Aldo Fornazieri
Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.
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A sociedade começa a reagir contra o autoritarismo, por Aldo Fornazieri

Sem líderes e organizações dirigentes, até mesmo grandes mobilizações e revoluções terminam em retrocessos.

A sociedade começa a reagir contra o autoritarismo

por Aldo Fornazieri

Aos poucos surgem sinais significativos de que grupos sociais começam a reagir contra o autoritarismo, contra a fúria destrutiva, aos desmandos de Bolsonaro e de outras figuras públicas identificadas com a extrema-direita. Essas reações também vão ocupando espaços públicos e se transformando em mobilizações e manifestações. De modo geral, essas reações da sociedade têm um caráter espontâneo, no sentido de que não são dirigidas e nem lideradas por partidos políticos.

Com efeito, os partidos políticos de esquerda estão desarticulados, desorientados e sem estratégias. Em 2013 perderam a direção dos movimentos de massa e, de lá para cá, permanecem numa defensiva política e estratégica e, mesmo num momento favorável como agora, não conseguem sair do defensivismo.

Os protestos de 2013 se iniciaram sob a liderança de um movimento autonomista – o Movimento Passe Livre. Os partidos foram barrados nas manifestações e logo a extrema-direita tomou a liderança das mesmas, processo que teve seu desfecho no golpe do impeachment e continuidade com os desmontes promovidos pelo governo Temer, pelos continuados desmandos da Lava Jato e pela eleição de Bonsonaro e sua caminhada de ataques continuados às instituições democráticas e aos direitos do povo. A extrema-direita liderou aquelas mobilizações com organizações políticas de novo tipo, a exemplo do MBL, o Vem Prá Rua, Muda Brasil e alguns grupos bolsonaristas.

Os partidos de esquerda não conseguiram articular movimentos de massa significativos nem contra o impeachment e às várias fases do golpe, nem contra as reformas trabalhista e da previdência, nem em favor de Lula Livre e nem contra as destruições e retrocessos promovidos por Bolsonaro. Não que não tenham ocorrido manifestações. Mas foram manifestações sem envergadura e sem a contundência suficientes para impor uma mudança na correlação de forças. Não foram suficientemente fortes para barrar retrocessos e conquistar vitórias. O período mais tíbio dos partidos de esquerda é esse vivido agora, sob o governo Bolsonaro. Isto porque o governo vem perdendo força e credibilidade, existindo uma opinião pública suscetível a voltar-se contra ele. Mesmo assim as oposições de esquerda não conseguem propor uma plataforma e definir formas de organização capazes de conferir direção política à disponibilidade de massas descontentes.

Os sinais de reação social vêm de várias frentes e de várias formas. Merecem destaque as lutas pela educação, os protestos e mobilizações em defesa da Amazônia e do meio ambiente, o panelaço contra Bolsonaro, os protestos contra o governador Witzel que vem sendo chamado de fascista e assassino em vários eventos, as manifestações na Bienal do Livro no Rio de Janeiro contra a censura, as diversas iniciativas de artistas, intelectuais e juristas em defesa de várias causas democráticas e do Lula Livre e assim por diante. A juventude vem ocupando um papel crescente nessas manifestações e mobilizações e este é um sinal muito positivo.

Essas mobilizações expressam indignação e contestação ao estado de coisas instaurado pelo golpe e pelo governo Bolsonaro. Na medida em que vão ganhando corpo e intensidade poderão superar este momento negativo e de pessimismo social para se transmutarem em entusiasmo e vigor pelas lutas. São manifestações e mobilizações espontâneas que expressam uma consciência latente acerca da necessidade de enfrentar politicamente o autoritarismo, em defesa da democracia, dos direitos, do emprego e do meio ambiente.

Mas as histórias passadas e recentes mostraram à exaustão que, se as lutas espontâneas revelam uma consciência nascente, uma energia, uma potência, possibilidades, disponibilidades e ocasiões propícias, tudo isso pode se esvair em nada ou ser empalmado até mesmo por grupos conservadores se não existir liderança e direção política consistentes, capazes de conferir sentido e rumo a essas lutas. Basta citar os exemplos dos movimentos Occupy Wall Street, os Indignados de Madri e até o MPL. As mobilizações pereceram sem conquistas significativas e nos processos supervenientes se instauraram governos de direita nos três casos.

