“A Marvada Carne”: pandemia e precariedades do trabalho na indústria frigorífica internacional, por Antonio Hélio Junqueira

“A Marvada Carne”: pandemia e precariedades do trabalho na indústria frigorífica internacional

por Antonio Hélio Junqueira[1]

Ao longo dos anos, importantes cadeias globais de valor vêm sendo esmiuçadas e publicamente denunciadas pela sua insustentabilidade socioeconômica e ambiental, especialmente quando envolvem a manutenção e a exploração de seus trabalhadores em condições análogas às da escravidão. Muito provavelmente, a indústria têxtil e de confecção assume e mantem-se na liderança desse triste rol. Felizmente, a vigilância social sobre aquele setor vem resultando em progressivos avanços na proteção do trabalho, em prol de uma melhor justiça social. Ainda que longe de resolver, de fato, o problema, não se pode negar que a execração e os boicotes públicos vêm obrigando conglomerados, indústrias e marcas a promoverem revisões e readequações de condutas que acabam por resultar em algum benefício palpável aos trabalhadores.

No contexto pandêmico atual, parece chegada a hora e a vez de a indústria frigorífica internacional mostrar sua cara e enfrentar a sua danação. Em muitos países, incluindo o Brasil, a contaminação de trabalhadores pobres, negros e imigrantes, obrigados a manterem-se plenamente ativos, mesmo sobre o risco certo de contraírem a doença, vem ganhando espaço midiático para sua denúncia e arregimentando indignações, protestos e adoção de medidas por autoridades sanitárias e fiscalizatórias do trabalho em todo o mundo.

As rotinas do trabalho nas linhas fordistas de produção do abate de carnes, prevalecentes na indústria internacional, tornam o isolamento e as medidas físicas do afastamento pessoal praticamente impossíveis. Proximidades, contatos e manipulações sequenciais e intensas da carne são realidades dadas. Os sistemas de refrigeração empregados reduzem a taxa de renovação de ar. A isso se somam, ainda, inúmeras precariedades nas condições das instalações de dormitórios e espaços de refeições, higienizações e aglomerações de trabalhadores, especialmente no caso de imigrantes – latinos, no caso dos EUA; romenos, búlgaros e poloneses no dos países mais ricos da União Europeia.

Para a construção de um cenário que não dá mostras de melhora no curto prazo, contribuem decisivamente a supremacia da carne nas dietas e preferências alimentares ocidentais e o terror do desabastecimento que tais condicionantes provocam nas populações e, por consequência, nas autoridades públicas. A carne é, por excelência, o alimento da distinção entre as classes e o símbolo maior da hierarquia social da comida. Abrir mão de seu consumo, ou apenas correr o risco de sua abdicação temporária, assume proporções, impactos e consequências que ainda não estamos acostumados a vivenciar e aquilatar. Certo é que tais ameaças constituíram-se nos principais gatilhos das medidas e ordenamentos disparadas por governos de várias partes do mundo para que os funcionamentos dos frigoríficos fossem mantidos, a despeito das condições inadequadas ao trabalho seguro e das reconhecidas ameaças reinantes. Configuraram-se, aqui e ali, verdadeiras “zonas de guerra” da carne, opondo autoridades, organizações de saúde coletiva, consumidores e trabalhadores, com nítidas desvantagens para esses últimos.

Na primeira quinzena de maio, nos EUA, cerca de 5.000 trabalhadores da indústria frigorífica já haviam testado positivo para o coronavírus, em um cenário de inegável e dramático contornos étnicos e socioeconômicos. De fato, comprovadamente, uma parcela majoritária de 52% dos trabalhadores de frente da indústria cárnea norte-americana é composta por latinos e 25%, por negros; 45% deles vivem abaixo da linha de pobreza e mais da metade são imigrantes.

Na Alemanha, no mesmo período, a situação observada não foi muito diferente. Os abatedouros registraram centenas de casos de infecção por coronavírus, especialmente entre trabalhadores estrangeiros, sujeitos a precárias condições de higiene, habitação e convivência.

No Brasil, casos de contaminação de trabalhadores em frigoríficos têm sido observados especialmente no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, que concentram parte relevante dessa cadeia produtiva no País. Segundo apurações do Ministério Público do Trabalho (MPT), em 19 unidades gaúchas e em outras seis catarinenses foram identificados trabalhadores com covid-19. Apenas no Rio Grande do Sul foram contabilizados, até meados do mês de maio, ao menos 495 casos da doença nos frigoríficos investigados e cerca de 20 mil trabalhadores expostos.

