A rejeição à obra de Paulo Freire e a política abstinência sexual: duas faces da mesma moeda, por Érico Andrade

O que une a rejeição à obra de Paulo Freire a uma política de abstinência sexual é, portanto, a aposta na política da ignorância.

Foto: MST

Sugestão de Antonio Pereira

A rejeição à obra de Paulo Freire e a política abstinência sexual: duas faces da mesma moeda

por Érico Andrade

O discurso da ordem e da disciplina é um mantra para os bolsonaristas e as bolsonaristas. Ele está na base da rejeição da obra de Paulo Freire. É como se a ideia de uma educação baseada na construção do saber, onde todos são agentes de educação e participam ativamente do seu processo, implicasse a dissolução de qualquer regra e da diferença entre professoras (os) e estudantes. É como se a obra de Paulo Freire, raramente lida por bolsonaristas, fornecesse as bases para uma escola sem regras, nem respeito e que teria subsidiado a decadência do ensino brasileiro. A esquerda, encarnada na figura de Paulo Freire, seria, portanto, contra a disciplina sem a qual a educação não poderia prosperar; sentenciam bolsonaristas mesmo sem conhecerem a obra de um dos intelectuais brasileiros mais citados no mundo e que obviamente está longe de subscrever a estupidez da qual é vítima.

O mesmo discurso da ordem e disciplina é usado para bloquear uma discussão sobre a sexualidade. Afinal, discussões de gênero são invenções da esquerda para acabar com a “ordem” natural e divina conjugada, de modo anticientífico, com o criacionismo. Alegam que a melhor forma de lidar com problemas que envolvem as relações sexuais e que são questão de saúde pública, é, por um lado, simplesmente negar a sexualidade na forma de uma política de abstinência. Por outro, renegando às famílias, as quais não tiveram educação sexual, a educação das crianças e adolescentes.

Além de parcial (pautando-se numa política contraceptiva sem nenhuma base científica) e ideológico (desconsiderando a obra de um grande intelectual sem a mínima leitura da mesma), esse discurso tem a marca de certo Brasil que navega na ignorância para afirmar alguns valores cristões mais radicais. Isto é, onde avança um discurso sem qualquer compromisso com o contraditório (sempre tomado como a expressão do mal) perde-se em educação na medida em que se ganha em autoritarismo.

Ninguém é obrigado a concordar com os métodos de educação propostos por Paulo Freire, mas se desfazer da obra do autor simplesmente porque ele representa um pensamento de esquerda é cair na falácia clássica do ad hominem (criticar a pessoa e não o argumento) em nome de uma grande confusão entre disciplina e ordem; como se a disciplina só coubesse numa ordem autoritária, em que todas as normas são impostas de cima para baixo. Esse tipo de erro tem sua raiz numa falta de compromisso com a democracia porque credita a autoridade – uma única autoridade – à determinação das regras e não a uma comunidade que discute as regras que lhe concerne. Não por acaso esse tipo de postura encontra abrigo em defensores da ditadura: o sistema de máxima ordem e disciplina porque nele a democracia não tem espaço.

Ninguém é obrigado, tão pouco, a iniciar a sua vida sexual na adolescência, mas o estado não pode se furtar a educar as pessoas para algo que é uma prática comum especialmente entre adolescentes do ensino médio no Brasil. O mais grave da campanha de abstinência sexual não é a sua flagrante ineficácia e o desperdício de dinheiro público que lhe é decorrente, mas o que a alimenta no seu íntimo: a vontade de substituir a educação pela doutrinação religiosa. Nesse contexto, retirar do Estado o papel de promover a educação sexual é confiar às instituições não republicanas (privadas, para dizer de modo claro) um dos temas mais importantes da vida de uma comunidade (que envolve tanto questões de saúde pública quanto a taxa de natalidade do país), deixando no escuro pessoas cuja sexualidade é estimulada desde cedo (por programas como o de Silvio Santos; notável apoiador do governo Bolsonaro) e que fatalmente irão iniciar a sua vida sexual na adolescência.

O que une a rejeição à obra de Paulo Freire a uma política de abstinência sexual é, portanto, a aposta na política da ignorância. Numa política da mentira. São mentiras sobre a obra de Paulo Freire e sobre a vida sexual dos adolescentes que são evocadas para que uma ordem religiosa e a sua consequente disciplina ocupem os espaços públicos supostamente degradados pela esquerda. O projeto é de se desfazer da educação como veículo de sociabilização e produção de valores de respeito às diferenças para apostar num caráter técnico (fantasiosamente tomado como neutro e contra o qual a obra de Paulo Freire de fato se voltou) do ensino para que os valores cristões imperem como os únicos possíveis e aceitáveis.

Sabendo do avanço deste Brasil cristão e reacionário o governo Bolsonaro se utiliza da mentira para esvaziar o caráter público dos temas importantes da educação. Seu objetivo é claramente legar às famílias, às igrejas e aos templos o monopólio da produção dos valores porque sabe que o proselitismo professado nesses espaços longe de fortalecerem o caráter republicano das instituições públicas pretende lhe sequestrar.

Érico Andrade – Filósofo, psicanalista em formação, professor da Universidade Federal de Pernambuco – [email protected]

Redação

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