A parte que nos cabe nesse desastre, por Adriana Marino

do Psicanalistas pela Democracia

A parte que nos cabe nesse desastre

por Adriana Marino

Trabalho apresentado em 15 de março de 2018 ao Fórum Social Mundial em Salvador/BA durante a mesa ‘Riscos e Desastres: a psicologia e o direito à cidade e à cidadania’

Quero dedicar este momento de nossa fala a uma dimensão sobre aquilo que nos concerne mais “intimamente” quanto ao tema desta mesa. A saber, o desastre que nós mesmos somos capazes de produzir e de formas, por vezes, um tanto despercebidas, desatentas, mas nada sutis. Não faço referência, aqui, à desordem que causamos por ser a espécie de vírus que se propaga a destruir o ambiente; a produzir artificialmente jardins; a gentiliza que nem sempre é retribuída àqueles que, muitas vezes pela falta de opção, nos servem; quando, pelo canto da boca escorre-nos um veneno, os olhares desviam e os ouvidos não escutam; ou nos momentos em que esquecemos abraços pela pressa.

Faço referência ao que Freud (1901-1905/1996) nos legou, quando pôde “sacar” que estamos sempre implicados na desordem sobre a qual nos queixamos. Portanto, a questão que pretendo desenvolver, muito brevemente, é sobre a parte que nos cabe, ao nosso risco, nesses “desastres sociais” – em um sentido ampliado. Uma Clínica Aberta de Psicanálise não apenas encontra-se como espaço de escuta, tratamento e refúgio quando prédios desmoronam; quando a cidade produz enjeitados sociais; quando engendra e ao mesmo tempo deslegitima o sofrimento, mas também diz de um espaço onde se convidam sujeitos a um trabalho sobre aquilo lhes concerne, em sua subjetividade, no desabamento de tijolos, na reprodução (sintomática) daquilo que se pretende combater.

Eis o alerta deste risco: reproduzimos o que queremos combater, e não apenas como forma de reprodução da ideologia hegemônica na qual fomos criados e somos constantemente forçados a engolir, a fim de que se mantenham as bases da exploração capitalista (Althusser, 1970; 1999). Também reproduzimos o que se pretende combater não apenas por fetiche, pela falta da devida crítica (ŽiŽek, 2011), ou na denegação contida no cinismo, como nas palavras proferidas por alguém que diz: “Se um de nós dois morrer, eu me mudarei para Paris.” (Freud, 1915/1996, p. 308).

Uma ousadia a mais é necessária para termos a devida coragem rumo a uma esquerda que desejamos e para que não tenhamos o medo de dizer seu nome (Safatle, 2012). Uma esquerda que permita, de fato, dirimir as injustiças que concordamos não podem nem devem existir (Sen, 2010; 2011). Mais fácil quando não é preciso persuadir e, enfim, educar àqueles que não reconhecem o suicídio que produzimos ao perpetuar o subdesenvolvimento – como no mito de Oroboro, da cobra que se suicida ao alimentar-se da própria cauda. Se o poder público tem o poder de transmutar riscos em desastres, como já abordamos nesta mesa, produzindo desastres espetaculares para a televisão, e na forma nada singela do medo cotidiano, nós também temos este poder. O medo como arma política alimenta o medo de nos depararmos com nossa própria insignificância.

Produzimos desastres, de pequenos a grandes desastres, entre a gente. Somos essa coisa que chamamos de “gente” e por isso temos de nos haver com isso. Eis a radicalidade de uma verdadeira transformação e que se pretende social, comunitária, comunista – talvez, ainda, parcialmente utópica (pois, afinal, não temos como prever aonde isso pode nos levar: tamanha nossa insegurança quando não temos paredes a nos conformar, tamanho é o medo); uma transformação que diz de nós mesmos. “Creiam-me, no dia do triunfo dos mártires haverá o incêndio universal.” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 324).

Porque posso apontar-lhe em riste este dedo para então reconhecer o que da outra ponta deste mesmo indicador retorna contra mim. Revólver que faz o tiro certeiro no pé, mas como oportunidade para transformar o apontamento no seu exato avesso. Daí uma contribuição psicanalítica ao desastre que temos o poder de produzir e que reproduzimos, na medida em que a mestria (o anseio de dominação) nos espreita. Daí o valor dado ao conflito, por estarmos atentos aos riscos que incorremos no poder da sugestão, inclusive no singelo consenso. Mesmo sem lançar mão de nossas diferenças, da singularidade subjetiva e da legitimidade de demandas identitárias, a variação pode encontrar versos e rimas variados em um espaço para um refrão ocasionalmente partilhável. Nesse processo, pode-se reconhecer a alteridade, a abertura para um indecidível, contingencial e mesmo ao sem sentido que, ao invés de produzir segregação, pode levar-nos a construir pontes.

Algo como na brincadeira de crianças em que se decide o vencedor num par ou impar, esvaziando de vez a tensão. Endurecemos nossa alma quando reiteradamente tornamos necessário o contingente. Endurecemos os conflitos quando insistimos em polarizações, em disparates entre amigos versus inimigos (sempre prontos a defenderem os seus interesses). Corremos o risco, nessas horas, de perdermos da vista o alvo.

