A Revolta do Ferrados, por Sergio Saraiva

Por Sergio Saraiva 

A Revolta do Ferrados 

Como a recessão do Golpe e a incompetência e insensibilidade social do governo Temer transformaram os precarizados dos governos FHC em um exército de ferrados prontos a explodir em revolta. 

Não é apenas por 20 centavos 

A paralisação dos caminhoneiros se enquadra nos episódios de agitações populares que desde junho de 2013 sacodem o Brasil. Irrompem aparentemente espontaneamente, sem uma liderança definida e alcançam proporções que não guardam relação com os motivos iniciais. 

A paralisação dos caminhoneiros – como as Manifestações de Junho de 2013 – teve amplo apoio popular. O que claramente demonstra que há uma insatisfação latente na população sempre pronta a eclodir como revolta. 

Os ferrados

Mas a agitação em torno da paralisação dos caminhoneiros está centrada em uma classe social distinta da que animou o que no pós-Junho de 2013 foi chamada de a “A revolta cashmere”.

Então, era a classe média e classe média alta revoltada com o sentimento de perda de status social, em um país de pleno emprego.  Agora, é classe média baixa que se revolta – “a revolta dos ferrados”.

Simbólico disso é que, independente de outros interesses por trás da paralisação, eram os rostos de trabalhadores autônomos sofridos o que retratava o movimento dos caminhoneiros. E eram os rostos de outros iguais em sofrimento que mostrava o apoio popular que o movimento possuía. A Folha chegou a quantificá-lo.

A classe média tradicional foi para as filas de dos postos de gasolina. E sintomaticamente, os arautos da Revolta Cashmere – que agora chamavam pela volta à normalidade – foram hostilizados. O povo desta vez era outro. Eram os ferrados.

Somos todos caminhoneiros

A paralisação dos caminhoneiros acabou por trazer a público um estrato recentemente formado da nossa pirâmide socioeconômica. Um estrato híbrido e contraditório em si. As pessoas que pertencem a ele têm rendimento de assalariado, mas são forçados a pensar como patrões – são os ferrados.

Quando surgiram? Surgiram da precarização das relações trabalhistas empreendida nos governos FHC – a “pejotização” e a “terceirização”. Suas contradições não foram resolvidas, mas aparentemente ficaram amortecidas nos governos do PT, pelo menos até o 2º governo Dilma, e explodiram com a recessão e a volta do desemprego trazidos com o Golpe de 2016 e com o governo Temer privilegiando os poderosos na divisão da riqueza nacional com base no conceito de “pouca farinha, meu pirão primeiro”.

Basta uma visita ao Portal do Sebrae para identificar quem são. São os Microempreendedores Individuais (MEI) e Microempresários (ME). Eufemismos para quem trabalha por conta própria e tem rendimentos mensais de até R$ 6.750,00 (MEI) e até R$ 30.000,00 (ME). Valores mais próximos de salários e não de “faturamento bruto”.

Esses os formalizados. Em 2017, os empresários individuais respondiam por 27% do PIB brasileiro e passavam de 12,4 milhões em 2017. Sete milhões de MEI – número que praticamente dobrou, a partir de 2013, mostrando o quanto a crise política e a crise econômica se retroalimentam. Quantos estão na informalidade?

MEI

A Lei Complementar Nº 128 que criou a figura do MEI – microempreendedor individual – é de 2008.

São, além do caminhoneiro autônomo, o vendedor que se tornou “representante comercial”, o engenheiro que se tornou “consultor” ou “freelancer” ou o gerente de vendas que perdeu o emprego e tornou-se motorista de van escolar ou vende comida em “food truck”. A senhora que com o marido sem emprego começou a fazer bombons que os filhos vendem. O jovem que chegou a maioridade e, não encontrando trabalho formalizado, tornou-se motoboy.

saldo do postos de trabalho

Precários, conservadores, místicos, contraditórios e radicais

Precariedade. Embora tenham rendimentos de assalariados e embora trabalhem em atividades que antes eram executadas por trabalhadores com carteira de trabalho, não têm proteção trabalhista. Seus direitos e proteção sociais são mínimos.

Conservadorismo. No aspecto político-econômico, necessariamente têm de ser conservadores. Não estranha mesmo que sejam antipetistas. Raciocinam como patrões. Volume de vendas, lucratividade e custos passaram a fazer parte de suas preocupações.