É preciso ter clareza de que as novas formas de relações políticas definidas pelas redes sociais, pelas exigências de maior horizontalidade, de organizações mais abertas e democráticas, de comunicação ágil e de mensagens legítimas e convincentes e de ativismo participativos dos militantes, tudo isso não contradiz a necessidade de organização e direção políticas. Sem líderes e organizações dirigentes, até mesmo grandes mobilizações e revoluções terminam em retrocessos.

Assim, se o ressurgimento de mobilizações espontâneas representa um momento positivo, uma retomada da esperança, é preciso ter consciência de que se isto tudo não caminhar para força organizada com estratégias definidas, tudo pode se esvair em novas derrotas. Os três principais partidos de esquerda – PT, PCdoB e PSol – suscitam muitas dúvidas de que sejam capazes de sair do seu burocratismo e de sua apatia para conseguir imprimir uma efetiva direção política e programática a essa energia social que carrega a potência de explodir nas ruas.

Em muitos momentos históricos de mudanças, quando as velhas formas partidárias não se mostram capazes de se renovar e de abarcar as novas energias sociais, ocorreu que emergiram novas lideranças e novas formas de organização política e social que carregavam a energia, a potência e as virtudes da luta, do combate e da coragem. Pode ser que este seja o novo momento por que passam as lutas políticas e sociais do Brasil que carregam o sentido da mudança, da igualdade, da justiça e da liberdade. Esta possibilidade, evidentemente, demandaria mais tempo para amadurecer.

Dada a caducidade das velhas formas de liderança e de representação partidárias, as massas, na sua espontaneidade, principalmente a juventude, fariam  brotar e florescer novos líderes e novas organizações. O surgimento do PT combativo do passado foi por via desse processo de esgotamento das velhas representações e de surgimento do novo. Já o PCdoB e o PSol surgiram por processos diferentes: nasceram como partidos de quadros que, de certa forma, permanecem enquistados em si mesmos, sem conseguirem desabrochar como  partidos de massa de forma ampla.

De qualquer forma, os partidos e organizações de esquerda estão desafiados a dar respostas convincentes e consistentes aos desafios postos nesta difícil conjuntura, cheia de riscos de aprofundamento dos retrocessos, mas também portadora de ocasiões propícias para que se inicie um novo processo de lutas e de vitórias por direitos e por democracia. O futuro próximo dirá se os atuais líderes partidários corresponderão ao chamado momento carregado de nuvens sombrias, se serão capazes de superar este período de obscurantismo e de retrocessos, ou se os  seus nomes constarão apenas de forma protocolar nas páginas da história como pessoas que careceram de virtudes e de coragem para enfrentar os brutos que embruteceram estes tempos.

Os partidos de esquerda precisam decidir se querem ser a cauda ou a cabeça na luta contra o bolsonarismo e os seus retrocessos; precisam decidir se preferem permanecer no conforto dos gabinetes, dos cargos públicos e da burocracia ou se se despojam das vaidades e dos pequenos poderes para estar junto do povo e lidera-lo. Não basta dizer que fazem parte deste ou daquele movimento ou frente, que participam deste ou daquele ato. É preciso sair do formalismo e da participação protocolar e das reuniões que circulam em torno de si mesmas. É preciso sair das frentes vazias para colocar-se na frente do povo sofredor, do povo que quer lutar, que quer soluções para as suas carências e para seus dramas.

Aldo Fornaziri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

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Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

10 Comentários

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  1. Talvez haja uma dificuldade maior do que a organização das alternativas ao golpe: fazer chegar informação dessas alternativas à pessoa comum. Os recursos para comunicação social estão tomados pela iniciativa privada que, por sua vez, manterá o discurso “político nenhum presta” e continuará insinuando que Bolsonaro, Guedes, Dória, Witzel, Moro, Dallagnol não são políticos e sim justiceiros com a missão de limpar o Brasil da corrupção e do crime. Além disso manterá a ideia de que o certo é seguir e admirar os ricos e poderosos, estrangeiros em geral e “americanos” especialmente, de que precisamos da tutela de superiores.

    Por outro lado, o pessoal que quer alternativas ao golpe tem o recurso do personalíssimo boca-a-boca presencial. Por mais que os engendradores de campanhas doutrinárias queiram, há um limite agregar aparência de informalidade à apresentação de seus produtos; isso se dá porque a comunicação em massa precisa ter abrangência. As firmas privadas que provêm simulacros desse boca-a-boca – WhatApp, Facebook etc. – têm essa desvantagem: não são presenciais, são virtuais.