Uma ousadia a mais, para reconhecermos que “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro” também (Nietzsche, 2001/1886, aforismo 146). Exercício inadvertido do filantropo, mas sem saída àqueles que se encontram aqui, a princípio, dispostos a uma radical transformação social.

Um passo: e estamos a nos relacionar com o outro, colocando-o num lugar de impotência, silenciamento.

Dois passos: e estamos a colocar o outro num lugar de objeto (de nossos saberes, nossas escolhas e vontades), de domínio.

Três passos: e criamos um manicômio, uma prisão ou convento (Goffman, 2001). A reproduzir, portanto, todo o horror que essa catástrofe engendra. Como dizia Basaglia (1985), é preciso destruir o que o manicômio constrói, mas já como reprodução, na medida em que se pode produzir socialmente não só a loucura, mas também fazer com que das diferenças se produzam desigualdades. E para isso um processo ousado de desconstrução é urgente. Mas seguimos permissivos à construção de muros.

Temos de lembrar Marcus Vinicius – que nos abriga nesta tenda –, garantir sua memória e a memória de tantos outros sem nomes, às margens, reconhecendo suas lutas diárias, suas mortes.

Que lhes sejam garantida a oportunidade de encontrar uma praça para narrar suas experiências no desabamento de prédios e para que encontrem a escuta do desastre subjetivo ao reconhecer os tijolos que eles mesmos colocaram ali, mas que agora se voltam contra eles mesmos, como num another brick no espelho de sua própria reificação. Que Narciso se olhe no espelho e possa chocar-se. Que possamos nos chocar ante nossas formas acostumadas de fazer a crítica e, inclusive, dos modos costumeiros de nos queixar e demandar.

Para mais um passo, podermos então romper com o “círculo vicioso”, de modo que se “mude as coordenadas do conflito” (ŽiŽek, 2003, p. 150). Que, ao invés de decidirmos entre a cruz e a espada, inventemos outras coordenadas, mais criativas, inclusive para nossas formas acostumadas de sofrer. Para isso, um processo necessário que conduza a uma perda de si, quanto ao si mesmo narcísico (em parte incurável), de nosso modo acostumado e também das formas inconfortáveis de sofrer e fazer sofrer. Cuidemos de nós para que uma invenção possa acontecer. Trabalhemos pra que não incorramos numa volta de 360°, a cair no exato ponto de onde partimos. Ousemos um imprevisto, que não encontre hipóteses, que nos desassossegue, inverta-nos sem avesso, nos despossua, como no simples jogo de dois ou um.

Quem sabe aí, não será mais o Exército a subir, mas o morro a descer e sem tempo para ensaio geral (parafraseando Wilson das Neves). Para terminar, quero partilhar algo que aprendi com a maternidade: meu filho ensinou-me a pôr os pés no chão, sem metáfora.

Referências

Althusser, L. (1970). Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Editorial Presença.

Althusser, L. (1999). Sobre a reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes.

Basaglia, F. (1985). A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal.

Freud, S. (1996). Fragmento da análise de um caso de histeria. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905 [1901])

Freud, S. (1996). O inconsciente. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Trad. de J. Salomão, Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original escrito em 1915)

Goffman, I. (2001). Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva.

Lacan, J. (1997). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960)

Nietzsche, F. (2001). Além do bem e do mal. Ou prelúdio a uma filosofia do futuro. Curitiba, PR: Hemus. (Trabalho original publicado em 1886)

Safatle, V. (2012). A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas.

Sen, A. (2010). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras.

Sen, A. (2011). A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras.

ŽiŽek, S. (2003). Bem-vindo ao deserto do Real!:cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial.

ŽiŽek, S. (2011). Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo.

 
 

 

Redação

2 Comentários

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  1. Proselitos
    Aí de vos, doutores da lei que atravessam oceanos a procura de um proselito e, uma vez convertido, o torna 2x mais merecedor do inferno que vos mesmos!

  2. Será que dá para extirpar da

    Será que dá para extirpar da relação analista-analisado os traços de poder baseado em mera instituição, mero diploma? Será que toda relação humana precisa basear-se no poder de um sobre o outro (base de toda repressão, independente de ideologia)? Será que a única forma de relacionamento possível é “alguém de nós terá sempre ascendência sobre o outro; ou eu tenho poder sobre você ou você tem poder sobre mim mas sempre haverá que haver poder e ascendência”, ainda que de forma dinâmica? Porque tendemos a exercer poder sobre um outro que está desinteressado em poder sobr nós e interessado, sim, em poder sobre si mesmo? Sempre haverá busca e exercício de poder mesmo em relação psicanalítica? Se a resposta for “sim”, talvez a relação psicanalítica, mesmo que “sem querer querendo”, apenas reproduz e reforça o mecanismo que sustenta regimes de força, seja essa força exercida através de armas de fogo ou de armas morais, emocionais: propaganda comercial que nada mais faz exceto tripudiar sobre o desejo de pertencimento, desejo de pertencimento que é a base da humanidade.

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