A Reunião de Cúpula do G20 e a era pós-Covid-19, por Luiz Eduardo Fonseca

Este artigo analisa as questões mais relevantes do encontro, visando refletir sobre possíveis desdobramentos da conjuntura global.

do CEE Fiocruz

A Reunião de Cúpula do G20 e a era pós-Covid-19

por Luiz Eduardo Fonseca

A Reunião de Cúpula do G20, realizada nos dias 21 e 22 de novembro de 2020, em Riyadh, na Arábia Saudita, marcou o encerramento dos trabalhos da presidência Saudita do G20 em 2020. O evento como lema Criando oportunidades para todos no século XXI. O ano de 2020 foi atípico devido à pandemia da Covid-19 e foi necessário organizar mais de cem encontros virtuais para cumprir a agenda de trabalhos.

Com foco na restauração do crescimento durante a crise sanitária, o primeiro dia de reunião girou em torno da apresentação dos países em relação à preparação e resposta à pandemia, e o segundo, em discussões sobre a salvaguarda do planeta e sobre a recuperação econômica, com medidas para construir resiliência. Este artigo analisa as questões mais relevantes do encontro, visando refletir sobre possíveis desdobramentos da conjuntura global.

O que é o G20

O G20 foi criado em 1999, por ministros de Finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia, para responder às crises financeiras do final do século XX. O G20 não constitui uma organização internacional propriamente dita, mas um fórum ou clube (Kickbush, 2017; McBride, 2019)[1] de nações, entendido como nova modalidade institucional para albergar nações emergentes com peso na economia global e, portanto, na governança global.

Na crise financeira global de 2008, o G20 realizou sua primeira Cúpula de Chefes de Estado para buscar uma solução, junto com o Banco Mundial e o FMI. Esse encontro foi realizado no governo Bush, mas sob pressão da França e da Inglaterra, e foi denominado Cúpula sobre os Mercados Financeiros e a Economia Global.

Em 2010, na Cúpula de Seul, o G20 deu um passo decisivo para sair de uma visão centrada somente na economia e reforçou a importância da ação multisetorial para o desenvolvimento, combinando políticas sociais e políticas econômicas. Entretanto, como não é uma organização, a agenda das discussões do grupo é pautada pelo país que está na presidência pro-tempore do grupo.

O G20 e a Covid-19

Se, em 2008, na presidência australiana, o posicionamento do G20 frente ao surto de Ebola na África foi muito frágil, em 2020, na presidência da Arábia Saudita, frente à pandemia Covid-19, o grupo se mobilizou enfaticamente e realizou uma reunião de cúpula virtual extraordinária que, diante do severo impacto econômico da pandemia, assumiu a defesa da saúde de forma surpreendente, inclusive ampliando o acesso ao crédito e flexibilizando regras financeiras consideradas sacrossantas (ver aqui). Tal diferença de postura deve-se, possivelmente, à extensão da pandemia aos países centrais da economia global e ao desastre econômico causado pela amplitude da quarentena na maioria dos países do mundo, que levou à diminuição do consumo, da produção e da circulação de mercadorias.

O G20 se comprometeu em investir no controle da propagação do vírus, buscando minimizar o comprometimento econômico e social, reforçando o apoio ao retorno com crescimento forte, sustentável, equilibrado e inclusivo. Para isso, prometeu injetar 5 trilhões de dólares na economia global, por meio de um Plano de Ação elaborado por seus bancos centrais e ministérios da Economia.

Como o G20 não possui fundo próprio, ao apregoar a injeção desses 5 trilhões de dólares, está contando com as iniciativas que cada um dos seus membros tomará, uma vez que juntos representam quase 80% da economia global. Nesse sentido, podemos inclusive compreender como países como o Brasil, que vinha adotando medidas neoliberais na sua economia, se rendeu às iniciativas nacionais de transferência de renda aos mais necessitados (Auxílio Emergencial) e à ampliação de crédito às pequenas e médias empresas, todas essas recomendações da Cúpula do G20.

O grupo mobilizou recursos para atender às necessidades de financiamento em saúde global no apoio à luta contra a pandemia, incentivando esforços conjuntos, incluindo novas contribuições voluntárias para iniciativas relevantes, organizações e plataformas de financiamento. Enfatizou a necessidade de uma resposta global e a importância de levar adiante ação coletiva para acelerar pesquisa, desenvolvimento, fabricação e distribuição de diagnósticos, terapêuticas e vacinas, inclusive por meio da iniciativa da OMS Access to Covid-19 Tools Accelerator (ACT-A) e sua instalação Covax, bem como o licenciamento voluntário de propriedade intelectual, com o objetivo de apoiar o acesso equitativo para todos, fundamental para superar a pandemia e apoiar a recuperação econômica global. Apoiou outras ações para atender às necessidades de financiamento dos países, pedindo aos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (MDBs) considerar formas mais ágeis de fortalecer o apoio financeiro ao acesso dos países às ferramentas Covid-19 e reconheceu o papel da ampla imunização contra a doença como bem público global para a saúde na prevenção, contenção e interrupção da transmissão.

