A máquina do ódio, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Saint-Exupéry e Patrícia de Campos Mello construíram textos colocando-se dentro e fora de episódios históricos que ocorreram (ou que teriam ocorrido). 

A máquina do ódio

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Uma leitura em progresso. Rapidamente cheguei à metade do livro Patrícia Campos Mello. Esse é o primeiro comentário sobre o texto. O segundo será publicado semana que vem, ou não.

Antoine de Saint-Exupéry, disse certa feita que “O futuro escapa à análise. O homem progride, forjando uma linguagem para formar o mundo do seu tempo.” (Um sentido para a vida, Antoine de Saint-Exupéry, Editorial Aster, Lisboa, 1968, p. 136).

As semelhanças entre o escritor francês e a jornalista brasileira me parecem evidentes. Ambos escreveram sobre suas experiências pessoais. Saint-Exupéry e Patrícia de Campos Mello construíram textos colocando-se dentro e fora de episódios históricos que ocorreram (ou que teriam ocorrido).

O efeito literário produzido pela alternância do foco narrativo é interessante. Nesse momento, a empatia que esse expediente desperta no leitor brasileiro é maior no caso da jornalista da Folha. A distância que nos separa das aventuras do escritor francês não é apenas geográfica. Ela também é histórica e civilizacional. A linguagem que Saint-Exupéry forjou para um mundo analógico, em que as distâncias entre os países e os continentes começaram a diminuir, não tem muita utilidade num período em que a comunicação instantânea é uma realidade onipresente no planeta inteiro.

O segredo do sucesso de um livro é sua capacidade de cativar o leitor. Muito embora Campos Mello não tenha o mesmo refinamento literário que Antoine de Saint-Exeupéry a obra dela parece destinada a ser bem sucedida. “A máquina do ódio“ foi publicado no calor dos fatos e eles ainda não tiveram provocaram todos os desdobramentos possíveis. Alguns deles certamente poderão ser ou serão creditados à própria jornalista.

Patrícia Campos Mello diz que:

“Quando publicamos as primeiras denúncias, em 2018, o próprio TSE não sabia a diferença entre impulsionamento – estratégia para ressaltar propagandas e postagens no Facebook e Twitter, negociada diretamente com as plataformas – e disparos em massa no WhatsApp – sob a responsabilidade de agências de marketing contratadas pelas campanhas ou por apoiadores, que envolvem pagamento direito ao WhatsApp.” (A máquina do ódio, Patrícia de Campos Mello, Companhia das Letras, São Paulo, 2020, p. 69)

A Justiça deve ser cega, mas não pode ser ignorante. Quando profere decisões contestadas pela ignorância popular, a Judiciário se expõe à execração pública. A força da Justiça não nasce no cano do fuzil (como disse um apoiador de Bolsonaro) e sim da autoridade que ela inspira em razão de não ser submetida pela força bruta. Nesse sentido, o livro da jornalista da Folha preenche um vazio e possibilita à Justiça decidir com destemor.

Os fundamentos fáticos e jurídicos para a cassação da chapa Bolsonaro/Mourão existem. Patrícia Campos Mello forneceu um contexto em que isso pode ocorrer tranquilamente, pois seu livro reduz a ignorância sobre o que de fato ocorreu durante a eleição de 2018. A jornalista da Folha forjou uma linguagem capaz de dar forma ao nosso mundo aqui e agora.

Em Piloto de Guerra, após confessar ter dilapidado sua herança, Saint-Exupéry procura se reconectar com a realidade refletindo sobre o que de ser feito em relação ao nazismo.

“…O interesse reclama em primeiro lugar que se viva. Que entusiasmo de amor haveria, capaz de pagar a minha morte? Morre-se por uma casa. Não por objetos nas paredes. Morre-se por uma catedral. Não pelas pedras. Morre-se por um povo. Não por uma multidão. Morre-se por amor do Homem, se é a chave da abóbada de uma comunidade. Só se morre por aquilo que se pode viver.

