A pandemia e suas narrativas, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O vírus não tem predileção política nem preferência religiosa. Ele não é uma entidade demoníaca e sim um organismo à procura de hospedeiros.

A pandemia e suas narrativas

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Desde que a pandemia do COVID-19 começou a se espalhar pelo Brasil nós estamos sendo confrontados por três narrativas.

A narrativa científica, que domina o cenário jornalístico e orienta as ações da esmagadora maioria médicos, foi apoiada pela CNBB. Ela confirma a necessidade de isolamento social, nega a existência de um medicamento 100% eficaz e reconhece a letalidade do vírus e sua imensa capacidade de se propagar através do ar, do contato e de superfícies contaminadas. A narrativa política elaborada por Jair Bolsonaro e seus seguidores nega a veracidade da narrativa científica, prescreve um medicamento duvidoso que tem causado óbitos e afirma a necessidade do fim da quarentena. A narrativa evangélica, que reafirma a narrativa política do governo, garante que o vírus será derrotado mediante cultos, preces e jejuns.

Até a presente data o Judiciário tem proferido decisões confirmando a narrativa científica e desautorizando ações legitimadas pelas duas outras narrativas. Apesar disso, alguns jornalistas já começam a notar que o povo está abandonando o isolamento social. Estamos, pois, às portas de uma catástrofe.

Quando o número de pacientes começar a aumentar rapidamente o colapso do SUS será imediato. Os ataques que nosso sistema público de saúde sofreu desde o golpe de 2016 deixaram-no totalmente vulnerável. Falta material hospitalar descartável. Não há respiradores para todos. Obrigados a trabalhar em condições inadequadas os profissionais de saúde também serão infectados e terão que ser afastados do trabalho (alguns deles já morreram). Em Manaus o SUS já não consegue mais dar conta de todos os pacientes. Bolsonaro não vai requisitar os hospitais e clínicas privadas para reforçar o sistema público. Se depender dele os pobres morrerão nas ruas como está ocorrendo no Equador.

À medida que forem sendo reabertos os templos evangélicos rapidamente se transformarão em multiplicadores da pandemia. Isso já ocorreu em outros países, inclusive nos EUA. A irracionalidade da fé cobrará um preço doloroso. Pastores e os familiares deles também pagarão com suas vidas. Eles parecem não se importar. A cegueira deles é total e politicamente induzida pelo presidente que eles acreditam ter sido eleito por Deus.

Um pastor teve a ousadia de dizer que encontrou uma referência dessa pandemia na Bíblia. A utilização do texto religioso para fins mágicos e curativos é um fenômeno interessante. Afinal, os judeus e os cristãos católicos sempre rejeitaram magia. Durante toda Idade Média ela foi perseguida. A magia também não foi bem-vista pelos primeiros protestantes.

Essa relação entre religião e magia que estamos vendo entre os evangélicos era muito presente nos primórdios da civilização. Ela muito forte entre os egípcios.

“In the numerous medico-magical texts which have come down to us the idea of possession is very evident, for diseases are usua treated as if personified and harangued and addressed by the magician. It is generally stated or implied that disease or suffering is due to the actual presence in the patients’s body of the demon itself, but almost as often it is implied that the suffering is due to some poison or other evil emanation that the demon has projected into the patient’s body.

In such cases the simplest method of procedure was the recitation of a spell in which the disease-demon was summarily comanded to quit, or the poison to flow forth, and leave the patient’s body. These spells, of varying length and elaboration are full of references to the gods and contain fragments of myths of highest interest. Some of the more elaborate spells embody threats and exorcisms of a very daring character. In these simplest cases, the magician operated by word of mouth only, but in most spells the spoken words are accompanied by a ritual – by gestures, or by the use of amulets and other objects.” (The Legacy of Egypt, edited by S.R.K. Glanville, Oxford At the Clarendon Press, Printed in Great Britain, 1957, p. 184/185)

TRADUÇÃO

“Nos numerosos textos médico-mágicos que chegaram até nós, a ideia de possessão é muito evidente, pois as doenças são usualmente tratadas como se fossem personificadas, arengadas e abordadas pelo mago. É geralmente afirmado ou implícito que a doença ou o sofrimento é devido à presença real do demônio no corpo do próprio paciente, mas quase sempre está implícito que o sofrimento é devido a algum veneno ou outra emanação maligna que o demônio projetou o corpo do paciente.

Nesses casos, o método mais simples de procedimento foi a recitação de um feitiço no qual o demônio da doença foi sumariamente ordenado a parar, ou o veneno a fluir adiante e deixar o corpo do paciente. Esses feitiços, de duração e elaboração variadas, estão cheios de referências aos deuses e contêm fragmentos de mitos de maior interesse. Alguns dos feitiços mais elaborados incorporam ameaças e exorcismos de caráter muito ousado. Nesses casos mais simples, o mágico operava apenas de boca em boca, mas na maioria dos feitiços as palavras faladas são acompanhadas por um ritual – por gestos ou pelo uso de amuletos e outros objetos.”

Guardadas as devidas proporções, podemos dizer que essas palavras se aplicam ao xamanismo praticado pelos índios brasileiros. Curiosamente os pastores evangélicos odeiam os índios muito embora utilizem práticas xamânicas sempre que vendem produtos ungidos (vassouras, suco de uva, água, álcool gel, etc). Na internet é possível encontrar milhares de vídeos em que rituais grotescos de cura e de exorcismo são praticados nas igrejas evangélicas.

Quem entrar num desses templos evangélicos corre o risco de fazer uma viagem no tempo. Se não voltar para o Egito antigo a vítima entrará na tapera de um Pajé do século XVI numa época em que até os índios já estão se tornando adeptos da ciência.

As três narrativas à disposição da população brasileira não podem coexistir no mesmo espaço. O resultado de casa uma delas será diferente. O vírus não tem predileção política nem preferência religiosa. Ele não é uma entidade demoníaca e sim um organismo à procura de hospedeiros. Quem não quiser correr o risco de hospedá-lo em seu corpo e transmiti-lo para um parente ou amigo deve prestar atenção na primeira narrativa e descartar as outras duas.

O problema, entretanto, não é apenas semântico. Ainda que se protejam os cidadãos que aderirem à narrativa científica estão sujeitos a entrar em contato e a contrair a doença dos bolsonaristas e evangélicos que facilitarão a propagação da pandemia em qualquer lugar que eles frequentem. Os fabricantes de caixões serão eternamente grato a eles.

Passado o vendaval ficará apenas uma lição histórica. No Brasil dos anos 2020, a eficácia do discurso científico e jornalístico endossado pelo Judiciário pode ser facilmente anulada por um bando de pastores evangélicos lunáticos liderados por um presidente insano. Entretanto, Jair Bolsonaro não teria chegado à presidência sem a ajuda providencial dos jornalistas e juízes que derrubaram Dilma Rousseff criando as condições políticas necessárias para o sucesso do bolsonarismo.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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