O G20 na era pós-Covid-19: a Cúpula de Riyadh

Na Declaração Final da Reunião de Cúpula do G20, em Riyadh, os líderes das economias mais fortes do planeta declararam estar “unidos na convicção de que a ação global coordenada, solidária e multilateral é mais necessária hoje do que nunca para superar os desafios atuais e perceber oportunidades do século 21 para todos, capacitando as pessoas, salvaguardando o planeta, e moldando novas fronteiras”. Declararam, ainda, estar “comprometidos em liderar o mundo na formação de uma era pós-Covid-19 forte, sustentável, equilibrada e inclusiva”.

A Declaração tem quatro partes que traduzem as questões prioritárias para o grupo: a questão multilateral, a questão econômica, as iniquidades e o meio ambiente. Embora o aspecto econômico não seja abordado como primeiro tema do texto, ele perpassa como linha mestra todas as quatro áreas apresentadas. Essa linha mestra que dá o tom do documento também se faz representar nas instituições multilaterais convidadas a participar da Reunião, com voz: a OMS (em tempos de pandemia), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a OIT, a OMC e a União Europeia.

Segundo a Declaração, “a pandemia da Covid-19 e seu impacto sem precedentes em termos de vidas perdidas, meios de subsistência e economias afetadas, é um choque incomparável que revelou vulnerabilidades em nossa preparação e resposta e ressaltou nossos desafios comuns”. O documento ressalta que foram mobilizados recursos para atender às necessidades imediatas de financiamento na saúde global para apoiar a pesquisa, desenvolvimento, fabricação e distribuição de equipamentos de segurança e diagnósticos, terapêuticas e vacinas e se compromete a garantir esses insumos de forma acessível e equitativa para todos as pessoas, tendo colaborado e apoiado todos os esforços colaborativos, especialmente a iniciativa Access to Covid-19 Tools Accelerator (ACT-A) e a iniciativa Covax[2], assim como o licenciamento voluntário de propriedade intelectual. Reconhece a importância dos sistemas nacionais de saúde para alcançar a cobertura universal, destacando a importância da atenção primária.

Na Declaração, o G20 também se compromete a implementar a Iniciativa de Suspensão de Serviços de Dívida (DSSI)[3], incluindo sua extensão até junho de 2021, permitindo que os países elegíveis ao DSSI suspendam pagamentos oficiais de serviços bilaterais da dívida.

O documento ressalta que foram mobilizados recursos para atender às necessidades imediatas de financiamento na saúde global para apoiar a pesquisa, desenvolvimento, fabricação e distribuição de equipamentos de segurança e diagnósticos, terapêuticas e vacinas e se compromete a garantir esses insumos de forma acessível e equitativa para todos as pessoas (…) Reconhece a importância dos sistemas nacionais de saúde para alcançar a cobertura universal, destacando a importância da atenção primária

No sentido de construir uma recuperação resiliente e duradoura, o G20 se compromete a investir em áreas-chave como saúde, comércio e investimentos, transporte, infraestrutura, arquitetura financeira internacional, economia digital, tributação internacional e ações anticorrupção. No que respeita à saúde, o documento preconiza apoio à implementação do Regulamento Sanitário Internacional, com total apoio à coordenação setorial global pela OMS. Em todas as outras áreas, destaca-se o posicionamento do G20 no reconhecimento e suporte às instituições multilaterais, como a OMC, OIT, BM/FMI, o Conselho de Estabilidade Financeira (FSB) e a Força-Tarefa de Ação Financeira (FATF).

A Declaração reconhece a importância de inovações tecnológicas responsáveis que podem trazer benefícios significativos para o sistema financeiro e a economia mais ampla, demonstrada pela resposta à pandemia facilitada pela conectividade e tecnologias digitais que, paralelamente, facilitaram a continuação de diversas atividades econômicas. Essas tecnologias podem auxiliar nos temas de evasão fiscal internacional e na luta anticorrupção, inclusive com a poio a instâncias como a iniciativa Combate à Lavagem de Dinheiro (AML) e Financiamento Contraterrorismo (CFT).