    Assim concordo em parte com o professor: mesmo correndo risco em tempos de aberta repressão, é preciso ir para as ruas em organizações, passeatas e manifestações. Só acrescentaria que também é preciso ir para as casas e para os bares, redescobrir o prazer da conversa individual, pessoal, do bate-papo. E se o golpe chama para si a raiva e o medo, as alternativas a este poderiam chamar para si o entendimento e a confiança. Só discordo quando diz que o pessoal que prefere a democracia está no “conforto dos gabinetes, dos cargos públicos e da burocracia”. Este lugar, de onde têm disparado petardos criados a partir das firmas de “big data”, é exclusivo dos golpistas. Assim como o antídoto para a manipulação golpista não é a manipulação democrática e sim a conscientização, o escudo contra esses petardos e simulacros é a pessoalidade presencial e capilarizada. O remédio para a alienação não é alienação só que para o outro lado; o remédio para a alienação é o esclarecimento.

  2. Carlos Bolsonaro disse que o papai dele deveria ser um ditador. Esse filho do vagabundo Jair Bolsonaro não deveria assustar ninguém. Se fosse leitor de Maquiavel, ele saberia que “… é o poder que cria o título e não este que cria o poder.” (Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio, III, 6). O pavão é criador de “memes” reproduzidos por robôs virtuais, não um fundador de dinastias tirânicas.

    1. Às vezes penso, Fábio, que essa declaração do filho do Bolsonaro é uma tentativa de nos induzir ou a desviarmos nossa atenção de alguma outra coisa que o golpe está fazendo ou a nos aterrorizarmos. Terrorismo e diversionismo são recursos que os engendradores desse golpe têm usado de monte.

      Aliás, “desse golpe”, não; dessa INVESTIDA do mesmo golpe que os EUA vem dando contra nós faz uns 100, 150 anos. Contra nós e contra muitos outros países… contra todos os países que aceitam atrelar e submeter suas economias ao dólar, seja sabotando nossas iniciativas de desenvolvimento através de tutelá-las, seja financiando, aliciando e corrompendo agentes locais.

      De toda forma, a imposição de mais uma ditadura de direita aberta nessa altura do campeonato não me parece viável. Tá mais fácil, a meu ver, os golpistas continuarem com a ditadura enrustida, disfarçada e pontual: censura aqui, repressão ali, sabotagem a bens públicos – educação, petróleo etc. – acolá, pressão e terrorismo sempre e em todo lugar. O terror e o medo sempre foram bons para concentração de dinheiro, para o consumismo…

      Como digo sempre, pode ser que a U.R.S.S. tenha sido ditadura. Não posso dizer com certeza porque não estava lá e soube do que aconteceu lá através de jornais capitalistas. Mas posso garantir que aqui vivi e estou revivendo ditadura capitalista. Então esse negócio de dizer que capitalismo é liberdade, que não é ditadura, na prática não tem mentira mais descarada, né não?

  3. Quanto tivermos a distância necessaria desse momento, acho que os artigos do professor Aldo Fornazieri serão de grande ajuda para se entender como a extrema-direita chegou ao poder e, em vista dos candidatos para proxima presidencial: Doria, Moro, Witzel ou o proprio Bolsonaro, e nele se estabeleceu. Espero que Haddad, Boulos, Ciro, qualquer um fora do espectro fascista, possa ganhar as proximas eleições. Mas não vai ser facil, não.

    1. pelo que estão fazendo, em termos de aparelhamento do instrumento de seleção de inimigos da família, qualquer um que tentar concorrer com estes fascistas será preso…

      deu certo com Lula e dará com qualquer outro

    2. Hoje há duas perspectivas na esquerda.

      a) Devemos tentar “domesticar” o Bolsonaro com uma “frente ampla” com Ciro Gomes, Kassab, FHC (agora até o Dória pulou dentro, daqui a pouco até o filho do Bolsonaro estará na frente ampla) e esperar até as eleições de 2022. Nessa perspectiva, há uma descontinuidade entre o impeachment, o governo Temer e o governo Bolsonaro, numa tentativa de restaurar a situação do fim do governo Temer.

      b) Bolsonaro é um fascista perigoso, e como tal deve ser derrubado imediatamente, antes que destrua as organizações da esquerda. A palavra de ordem, portanto, deve ser Fora Bolsonaro. Há uma continuidade entre o golpe de 2016, o governo Temer e o governo Bolsonaro, o que implica colocar em xeque TODO o regime político do golpe, não só o Bolsonarismo..