O nosso vocabulário dava a impressão de permanecer quase intacto, mas as nossas palavras, que tinham perdido a substância real, levavam-nos a contradições sem saída, sempre que pretendíamos servir-nos delas. Estávamos condenados a fechar os olhos a esses litígios.” (Piloto de Guerra, Antoine de Saint-Exupéry, Editorial Aster, Lisboa, 1968,  p. 210)

Ameaçada de morte, ofendida moralmente de maneira sistemática, perseguida incansavelmente nas redes sociais, a jornalista brasileira enfrentou o bolsonarismo. Não vou reproduzir aqui as mensagens que ela recebeu e provavelmente voltou a receber em virtude do lançamento do livro. Quem quiser visualizar o estrago que Bolsonaro e seus apoiadores estão causando à língua portuguesa, à comunicação entre os brasileiros e, por via consequência, à racionalidade política, deve ler com bastante atenção as mensagens ofensivas reproduzidas no livro da jornalista da Folha.

 “O que sou eu, se porventura não participo? Para ser, tenho necessidade de participar.” (Piloto de Guerra, Antoine de Saint-Exupéry, Editorial Aster, Lisboa, 1968,  p.165). A mesma pergunta e uma resposta semelhante parecem ter levado Patrícia de Campos Mello a reportar o que ela descobriu acerca dos caudalosos rios de ódio e desinformação que foram alimentados pelo bolsonarismo durante a eleição. Apesar das medidas restritivas tomadas recentemente pelo STF, eles continuam se espalhando em todas as direções.

Os “blogues sujos” que apoiavam o PT, segundo a autora, teriam fornecido o paradigma:

“Para os esforços de moldar a narrativa, há um ecossistema de sites, blogs e influenciadores que inundam as redes sociais com as versões que querem emplacar ou os ataques à reputação do alvo da vez. Entre os mais influentes veículos bolsonaristas estão o Terça-Feira, o Conexão Política, Crítica Nacional, Jornal da Cidade, Movimento Brasil Conservador, República de Curitiba, Senso Incomum, além de várias contas em redes sociais, como Isentões, Bernardo Küster, Leandro Ruschel. Não difere muito da atuação dos blogs governistas na era do governo PT (O Cafezinho, Diário do Centro do Mundo, Tijolaço, Blog Cidadania, Viomundo), mas naquela época esse ecossistema era bem menos desenvolvido, não tinha o alcance e a magnitude de hoje, e as próprias redes sociais não eram tão onipresentes.” (A máquina do ódio, Patrícia de Campos Mello, Companhia das Letras, São Paulo, 2020, p. 112/113)

Patrícia de Campos Mello não reportou no livro dela o conteúdo das mensagens que ela ou outros jornalistas teriam recebido de O Cafezinho, Diário do Centro do Mundo, Tijolaço, Blog Cidadania e Viomundo. Impedido de comparar os dois fenômenos com base em informações precisas, um leitor desatento do livro pode acabar sendo vítima de uma narrativa que está sendo orquestrada pela imprensa: a equivalência entre o lulismo e o bolsonarismo.

Essa narrativa, que parece ter sido construída para possibilitar à imprensa se isentar de sua própria responsabilidade (o bolsonarismo é um filhote genuíno do discurso antipetista que foi criado, alimentado e espalhado exaustivamente pela imprensa brasileira) , não será capaz de recuperar alguma civilidade entre os brasileiros. Ao equiparar automática e irrefletidamente o bolsonarismo ao lulismo sem fornecer ao leitor provas inequívocas dessa “verdade alternativa”, Patrícia de Campos Mello tenta se libertar de contradições sem saída fazendo uso delas.

A ignorância dificulta a distribuição de Justiça. A criação de equivalências artificiais é uma excelente maneira de reforçar injustiças históricas e eleitorais. Enquanto a imprensa brasileira não reconhecer que é responsável pelo nascimento do bolsonarismo os jornalistas continuarão a sofrer as consequências desagradáveis e trágicas desse sistema de poder baseado no ódio, na chantagem, nas ameaças e, sobretudo, na desinformação.