O impacto social e econômico da pandemia faz ainda mais urgente acelerar os esforços para acabar com a pobreza e combater as desigualdades inter e entre países e trabalhar para garantir que ninguém seja deixado para trás. Nesse sentido, o G20 apoia a implementação da Agenda 2030 e seus ODSs, relevando o investimento para a educação, o empoderamento das mulheres, o acesso ao emprego e outras oportunidades de aperfeiçoamento, assim como para a proteção dos refugiados e deslocados. A Declaração também reitera apoio contínuo ao turismo e à Iniciativa G20 de Apoio à Industrialização na África e a países de baixo desenvolvimento (LDCs), a iniciativa Parceria G20-África, ao Pacto com África e outras iniciativas relevantes.

Em relação ao meio ambiente, o G20 se compromete com o combate à mudança climática nas seguintes frentes: ampliação do uso da energia eólica e solar; diminuição das emissões de carbono; diminuição do uso e do descarte de embalagens plásticas que poluem solos e mares; preservação do meio ambiente terrestre e marinho, o que inclui a luta contra o desmatamento e a poluição dos mares e reservatórios subterrâneos de água; defesa de uma agricultura mais responsável e sustentável. A Declaração também subscreve o apoio à Convenção de Paris e à Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC).

O impacto social e econômico da pandemia faz ainda mais urgente acelerar os esforços para acabar com a pobreza e combater as desigualdades inter e entre países e trabalhar para garantir que ninguém seja deixado para trás. Nesse sentido, o G20 apoia a implementação da Agenda 2030 e seus ODSs, relevando o investimento para a educação, o empoderamento das mulheres, o acesso ao emprego e outras oportunidades de aperfeiçoamento, assim como para a proteção dos refugiados e deslocados

O G20 e o futuro do multilateralismo: comentários

Em plena pandemia, a saúde tem sido usada como palco para os antagonismos no cenário político global e questionamentos nas bases do multilateralismo. No dia 14 de abril de 2020, os EUA suspenderam o pagamento de sua contribuição à OMS até que se apurassem os erros da organização na condução da resposta à pandemia da Covid-19, principalmente em relação à China. A saída dos EUA da OMS foi oficializada em 4 de julho. Essa postura americana, apoiada por alguns países, acabou se expressando também na reunião de ministros da Saúde do G20. Em 19 de abril de 2020, eles emitiram breve declaração de uma página chamada Os ministros da Saúde do G20 coordenam os esforços para combater a Covid-19, que simplesmente enfatizou que “a saúde e o bem-estar das pessoas estão no centro de todas as decisões tomadas para proteger vidas, combater doenças, fortalecer a segurança global em saúde e aliviar os impactos socioeconômicos resultantes da Covid-19” e reconheceu que a pandemia tem mostrado fraquezas sistêmicas nos sistemas de saúde.

O G20 acaba incorporando as mesmas tensões que persistem nas organizações multilaterais do sistema ONU. Mesmo na Declaração de Cúpula de Riyadh, foi mencionado, muito provavelmente por pressão americana e seus aliados, que o G20 deveria “avaliar lacunas na preparação de pandemias realizadas por organizações internacionais [esperando] ansiosos o trabalho do Painel Independente para Pandemia Preparação e Resposta e o Comitê de Revisão do RSI na avaliação do global resposta à saúde e à pandemia, como descrito na Assembleia Mundial da Saúde (WHA) Resolução sobre Covid-19”, […] esperando aprofundar essa discussão durante a próxima presidência, agora italiana.

No dia 21 de novembro, primeiro dia da Reunião de Cúpula do G20, com pronunciamento de todos os chefes de Estado e representantes de organizações multilaterais, as intervenções relevaram a importância do multilateralismo representado pelo sistema das Nações Unidas, com duas ressalvas a pontuar: a do presidente Trump, dos Estados Unidos da América, e do presidente Bolsonaro, do Brasil. Ambos gastaram metade do seu tempo com manifestações de âmbito exclusivamente nacional, Trump dizendo falar em nome da defesa dos trabalhadores americanos e os dois defendendo a economia e relevando tanto a independência em relação às prerrogativas multilaterais quanto o livre mercado, tendo, inclusive, o presidente Bolsonaro defendido a não obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 em nome da “liberdade individual”.

Os líderes do G-20 expressaram temor de que a pandemia amplie ainda mais a divisão entre ricos e pobres. Para lidar com isso, a União Europeia pediu contribuições que totalizam US$ 4,5 bilhões para o Access to Covid-19 Tools Accelerator, um projeto global para acelerar o desenvolvimento e distribuição de vacinas, testes e tratamento, no âmbito da Organização Mundial da Saúde. A chanceler alemã, Ângela Merkel, prometeu cerca de US$ 593 milhões. O presidente russo, Vladimir Putin, ofereceu a vacina Sputnik V da Rússia, e a China também se ofereceu para cooperar nas vacinas (ver aqui).

