A perspectiva pós-keynesiana e o ajuste contracionista brasileiro

Luís Fernando Veríssimo [foto], em 2013: “No Brasil, tanta coisa está errada há tanto tempo que qualquer figura, atual ou histórica, serve como símbolo da nossa desarrumação intolerável, na falta de um De Gaulle”. A crise política e o ajuste contracionista são ingredientes que parecem se encaixar bem nesse contexto citado por Veríssimo.

Por Rodrigo Medeiros

Não há grandes dúvidas de que vivemos um momento bem turbulento de nossa história coletiva. O contexto externo, por sua vez, mostra-se também difícil. Do ponto de vista do debate público, a discussão doméstica está centrada no imbróglio da crise política e a necessidade do ajuste macroeconômico. Creio que a abordagem pós-keynesiana é muito rica em reflexões.

Diferentemente da visão ortodoxa, John Maynard Keynes acreditava que o sistema capitalista tende a operar abaixo do pleno emprego, com arbitrária e desigual distribuição das riquezas e das rendas. Livre de compromissos institucionais civilizatórios, o capitalismo não garante equidade e bem-estar coletivo. Nesse sentido, um assunto merecedor de destaque é a relação entre poupança e investimento, pois esse entendimento integra as possíveis escolhas macroeconômicas e as relações de poder em uma sociedade.

A atividade bancária consiste na criação de liquidez, não na simples transferência de recursos de agentes superavitários para agentes deficitários. Keynes reafirmou a natureza endógena do processo de criação da moeda bancária e John K. Galbraith ironicamente chamava a expansão desse tipo de processo de “a magia da alavancagem”. O investimento não é realizado por falta de poupança previamente acumulada, mas sim por falta de financiamento. Keynes sugeriu o circuito financiamento-investimento-poupança-funding e, para tanto, é necessário um sistema financeiro funcional (clique aqui). 

Bancos ofertam crédito e criam moeda para consumo e/ou investimento. Imersa nesse processo, a preferência pela liquidez requer alguma atenção. Para Keynes, existe “na ideia dos proprietários de riqueza uma ordem de preferência bem definida, na qual eles exprimem em qualquer tempo o que pensam a respeito da liquidez, e não precisamos de mais nada para a nossa análise do comportamento do sistema econômico” (1936, capítulo 17). A partir desse ponto é possível começarmos a analisar o quadro brasileiro.

Em um país de históricas desigualdades sociais, até que ponto a preferência pela liquidez de uma minoria privilegiada se encaixa no quadro maior traçado por Keynes? Nosso processo de desenvolvimento foi marcado por concentração de benefícios e socialização de prejuízos, dos tempos do complexo cafeeiro à substituição de importações. O câmbio esteve no centro dos problemas vividos.

O câmbio é capaz de afetar a taxa de poupança em nosso país. O seu uso para combater a inflação desde 1994, a atração de poupança externa e o ciclo recente do boom das commodities acentuaram a sobrevalorização cambial do real e afetaram a taxa de poupança doméstica pelo canal da formação bruta de capital fixo (FBCF). Esse fato está bem visível agora entre nós, quando a queda do investimento é acompanhada pela redução da poupança.

Seguindo a perspectiva esboçada no livro “The Elgar Companion to Post Keynesian Economics”, editado por J. E. King (2003), é possível dizer que a política monetária afeta tanto a produção como os preços, sendo que o efeito sobre os preços corre através de variações na produção. Do ponto de vista das relações sociais, a elevação da taxa de juros impacta adversamente na redistribuição de poder com desequilíbrios em favor daqueles com maior propensão ao ato de poupar. Como muitas firmas costumam operar por fixação de preços, ajustando quantidades, o efeito de uma política monetária apertada afeta negativamente o produto e o emprego. Firmas tomadoras de preços, produtoras de commodities, por exemplo, podem até sofrer os mesmos efeitos, dependendo da conjuntura externa. Setores non-tradables, por sua vez, afetam de maneira cotidiana o nível de preços domésticos e podem ainda ser bem dependentes de insumos importados, cujos preços variam com o câmbio. Portanto, a clássica sugestão keynesiana de que é preferível desapontar o rentier do que um trabalhador mostra-se complicada de seguir no Brasil. A regressão da complexidade econômica da pauta exportadora brasileira revela o drama da redução do produto potencial do país e que a armadilha da renda média está cristalizando posições na nossa sociedade.

Não abordei a necessidade de avanços institucionais entre nós (regulação, desburocratização, tributação progressiva e transparente, avaliação da qualidade do gasto público, entre outros). Busquei apenas apontar como em uma sociedade muito desigual um ajuste macroeconômico contracionista é sentido de forma bem diferenciada entre os seus cidadãos e que ele não garante um futuro coletivo melhor.

Em um instigante artigo de junho de 2013, o escritor Luís Fernando Veríssimo ponderou: “No Brasil, tanta coisa está errada há tanto tempo que qualquer figura, atual ou histórica, serve como símbolo da nossa desarrumação intolerável, na falta de um De Gaulle”. Logo adiante ele citou uma reflexão de Marx: “se uma nação inteira pudesse sentir vergonha, seria como um leão preparando seu bote. Uma nação envergonhada dos seus políticos e das suas mazelas está inteira nas ruas. Resta saber para que lado será o bote desse leão”. A crise política e o ajuste contracionista são ingredientes que parecem se encaixar bem nesse contexto citado por Veríssimo.

Rodrigo Medeiros é professor do Ifes (Instituto Federal do Espírito Santo)

 

Rodrigo Medeiros

3 Comentários

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  1. Sem saída

    Diferentemente da visão ortodoxa, John Maynard Keynes acreditava que o sistema capitalista tende a operar abaixo do pleno emprego, com arbitrária e desigual distribuição das riquezas e das rendas. Livre de compromissos institucionais civilizatórios, o capitalismo não garante equidade e bem-estar coletivo. 

    A utopia do socialismo provou na prática que é possível somente o pleno sub-emprego e que uma “distribuição de riquezas e das rendas” contempla toda a nação, noves fora o montante que cabe ao Estado(o alto comissariado junto) encastelado no poder absoluto.O que não é pouco.

    A propósito, Roberto Campos teria dito que há uma ala esquerdista no andar de cima que admira, simpatiza e defende o socialismo, mas sem renunciar ao direito da renda diferenciada e ao consumismo burguês.

  2. A Socialização das Perdas é
    A Socialização das Perdas é presente no Brasil desde a República Velha, vergonha de uma elite monopolista que não aceita a participação do povo, tentam de todas as formas a manipulação e o engodo!

  3. Um novo caminho…

    http://economia.estadao.com.br/blogs/joao-villaverde/dilma-precisa-alterar-regras-fiscais/

    Como bem disse a professora Laura Carvalho:

    “Essas medidas de ajuste fiscal em geral assumem como pressuposto que um grande corte de gastos públicos vai melhorar os indicadores de dívida pública e, assim, a situação geral. A evidência grega mostra que, a depender do quanto você corta, o impacto que terá sobre a economia é de aprofundamento da recessão, o que piora ainda mais a arrecadação e, assim, dificulta ainda mais o esforço fiscal, levando a um quadro que se retro-alimenta”.

    “O próprio BC registra em seus relatórios e atas que a inflação está alta pela correção dos preços controlados e pelo efeito do câmbio. Com recessão, a demanda caiu. Então como que continua subindo juros para controlar aumento de preços que não estão reagindo a demanda?“

     

     

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