Há anos, a indústria da carne bovina vem sendo alvo de preocupações e denúncias de agentes sanitaristas e ambientalistas de várias partes do mundo. Contribuem para isso as ameaças da atividade ao desmatamento de florestas e suas altas taxas de emissões de gases de efeito estufa. Para combater tais eventos, reduções no consumo da carne vermelha vêm sendo solicitadas e diferentes campanhas educativas e medidas orientativas são adotadas com o respaldo de autoridades médicas e nutrólogos, de diferentes linhas e orientações em saúde coletiva e dietética. Relações entre alto consumo de carnes vermelhas e incidências de cardiopatias, colesterol elevado, pressão alta e doenças degenerativas, como vários tipos de câncer, parecem não encontrar mais espaço para refutações científicas.

Movimentos ativistas como o vegetarianismo e o veganismo, em diferentes frentes, somam esforços na direção da diminuição, ou até mesmo, eliminação total dos abates animais. No entanto, mesmo no contexto pandêmico atual, o comportamento do consumidor parece não arrefecer em relação à demanda por carne, provocando, ao contrário, escassez e subida de preços frente à necessidade sanitária de redução momentânea de abates e transporte de carnes frigorificadas.

Tal fenômeno nos obriga a fazer algumas reflexões, especialmente por que muitos profetas, visionários e futuristas de primeira hora, revestidos de autoridade autoatribuída,  apressam-se em apontar a emergência de um “novo normal” na vida cotidiana, do qual resulta, quase que osmoticamente, um novo consumidor repleto de consciências, propósitos e engajamentos sociais em prol do bem coletivo. Um consumidor disposto, assim, a abrir mão de hábitos, práticas e culturas arraigadas, até mesmo no setor alimentar, o qual se radica em experiências socioculturais, históricas e psicoafetivas profundas.

Não se pode deixar de reconhecer que é muito mais fácil, especialmente no contexto suspeitoso da origem da covid-19, julgar e condenar a existência e as práticas dos chamados mercados molhados (wet markets) da China, Indonésia e Filipinas do que analisar e rever nosso próprio consumo animal. Assim nomeados devido ao constante escorrimento e fluxo de água pelo chão, utilizada para a limpeza dos alimentos comercializados sem refrigeração, esses mercados oferecem à compra e ao consumo, não apenas frutas, verduras, legumes, grãos, pescados e carnes tradicionais, mas também morcegos, cobras, lagartos, cães e outras carnes consideradas imundas ou imorais para os padrões ocidentais. Mercados de tradição milenar na oferta de alimentos baratos e proteínas mais acessíveis à população se transformam rapidamente, assim, em alvo fácil da pressão internacional para que sejam fechados, mesmo que se constituam peça chave na estrutura do abastecimento alimentar daqueles países. De fato, estima-se que apenas em Xangai se contabilizem mais de 1.000 desses equipamentos. Para a China e outras regiões, entre 50% e 80% do suprimento alimentar podem ser originários desses ditos, e agora malditos, mercados molhados.

Porém, tanto lá como aqui, as feiras populares representam muito mais do que simples alternativas para a aquisição alimentar. São espaços de socialização, relacionamento, atualização e trocas afetivas entre produtores e consumidores. Simples instituições de proibições legais e de penalidades não resolvem demandas pela supressão do consumo de espécies selvagens, ou quaisquer outros gêneros. Questões e práticas educativas, geradoras de informação e consciência crítica são fundamentais. Por isso insistimos: mudanças de práticas alimentares, assim como de consumo de outras categorias de produtos e serviços, não são respostas simples e automáticas a alterações nas condições momentâneas de funcionamento dos mercados. Pelo contrário, decorrem de acúmulos, superposições, consolidações das experiências e das vivências cotidianas pessoais e coletivas.

A exposição e a denúncia das péssimas condições vigentes para o trabalho na indústria frigorífica não foram, até o momento, suficientes para induzir a drástica redução do seu funcionamento durante a pandemia, nem para instigar novos formatos, rotinas e práticas ergonômicas e sociais mais justas e protetoras para o trabalho no interior das suas plantas industriais. Tampouco o serão no cenário do consumo pós-pandêmico, a menos que para isso confluam outros esforços coletivos.

De fato, evidências empíricas do comportamento do consumidor no mercado pandêmico de carnes não permitiram o registro, pelo menos até esse momento, de movimentos de ativismo consciente para a redução solidária no consumo de carnes, especialmente as vermelhas. Pelo contrário, o que se viu foram pressões concentradas de demanda, aumento de preços e necessidades de controlar a venda per capita no varejo, notadamente nos Estados Unidos, onde a crise frigorífica tem se revelado a mais agravada no cenário mundial.