Saint-Exupéry dilapidou sua herança e morreu combatendo o nazismo. Patrícia de Campos Mello combate o bolsonarismo como se fosse possível culpar os adversários de Bolsonaro e omitindo o antipetismo jornalístico (a principal característica do jornalismo brasileiro desde a vitória de Lula em 2002). Como o autor francês, a jornalista brasileira escreveu uma obra envolvente. Mas ao contrário de Saint-Exupéry, Patrícia de Campos Mello faz o leitor dilapidar seu precioso tempo. Mesmo assim não deixarei de recomendar o livro, pois ele tem a virtude de estimular um debate indispensável sobre a legitimidade da manipulação do resultado das eleições com o uso do WhatsApp.

Uma última observação de cunho pessoal. Três dos blogues citados por Patrícia de Campos Mello já publicaram textos de minha autoria. Isso faz de mim uma pessoa semelhante às bestas-feras que atacaram ferozmente a autora de “A máquina do ódio”?

https://www.viomundo.com.br/denuncias/por-causa-de-um-tweet-pf-gasta-rios-de-dinheiro-publico-e-faz-funcao-do-velho-dops.html

https://www.ocafezinho.com/2016/07/29/sergio-moro-e-os-cacadores-de-cabecas-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/anote-ai-senhor-ministro-da-saude-a-cloroquina-nao-salvou-a-vida-do-meu-tio-diz-sobrinho-de-vitima-da-covid-19/

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. Não devo ter compreendido integralmente todo esse texto do Fábio e por isso me permito abordar apenas um aspecto enfocado pela jornalista e autora do livro A Máquina do Odio, ou seja a ignorância da Justiça, aqui personificada no TSE, mas preferindo trocar ignorância por cafajestice mesmo daquele tribunal. Pois venho batendo nessa tecla faz tempo: não adianta insistir com pedidos de impeachment do Boçalnaro, primeiro porque Maia não o libera mesmo para votação, segundo porque se liberasse, certamente o centrão comprado daria vitória ao boçal, e terceiro porque se cassassem o boçal, simplesmente trocariam seis por meia dúzia, já que Mourão comunga boçalidade com o outro e Guedes continuaria cagando na economia do país e produzindo o resultado que está aí, desgraçadamente. A melhor alternativa para nos livrarmos da cafajestice instalada no planalto é a cassação da chapa. E, como diz a jornalista, “os fundamentos fáticos e jurídicos…existem”. Mas se “a ignorância dificulta a distribuição de Justiça” e se esta “deve ser cega mas não pode ser ignorante”, o TSE ostenta atributos do meu ponto de vista muito piores que “ignorante”. Covardia e Cafajestice mesmo lhe caem muito bem. Afinal, aqueles votos envoltos numa roupagem de erudição são engana trouxas…pois quem os profere sabe, sim, repito, sabe sim que empresários financiaram disparos de mensagens denegrindo o candidato Haddad do pior modo possível para olhos e ouvidos de um eleitorado infelizmente cheio de analfabetos políticos e falso moralistas…e isso determinou o resultado da eleição: eleita uma chapa criminosamente, à custa de mentiras. Finalizo, implorando a ministros daquele tribunal (propositalmente com “t” minúsculo): tomem vergonha na cara e tenham a mesma coragem que têm quando cassam prefeitecos sem expressão nenhuma pelo país afora, só isso.

  2. “Essa narrativa, que parece ter sido construída para possibilitar à imprensa se isentar de sua própria responsabilidade (o bolsonarismo é um filhote genuíno do discurso antipetista que foi criado, alimentado e espalhado exaustivamente pela imprensa brasileira) , não será capaz de recuperar alguma civilidade entre os brasileiros. Ao equiparar automática e irrefletidamente o bolsonarismo ao lulismo sem fornecer ao leitor provas inequívocas dessa “verdade alternativa”, Patrícia de Campos Mello tenta se libertar de contradições sem saída fazendo uso delas.”
    Não precisa dizer mais nada, assunto encerrado.

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