em verdade, se está apenas vivendo a incompreensão e o medo de tudo aquilo que, se não é familiar, postas as limitações de conhecimento, é ameaçador, posta a consciência da fragilidade dos vínculos de tudo aquilo que acriticamente se assentou como verdade dada.

Se o campo dos direitos humanos contemporâneos, pós Segunda Guerra Mundial, eclodiu a acolhida às figuras identitárias e às pós-identitárias, assumindo de modo expresso em sua linguagem uma diversidade de modos de vida e de sujeitos de direito jamais antes imaginada nos padrões da racionalidade moderna, ao mesmo tempo o campo do político e da ética, diante das violações sistemáticas e naturalizadas de direitos, viu-se especialmente ativado pela inconformidade de populações inteiras diante de cenários de exploração, de opressão, de subjugação e de reificação de suas vidas individuais e coletivas.

Entre um espaço e outro, assim, abriu-se uma arena política que contém uma contradição interna que, ainda que aparente, é questionável: faz sentido um conflito da vida social com a ordem jurídica quando esta mesma ordem jurídica abriu uma linguagem um tanto emancipadora, tornando-na legalidade? Se a base da ideia de direitos é justamente uma “desconfiança ante o poder”, do que se deve desconfiar quando, ao menos no plano da linguagem declarada se tem justamente a proclamação de diversos limites, que são justamente os mecanismos daquela desconfiança fundante?

Em certo sentido, portanto, o espaço de argumentação moral estreitou-se, justamente para se expandir no sentido de que não se aceitariam mais expedientes para produzir vedações arbitrárias de direitos, no mais baseadas em sexismos, racismos, culturalismos etnocêntricos, dogmatismos religiosos, niilismos democráticos e ortodoxias econômicas. Em nome da tolerância, produziram-se nós de intolerância indeclinável.

Exércitos se levantam para afastar obrigações decorrentes destes ônus de argumentação moral. Estes exércitos são feitos de “estudiosos”, de “professores”, de gente “letrada”, mas também de uma massa irrefletida; é mais ou menos uma tendência que faz o professor de direito penal proferir o mesmo tipo de discurso antidemocrático, antigarantista, antijurídico, violento e odioso de certos filões de jornalismo policial.

Um militante de direitos humanos é alguém em busca de reconhecimento de direitos? Mas não deveria o Estado – e toda sua malha de desdobramentos – ser o primeiro a empregar a racionalidade destes mesmos direitos que lhe vinculam a racionalidade e lhe revestem a legitimidade institucional, e isto dito no plano dogmático, pela ciência jurídica? Ou, não deveria também a iniciativa privada respeitar e proteger estes mesmos direitos, pelos mesmos motivos de dogmática jurídica contemporânea?

Ativistas de direitos humanos, igualmente, precisam levantar uma voz em busca de respeito e reconhecimento de direitos. Mas há algo assim de tão criativo nestes direitos, que demande tamanho esforço social? Por que existem militantes e ativistas, para afirmar o óbvio? Para gritar “não nos matem”, “não me matem”?

Infelizmente, levas de gerações de “juristas”, “profissionais do direito” ou qualquer expressão similar para se referir às pelintas e disciplinares cadeiras dos intérpretes do Direito passaram a entender o Direito nem como arte, nem como ciência, nem tampouco como política, senão como aquela de consolidação de dogmas e moralismos pontuais, quando não o Direito como mero passaporte para cargos seguros que forneceriam mais passaportes ao parque de diversões do consumo.

Não à toa há todo um ideário de preparatórios de concurso que se assemelham a agências de turismo e de moda em suas propagandas, como que cargos, empregos e funções públicas fossem lugares de realização econômica do indivíduo, a despeito da principiologia que obriga os ocupantes destes espaços públicos. Não se nega que o sujeito obtenha êxito econômico de seu trabalho, é óbvio, mas, ao se falar em Direito, é isso que se enfoca? Esta é a teleologia?

Aquelas levas de geração, ainda, assim, entenderam o Direito como algo em torno à execução de manuais de instruções e demais documentos do mundo do consumo rápido, preferencialmente de mecanismos esquemáticos e dispositivos automáticos.

Com essa simplificação, temos um teatro bizarro em que o ator não encena o texto prescrito pelo autor; ele é uma espécie de dadaísta-acrítico de mal gosto, mas chama-lo dadaísta é equivocado, porque dadaísta é um artista. Palhaço, quiçá, seria ofensa aos profissionais circenses, porque além do mais dominam a arte do improviso e do riso. Então este Direito muitas vezes se resume à encenação incômoda em que se entrega ao espectador um acúmulo de palavras em desordem, conceitos em desordem, mundo em desordem, quando o discurso é também ação. Desperdício de tempo, de vidas e de palavras.

O que a existência de militância, ativismo e abraço de causas evidencia é justamente a fratura de racionalidade jurídica (ou de sua irracionalidade), de compromisso democrático e de políticas de efetivação e concretização de direitos humanos e fundamentais. A demanda por tais políticas é a imagem perfeita das violências institucionais, das desconexões normativas e das inconclusas “inconstruções” dos adensamentos normativos e da semântica dos direitos humanos, que ainda não são levados a sério como deveriam em sua plena normatividade e potencial de estruturação.

Volta-se, então, ao equívoco do senso comum, inicialmente descrito: haveria algo de extremamente inédito em torno ao conteúdo dos direitos, quando, em verdade, o que o pleito da militância, do ativismo e do abraço de causas demonstra é justamente o fosso institucional, a carne em brasa da marca do ferro quente da discriminação, do desejo excludente, do ímpeto castrador e mortífero da privação alheia de direitos cuja titularidade é juridicamente posta, inclusive. O que sobra é perseguição e assassinato sistêmico destes que dão o sangue e a vida em nome da militância, do ativismo, do abraço de causas.

Esta pequena fresta permite, então, antever alguns cenários. Das políticas de ódio à diferença, qualidade de toda política de exclusão, que anima os mais severos opositores dos militantes, passa-se à vergonha institucional, à incompetência no sentido de desqualificação mesmo, porque a atuação institucional é pautada (deve ser, para sê-lo) pelos padrões da legalidade, da constitucionalidade e da convencionalidade, bem como da laicidade, inclusive, quando da criação normativa mesmo no seu mais basilar solo das relações políticas. Gostem os doutos ou não, a vedação do retrocesso é um vetor jurídico imprescindível diante das políticas de assujeitamento.

É quando os bandidos viram mocinhos e toda uma certa linguagem esfarela, esfiapa, o fio se abre e mostra que a madeira não passa de poeira; e quando a empáfia, a arrogância, e insolência, a ignorância do poder se converte em ilegalidade e em antijuridicidade. É quando o gêiser ideológico opera seu crepúsculo da inversão dos sinais e as aparências do forte emergem a fraqueza e as pressuposições de vida mostram sua face de morte.

É quando o riso e a lágrima do filósofo coincidem em um estranho líquido amargo, uma secreção do corpo ainda sem nome dado pela bioquímica.

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[1] Disponível em: <https://www.menil.org/collection/objects/4930-memory-of-reflexes-memoire-des-reflexes>. Acesso em: 26 jan. 2019.

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Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

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