No Brasil, as condições de trabalho em frigoríficos, caracterizadas pelo intenso manuseio de instrumentos cortantes, centenas de repetições de movimentos em reduzidíssimos espaços de tempo e jornadas conduzidas em ambientes exaustivos e insalubres têm sido registradas em estudos e documentários, como, por exemplo, o multipremiado “Carne e Osso”, produzido pela ONG Repórter Brasil, em 2011 (65 min.; direção de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros). A necessidade da atenção constante para não sofrer ferimentos graves, sob a demanda de um sem número de operações sequenciais e ininterruptas, em nada difere do ambiente da indústria fordista já retratado pela filósofa francesa Simone Weil (1909-1943)[2], a partir de sua experiência de trabalho como operária nas fábricas de Alshton e Renault, em Paris, entre os anos de 1934 e 1936. Nesses escritos, os relatos da própria vivência da pensadora são extremamente humanos e solidários com os operários, registrando de maneira indelével a dor física, intelectual e emocional da desumanização e do desenraizamento pela precariedade das condições do trabalho.

Comida é boa não só para comer, mas também para pensar, já nos ensinava o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, nos longínquos anos da década de 1930. A criticidade do atual momento, que concentra as pandemias do coronavírus, mas também e simultaneamente as da obesidade, da má nutrição e da mudança climática, constitui-se em excelente oportunidade para a revisão consciente de padrões, hábitos e práticas de produção e consumo alimentar, em todo o mundo.

Dados de estudos e pesquisas internacionais são conclusivos a respeito: é necessário reduzir o consumo de carnes vermelhas para o bem da saúde humana tanto quanto para a sustentabilidade e a sobrevivência do planeta. Nesse sentido, os esforços têm que ser globais. Não bastarão as ações de ONGs e de coletivos ativistas, por mais bem-intencionadas e bem-vindas que sejam. Serão necessários investimentos educativos de larga escala por organizações nacionais e internacionais, corporações, empresas e governos em todos os seus níveis de mando e direção.

A tarefa é árdua, porém necessária. No Brasil, o papel dos alimentos vegetais na composição das dietas é historicamente vinculado à pobreza. Conforme registra Gilberto Freyre[3], a colônia instaurou no País uma cultura em que “o vegetal, ou o ‘mato’, com uma exceção ou outra, representava alimento barato e desprezível, da gente de senzala e da de mucambo”. Para os senhores de engenho e de terras e para as “gentes nobres dos sobrados”, comer vegetais equivalia a comer mato, característica que remetia à população escrava, em contraposição à elite, que sempre deu preferência à alimentação baseada na carne. Arraigado na cultura, o desejo sempre frustrado dos pobres em poderem se alimentar de carne bovina já foi retratado por Antônio Cândido[4] como a insuperável “fome psicológica” das populações caipiras paulistas, metáfora imortalizada no premiadíssimo filme “A marvada carne” (1985; direção de André Klotzel. Tatu Filmes, 77 min.).

Como faremos para lidar com todo esse quadro de culturas e carências, hábitos e iniquidades, consciências e urgências, tradições e necessidades de mudanças alimentares será uma demanda de enorme envergadura para o campo da educação, comunicação e consumo. Tarefa difícil, sim. Porém incontornável se quisermos seguir adiante com a saúde de pessoas e planeta, pelo menos na forma como os conhecemos e deles fazemos parte.

[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.

[2] WEIL, Simone. A condição operária e outros escritos sobre a opressão. Org. por Ecléa Bosi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

[3] FREYRE, G. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 311.

[4] CÂNDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudos sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

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  • O autor do texto levanta de passagem o item principal que não é levado em conta, o trabalho nas câmaras frigoríficas. O mais importante de tudo é que após muitas idas e vindas dos pesquisadores eles estão chegando a conclusão que o mecanismo de transmissão do vírus é AÉREO, ou seja, via RESPIRAÇÃO HUMANA, as lavagens de mãos e desinfecções de ambientes são ações subsidiárias e não representam a maioria das infecções.
    O VÍRUS SE TRANSMITE ESPECIALMENTE EM AMBIENTES FECHADOS SEM RENOVAÇÃO DE AR.
    Em resumo, matadores tem câmaras frigoríficas que por questão de ECONOMIA DE ENERGIA, O AR FRIO É RECIRCULADO SEM RENOVAÇÃO ou FILTRAGEM pois o ingresso de ar externo implica na resfriamento do ar externo a temperatura ambiente, ou seja, teria que ser rebaixado mais de 20ºC até 40ºC custando muito em termos energéticos e custos para o matadouro.
    A JBS teve problemas tanto no Brasil como nos USA, pois o esquema de manipulação é o mesmo.
    O certo era mudar toda a forma do matadouro evitando essa necessidade de trabalho extenso nas câmaras frigoríficas, em resumo, deveria ser mudado toda a regulamentação INTERNACIONAL.

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