Exceto o presidente Trump, que sustentou a possibilidade de contestação do resultado das eleições e saldou a continuidade de sua presença no G20 para os próximos quatro anos, nenhum outro chefe de Estado do G20 sequer expressou qualquer comentário sobre a vitória de Biden nas últimas eleições americanas. A Declaração do grupo enfatizou o que chamou de “importante mandato do sistema das agências das Nações Unidas, principalmente a OMS”. Entretanto, embora tenha prometido enfrentar a questão da dívida das nações em desenvolvimento, a Declaração do G20 não forneceu quaisquer medidas concretas nesse sentido, a não ser incentivar o pedido de perdão da dívida por parte de credores. A Iniciativa de Suspensão de Serviços de Dívida (DSSI), inicialmente proposta em abril e prorrogada em outubro, foi novamente prorrogada até julho de 2021, de acordo com a declaração final do G-20.

O FMI alertou, num documento encaminhado ao G20 que, embora a atividade econômica global tenha mostrado recuperação desde junho, há sinais de que pode estar perdendo força, e a crise provavelmente deixará cicatrizes profundas e desiguais. O PIB global deverá contrair 4,4% em 2020 e realizar uma recuperação desigual e parcial. Além disso, o subemprego persistente e o fechamento de escolas podem prejudicar o capital humano; e o excesso de falências pode corroer o know-how e a produtividade. O aumento da dívida aumentará os desafios no futuro. Disse que a crise econômica só acabará quando acabar a crise da saúde.

Embora tenha prometido enfrentar a questão da dívida das nações em desenvolvimento, a Declaração do G20 não forneceu quaisquer medidas concretas nesse sentido, a não ser incentivar o pedido de perdão da dívida por parte de credores. A Iniciativa de Suspensão de Serviços de Dívida (DSSI), inicialmente proposta em abril e prorrogada em outubro, foi novamente prorrogada até julho de 2021, de acordo com a declaração final do G-20

O fim mais rápido da crise global está na colaboração multilateral sobre o desenvolvimento, produção e distribuição de terapias e vacinas, o que reduziria os riscos e custos de oferta para todos. Até que vacinas eficazes estejam amplamente disponíveis, o distanciamento social contínuo, o rastreamento de contatos e o uso de máscaras são essenciais para controlar a propagação do vírus e permitirão que a normalização econômica ocorra mais cedo. Ações multilaterais são necessárias para acabar com a crise para todos.

Numa leitura ligeira dos documentos e declarações tanto do G20 quanto de outras instâncias como a OECD, o G7 e o Brics é possível verificar a estreita relação que se dá entre saúde e economia. Entretanto, numa leitura mais refinada e analítica, percebe-se que a importância da economia e dos mercados se sobrepõe em termos de recursos e iniciativas no marco estrutural dos Estados às medidas preconizadas e aos recursos destinados à saúde. Ora, desde muito sabe-se que a saúde tem sua determinação tanto no social, quanto no econômico, no cultural e no ambiental, ou seja, é multidimensionada e determinada, requerendo ações multisetoriais. Aliás, não só a saúde, mas todo o setor das políticas sociais e da proteção social dos cidadãos deste planeta.

A defesa do multilateralismo e um pronunciamento oficial em defesa da equidade e do meio ambiente já é um enorme passo para um arranjo como o G20. A aplicabilidade desses compromissos é que ainda requerem do grupo instâncias de supervisão e monitoramento para que o econômico e a defesa da saúde do mercado financeiro não se sobreponham {as políticas sociais, ao bem-estar e à saúde das pessoas.

Luiz Eduardo Fonseca – Pesquisador do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz (Cris/Fiocruz).

[1] Kickbusch I. Health diplomacy at the G20—success or failure? – The BMJ [internet]. BMJ Opin. 2017; McBride B et al. Soft power and global health: the sustainable development goals (SDGs) era health agendas of the G7, G20 and BRICS. BMC Public Health volume 19, Article number: 815 (2019)

[2] O ACT-A é uma iniciativa lançada pela OMS e parceiros para acelerar e coordenar esforços para o desenvolvimento de equipamentos, medicamentos e vacinas no combate à Covid19; a Covax é o braço da ACT-A exclusivamente para o desenvolvimento de vacinas em parceria com a Aliança Gavi.

[3]  O DSSI, Debt Service Suspension Initiative, foi criado para relaxar o peso da dívida das nações em desenvolvimento, permitindo-lhes concentrar todos os recursos no combate à pandemia.

Redação

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