A nudez da alma de Bolsonaro exposta em rede nacional, por Antonio Rodrigues do Nascimento

Numa guerra ou numa crise sanitária, a vida de milhões depende da sensibilidade e capacidade de elaboração de sentidos das pessoas investidas de autoridade.

A nudez da alma de Bolsonaro exposta em rede nacional

por Antonio Rodrigues do Nascimento

“O significado das coisas não está nas coisas em si, mas sim em nossa atitude com relação a elas”. (Antoine de Saint-Exupéry)

As reações humanas diante dos mínimos infortúnios ou das máximas desgraças são muito distintas. Para o velho paciente do Dr. Rieux, sobrevivente da peste que ceifou centenas de vidas em Oran, a tragédia foi apenas um incidente da vida, “nada mais”. Já para seu médico que lutou sem tréguas pela salvação de vidas, o flagelo foi uma oportunidade de aprender “que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar” (Albert Camus, A peste, 1947).

A subjetividade na atribuição de significados ao que existe fora de nós ou àquilo que acontece aos “outros” ganha contornos dramáticos nas reações à pandemia de covid-19. A crise sanitária ressalta como um evento universal pode ser representado e vivenciado de maneiras radicalmente diversas. Por todo o planeta manifestam-se exemplos extremos de generosidade e egoísmo, coragem e covardia, empatia e desamor. A guerra contra a doença, como todas as guerras, exibe a alma humana em sua nudez, tanto naquilo que tem de bondade quanto de crueldade.

Ante as dificuldades materiais colocadas pela pandemia, alguns empresários como Jorge Paulo Lemann (Ambev) e Luiza Trajano (Magazines Luiza), dentre outros, resolvem fazer doações e evitar demissões para ajudar no enfrentamento da crise. No extremo oposto, o egoísmo militante de “homens de negócio” como Junior Durski (Restaurante Madero) e Luciano Hang (Lojas Havan), contrários ao isolamento social para diminuir riscos de contaminação, relativizam a saúde e a vida em face da economia, acenando publicamente com ameaças de demissão aos trabalhadores aderentes à quarentena.

Manifestações de coragem não faltam. Mais de 1.700 médicos chineses foram infectados pelo coronavírus, a maioria na cidade de Wuhan. Alguns deles perderam a vida no combate à doença. No Brasil e no mundo, profissionais dos serviços de saúde dão mostras diárias de coragem e empatia trabalhando sob condições de alto risco. Na outra ponta, gente fútil e egoísta como o casal preso em São Paulo por violar a quarentena após chegar de Europa e documentar o fato em vídeo no qual marido e mulher zombam da pandemia conscientes de que poderiam estar propagando o coronavírus.

Muito relevantes são os sentidos que as autoridades públicas atribuem à pandemia, sejam autoridades civis, militares ou religiosas. São elas que ditam parâmetros de comportamento, simbólicos e oficiais, a serem seguidos pela população. Numa guerra ou numa crise sanitária, a vida de milhões depende da sensibilidade e capacidade de elaboração de sentidos das pessoas investidas de autoridade.

Enquanto autoridades de órgãos internacionais e dirigentes da maioria dos países afetados pela covid-19 decidia pôr em quarentena a população como forma de evitar a amplificação da pandemia, considerada pela primeira-ministra alemã Angela Merkel o “maior desafio desde a II Guerra Mundial”, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, exortava a população a sair às ruas e praticar atividades normais, encorajando as pessoas, contra todas as evidências científicas, a não se deixarem intimidar por “uma gripezinha, um resfriadozinho”, diminutivos pelos quais referiu-se mais de uma vez à covid-19.

Mesmo que as limitações ética e cognitiva o tenham impedido de captar o sentido da comparação feita pela chanceler alemã, Bolsonaro poderia valer-se da experiência de Giuseppe Sala, prefeito da cidade de Milão que em 27/02, quando a Itália registrava 14 mortos pela covid-19, compartilhou vídeo da campanha “Milão não para”. Exatamente depois de um mês, em 27/03, quando o país contabilizava quase 10.000 mil mortes, 4.474 delas só em Milão, “Beppe” obrigou-se a vir a público pedir desculpas por não ter reconhecido a gravidade da pandemia e por ter estimulado os milaneses a atentarem contra suas vidas.

Não fosse a insensibilidade política e de caráter, quem sabe pudesse ter causado alguma impressão ao espírito de Bolsonaro a tragédia do ministro das Finanças do Estado alemão de Hesse, Thomas Schaefer, que preocupado em não conseguir atender às grandes expectativas do povo diante da pandemia, “especialmente em termos de ajuda financeira”, suicidou-se em 28/03 (Suno Notícias, 29/03).

A Bolsonaro exibiu a nudez de sua alma em rede nacional, no dia 24/03, ocasião em que o desdém narcísico o levou ao equívoco de autoexcluir-se do risco de morte por covid-19 em razão de um suposto “histórico de atleta” (cfr. “Ao contrário do que disse Bolsonaro, passado de atleta não é garantia de proteção contra coronavírus”, Folha de São Paulo, 24/03). A alma do presidente volta a aparecer nua na fala à nação do dia 31/03, quando obrigado a admitir a inexorável e várias vezes renegada letalidade da pandemia, tenta vestir o desconfortável traje da empatia, mas não sem justificar o recuo da crueldade pelo argumento autorreferente de “eu mesmo já perdi entes queridos no passado, e sei o quanto é doloroso”.

Sem que ele próprio jamais saiba, ao fazer declarações como “alguns vão morrer, lamento, é a vida” (Brasil Urgente, 27/03) ou “infelizmente, teremos perdas no caminho” (pronunciamento do 31/03), Bolsonaro encarna a filosofia do velho paciente do Dr. Bernard Rieux diante do morticínio causado pela peste em Oran: assim como a personagem retratada por Camus, Bolsonaro acredita que em relação a “alguns” aos quais se refere irá “viver muito tempo e vê-los morrer todos”, porque ele “sabe viver”.

Espera-se que ao final, tal qual ao velho de A peste, a história se encarregue de apagar seu nome.

Antonio Rodrigues do Nascimento – Advogado e professor de direito. Autor de Futebol & relação de consumo (Manole, 2013)

Redação

1 Comentário

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  1. Pessoas nobres e pessoas vis sempre (ou desde o primeiro homo-sapiens, ou algo assim) existiram e conviveram juntas. E mais, personalidades vis e nobres se alternam em cada um de nós. Isso é totalmente irrelevante, porque não há como mudar.
    O que precisamos fazer, a meu ver, é impor a estruturação das instituições, da sociedade, dos estados-nação, e do mundo com base em outros valores. A fraternidade, o bem-comum, a responsabilidade de todos e cada um por todos e cada um, etc. seriam as novas referências.
    E aqueles que forem refratários a isso? Que sejam tratados conforme a sua conduta: párias ou criminosos.

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