      Fica muito claro onde cada uma das políticas pode nos levar. A primeira política nos leva à aliança com os estupradores políticos da Dilma, artífices da prisão do Lula e do antipetismo e oportunistas cafajestes como Kassab, FHC e Dória. Nos conduzirá a um regime político repressivo, sem esquerda real, e com a conhecida “democracia sem povo” do PSDB/DEM/PMDB. NADA garante que a esquerda vença eleições em 2022 (inclusive, se prenderam o LULA, porque não prenderiam o Haddad, o Flávio Dino ou qualquer um?).

      A segunda via é uma via de batalha CONTRA o regime político do golpe de 2016, portanto, contra FHC, Dória, Kassab etc., o que inviabiliza essa tal “frente ampla”. A esquerda seria uma força política independente, abertamente levando adiante a política de derrubar o governo. É a via de quem cansou do “engodo democrático” e lida com a realidade: estamos em uma ditadura pós-golpe de estado, em pleno processo de destruição da esquerda e fechamento do regime político. Portanto, devemos lutar sem considerações pseudo democráticas (do tipo “Bolsonaro foi eleito”) em uma luta literalmente de vida e morte.

      1. Doria, FHC, Kassab, etc. apenas fazem pose ante os impropérios que Bolsonaro diz. E somente o que ele diz. Nada do que está sendo feito efetivamente por Bolsonaro, ou melhor, sob a presidência de Bolsonaro, desagrada a essa turma. Pelo contrário: a turma que usa Bolsonaro como escudo e a turma Doria, FHC e Kassab querem ambas a privatização do estado, a entrega da nossa economia às ordens dos EUA e o povo alienado de sua cidadania. Ambas essas turmas querem o fim dos sindicatos de trabalhadores, querem doutrinar o povo para a competitividade… É muito fácil para quem está por cima ficar chamando o mais vulnerável para a briga, ainda mais se ficar repetindo que eventual fracasso do vulnerável se dará por sua própria e individual incompetência, desprezando dados estruturais e de conjuntura.

        Quem não posa de “puribelo”, não se escandaliza com palavrão ou com surtos, loucuras e absurdos ditos por Bolsonaro e trupe, trazido a público pelas firma privadas de mídia, igualmente golpistas, não vê a menor diferença entre Bolsonaro, FHC, Doria ou Kassab. Calças mais bem vincadas ou decoro e polidez não fazem Democracia.

        (***)

        Nada me tira da cabeça que a turma do golpe esteja sendo orientada pela turma de Steve Bannon e Olavo de Carvalho desde o início e até agora, mesmo que a mídia não os esteja mostrando… Os impropérios de Bolsonaro têm o mesmo tom que o de outros golpistas estrangeiros. Trump é apenas um exemplo, e Bolsonaro tem uma propensão constitucional à baixaria. Mas a orientação é nitidamente a mesma.

  4. este é o tipo do artigo que ao final da leitura deveria se abrir uma roda de conversa. e esta roda de conversa bem poderia ser a área de comentários.

    mas isto seria em algum outro mundo… não neste no qual marchamos inexoravelmente para a extinção. por sinal, que fiemos tudo para merecer.

    o artigo atinge os pontos nevrálgicos do atual défict política da Esquerda no Brasil, quais sejam:

    – a falência não só dos partidos como da quase totalidade das organizações de Esquerda;
    – a recusa em dialogar com os movimentos de massa, chegando ao ponto de não apenas os estimar como mesmo de os inibir;
    – o sinais de reação social – o quais na verdade existiram desde os primeiros momentos do impeachment – prenunciando uma provável explosão no curto prazo;
    – a crônica – e falsa – dicotomia entre espontaneísmo e organização;
    – a necessidade de uma vanguarda, mesmo nos movimentos horizontais;
    – o nascimentos de novas lideranças e de formas de organização, geradas pela luta;
    – a inutilidade frente amplas fechadas em torno de si mesmas e restritas quanto a participação popular de massa.
    .

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