Alterações da rotina social podem ser muito prejudiciais para seus interesses. Uma greve de professores ou dos Correios ou uma manifestação que feche alguma avenida podem afetar seus rendimentos por impedir que façam a entrega de encomendas contratadas, por exemplo. Odeiam os “comunistas agitadores”.

Um assalto pode simplesmente acabar com seus negócios. Por isso o clamor pela ordem pública e pela tese do “bandido bom é bandido morto”.

Místicos. Vivendo em tal grau de incertezas, o apoio espiritual é fundamental. E se a Igreja Católica é dicotômica – fez uma opção preferencial ou pelos pobres ou pela classe média tradicional – a Teologia da Prosperidade das Igrejas Neopentecostais parece ter-lhes sido feita sob medida.

São, por místicos, o alvo preferido dos “salvadores da Pátria e suas soluções rápidas fáceis e infalíveis”. Quase sempre baseadas no discurso da força.

Contraditórios. Não é difícil perceber com quanto de contradições esse povo tem de lidar para tomar decisões crucias para suas vidas.

Radicais. Essa é a nova faceta – a faceta adormecida – que a política de preços da Petrobras descarregando toda a perversidade do câmbio e do preço internacional do petróleo sobre os consumidores de combustíveis – diesel, gasolina e gás – e não apenas sobre os caminhoneiros – fez aparecer. Os ferrados atingiram seu limite. No Brasil, 60% dos MEI – microempreendedores individuais – estão inadimplentes.

inadimplencia

A revolta dos ferrados

E assim, a recessão do Golpe e a incompetência e insensibilidade social do governo Temer acabaram por transformar os precarizados dos governos FHC em um exército de ferrados prontos a explodir em revolta.

 

PS: Oficina de Concertos Gerais e Poesia – olhando para o mundo e não gostando do que vê.

Redação

5 Comentários

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  1. 99% contra 1%, o que a matemática não explica
    Excelente a análise, ainda que falte – se há, desconheço – uma pesquisa oficial específica sobre os fatores apontados e a incidência nessa nova classe social, o chamado “precariado”, a ponto de ser uma característica grupal com relevância sócio-política – não sei se é verdade mas foi divulgado como notícia que na Marcha para Jesus o candidato de ultradireita recebeu críticas e teve reação de rejeição por boa parte dos participantes, o que mostra que os fatores citados, ainda que representem parte dessa nova classe, se combinam de modo a torná-la mais heterogênea do que se pensa; no aspecto “místico”, por exemplo, muitos dessa nova classe, pelo perfil de escolaridade, renda e origem social diversificado, podem pertencer a grupos sociais mais afeitos ao agnosticismo, ateísmo e outras formas de religiosidade que não a neopentecostal, como protestantes tradicionais.
    Acho também que o caso dos caminhoneiros apresenta um outro fator que não se conhece muito bem o funcionamento: multiplicidade de perfil tanto sócio-econômico quanto político, que leva a formação de diversos grupos de poder com agendas próprias disputando o protagonismo e a liderança desse numeroso exército híbrido de trabalhadores autônomos, cuja maior força de mobilização interna e apoio popular foram demonstrados quando falaram dos problemas urgentes que afetavam toda a categoria e por essa característica de “comunalidade”, tiveram a simpatia dos outros “ferrados”. Quando passaram a utilizar a paralisação para pedir intervenção militar, passou-se a desconfiar de captura da adesão para pautas que não têm relação direta com a reivindicação inicial, sequer guarda relação de lógica política – outras greves ligadas à esquerda costumam demonstrar a relação causal entre reivindicação e sua pauta política, o que não foi o caso dos caminhoneiros, inclusive com o presidente do sindicato soltando nota para perguntar aos seus liderados se eles tinham ideia do que intervenção milirar significava, uma prova de como a relação entre este sindicato e seus representados é “líquida”, distante e inorgânica.

    Sobre uma certa lógica entre o interesse profissional desse grupo de precarizados e ser antipetista, tem mais a ver, eu acho, com a caráter de trabalho individual ou setorial, que tende à perda do sentido de coletividade, ao egoísmo, à visão de que a competição e o “cada um por si”, e não a cooperação e o pertencimento grupal solidário, são seus instrumentos de trabalho, à desconfiança do Estado e suas instituições, vistos sempre como exploradores pela carga de impostos sem contrapartidas em serviços – por muitos dessa classe não utilizarem sistemas públicos de transporte, saúde e educação, reflexo de sua posição intermediária entre o operariado e a ideologia de pretensão burguesa; afinal, nos governos do PT houve aumento de renda e consumo, e consequentemente, de mercado, provavelmente com melhora das condições dessa classe “empresarial”, inclusive com políticas voltadas para sua estabilidade, fomento e facilitação burocrática para regularização, empréstimos e redução de exigências e de carga tributária. Como a folclórica história do filho do meio, essa nova classe, espremida entre o trabalho assalariado em extinção e a ascensão social impossível, tende a sofrer séria crise de identidade e de amadurecimento, desgarrada de pertencimento grupal e sujeita a todo tipo de manipulação ideológica.
    Enquanto ninguém incomodar o 1% que está confortavelmente assistindo os de baixo, os 99%, se digladiarem por migalhas, é como puxar o cobertor curto ora pra baixo, ora pro meio, ao invés de descobrir as razões de sua insuficiência: riqueza excessiva não é lei da natureza, é construção social a ser desfeita em prol do bem estar da maioria.
    “Se cada um retivesse somente aquilo de que precisasse, ninguém sentiria falta e todos viveriam contentes.” (Gandhi).

    P.S. A classe do precariado não é composta apenas por caminhoneiros; o sucesso da paralisação foi a capilaridade de sua atividade, de efeito, visibilidade e imposição de negociação, quase imediatos. Onde estão os outros “ferrados”? Não é novidade a insatisfação, uma greve geral impensável ocorreu há um ano mas não se refletiu em movimento organizado, de longo prazo, para rediscutir o país. E acho que esse é o problema, como se viu também na paralisação dos caminhoneiros: o que fazer com a insatisfação que resulte em movimento coerente, politicamente organizado e compartilhado, e não alimento para mais decepção e cooptação pelos adversários?

    Sampa/SP, 03/06/2018 – 17:54 (alterado às 18:02 e 18:17).

    1. Para Gandhi, as necessidades eram subjetivas

      “Se cada um retivesse somente aquilo de que precisasse, ninguém sentiria falta e todos viveriam contentes.” (Gandhi).

       

      Enquanto um mendigo faminto se contentaria com um prato de arroz e feijão, um barão só se contentaria com um prato fundo chapado de caviar. Enquanto um pobre se satisfaz com uma bicicleta, um egoista acha que precisa de 3 ferraris e 2 iates, além de um jatinho.

      Tendo em vista que as necessidades são subjetivas, em vez de cada um ter apenas aquilo que precisa, seria melhor cada um ter aquilo que produz.

      Gandhi não se colocava o problema da produção, mas apenas o problema da distribuição.

  2. São os q acreditam piamente
    São os q acreditam piamente na meritrocacia. Mesmo que a deles ainda tenham chegado. Se chegou é tão precária mas tão precária as conwuistas que a simples mudança de ares faz cair por terra tudo q construíram por exclusivo meritos. Para nao perder o pouco conquistado, eles estão dispostos a matar e a norrer. Ferrados e desesperados eles farão a revolta das revoltas. Nao deixarao pedra sobre pedra. Que a classe média se prepare para a classe C em erupção. Com o golpe a classe média criou essa situação que não ter A como controlar
    .

  3. Um assalto pode acabar com o sonho/pesadelo dos Ferrados

    Há um trecho do artigo supra que diz:

    “Um assalto pode simplesmente acabar com seus negócios. Por isso o clamor pela ordem pública e pela tese do “bandido bom é bandido morto””.

    Há um Mc do qual não me recordo o nome que disse que o PT elevou grandemente o contigente da classe média e essa nova classe média clama pela polícia para proteger seu patrimônio recém acumulado.

    Enquanto os Ferrados não tomarem consciência de que a piora de suas condições de vida é consequencia do capitalismo e não dos governos de plantão, ou seja, enquanto eles não se derem conta de que o problema é econômica, e não político, eles vão afundar cada vez mais. Aliás, não basta apenas tomar consciência disso, é preciso, além de tomar consciência da tendência inexorável da sua proletarização, lutar para eliminar os privilégios da burguesia e derrubá-la.

    1. Policial Bom, é Policial Assassino

      “No governo Lula, a pessoa comprou um carro, uma moto, um celular caro, agora ela quer trancar tudo com um cadeado e colocar a polícia na porta para defender. Eu converso com as pessoas nas ruas. Tem quem diga que não leva o filho no CEU (Centro Educacional Unificado) porque é onde estão as ‘piores crianças’. É a mentalidade elitista do brasileiro.” – Mano Brown

       

      A policial que matou um suposto ladrão na porta de uma Escola vai se candidatar a uma vaga no Congresso Nacional e provavelmente será eleita.

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