A traição em Machado de Assis e Guimarães Rosa, por Jota A. Botelho

A traição em Machado de Assis e Guimarães Rosa

por Jota A. Botelho

(…) “Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui”. (…) “Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cérebro da pessoa”. (…) – Bentinho/Dom Casmurro (*).

(…) “Que o senhor sabe? Qual: … o Diabo na rua, no meio do redemunho… O senhor soubesse… Diadorim – eu queria ver -” (…) “… O diabo na rua, no meio do redemunho… Assim, ah – mirei e vi – o claro claramente: aí Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes… Ah, cravou – no vão – e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar!” (…) – Riobaldo/Grande Sertão: Veredas (**).

O BRASIL DAS ELITES E DOS POBRES – Na busca de encontrar as razões de um país cindido ao meio, inconciliável e inviável – no sentido de que tudo nos parecia que daria certo desta vez – mas o que vimos é um país antagônico e agônico novamente, fomos buscar então na obra de Machado de Assis e Guimarães Rosa, Dom Casmurro e Grande Sertão: Veredas, respectivamente, uma explicação para as causas deste nosso ‘eterno’ fracasso. Como o Brasil atual, dividido em dois, temos nos dois romances dois casais impossibilitados de se realizarem plenamente, e movidos pela mesma razão, conforme o nosso entendimento e salvo medidas proporções, mas que permeia as duas obras: A TRAIÇÃO. Será que o nosso país também sempre foi movido pela traição? Caberíamos perguntar antes de buscarmos as respostas entre Bentinho e Capitu versus Riobaldo e Diadorim. Nos dias que se seguem, na nossa resposta não nos restam a menor dúvida: Sim! E o que nos respondem os romances? Talvez a mesma resposta. Mas tanto na obra de Machado de Assis quanto na Guimarães Rosa tem mais nuances e sutilezas que a nossa vã interpretação. Mas ainda assim nos prenderemos à nossa opinião, embora abertos pelas saudáveis discordâncias.

Primeiras edições em livro de Dom Casmurro (1900) e Grande Sertão: Veredas (1956).


Os olhos de ressaca de Capitu na visão de Mário Cau e ilustrações de Eduardo Schloesser e José Aguiar.

Em Dom Casmurro temos Bentinho, um verdadeiro protótipo de nossa elite. O Brasil do andar de cima, da superfície. Plutocrático por razões de herança, mimado e manipulado pela mãe, sem perspectivas históricas e vivendo uma vida sem grandes realizações legitimadoras de sua existência. Bentinho seria um sem voto, embora facilmente eleito pelo poder socioeconômico que possui e o apoio que receberia de seus pares. Por outro lado, ele é um legítimo modelo de nosso atraso cultural, mesmo diplomado em Direito, razão pela qual, por ser filho, ou mesmo que não fosse, da Casa Grande, também faz dele um representante da lei e da ordem, da moral e dos bons costumes. Um varão de Plutarco da anticorrupção, numa posição altamente cobiçada pelo nosso arcaico patriciado, sobretudo daquela época. Mas ele comete um erro que o tempo irá denunciá-lo – todos os seus preconceitos de classe – ao se casar com uma mulher de extrato social inferior ao dele, embora Capitu tenha sido criada nas aproximidades do mundo em que ele nascera e que certamente aprendera os truques da dissimulação com as matriarcas com quem convivera.

Bentinho é um parasita social, e uma vez pária sempre pária. E como todo parasita ele precisa de um hospedeiro. Neste caso, poderíamos extrapolar como sendo o Brasil, enquanto que no romance seria Capitu, mas esta ver neste um perfeito idiota onde, tal como a mãe do próprio, também pode manipula-lo como uma ‘cigana’ – no dizer do próprio Bentinho – e que já nos revela um de seus inúmeros preconceitos. Embora não fica claro para nós – Machado de Assis espertamente deixa a questão em aberto para os seus leitores – mas tudo leva a crer que Capitu o traiu com seu melhor amigo, do contrário, como diria frase atribuída a Dalton Trevisan: ‘Se Capitu não traiu Bentinho, então Machado de Assis seria José de Alencar’.

Ao negar-se à paternidade ao filho, através da dúvida que o assola, seria o mesmo que acontece com nossas elites: a negação do próprio Brasil, e a dúvida em nossas potencialidades. Portanto, na ausência de legitimidade dos bens que nossas elites possuem, ou seja, o Brasil e sua gente, e em face de sua estagnação em renovar-se através da formação (paternidade) de novas gerações distintas, modernizadoras e autônomas, além do enorme desdém e descrença para com o povo brasileiro, que ao menor sinal de ameaças no seu status quo, elas imediatamente nos traem. A nossa História pode muito bem ser definida como a história das traições de nossas elites.


Veredas ©Araquém Alcântara 

No Grande Sertão: Veredas já precisaríamos mergulhar no Brasil do andar de baixo, no Brasil profundo. Riobaldo é um semiletrado, que vive com os padrinhos num pequeno sítio onde conhece uma outra criança de nome Reinaldo/Diadorim, filha não revelada até então do coronel e político, chefe de jagunços, Joca Ramiro, um homem tido como muito respeitado e justo naquele Grande Sertão, e que também sentara pouso por lá. Diadorim vive num mundo governado tão somente pelos homens, mas também será uma guerreira como eles. Às margens de um rio nasce a amizade entre os dois. Desde este primeiro encontro o autor já nos revela sutilmente uma atração velada entre ambos, e que irá progredir no decorrer do romance em várias passagens, inclusive com cenas de ciúmes, como ocorre em Dom Casmurro, até a revelação final. Alguns críticos julgam essa relação como sendo homossexual, algo que particularmente nunca a vi dessa maneira, mas considero possível tal leitura por se tratar de uma obra muito complexa em seus meandros.

Para Riobaldo não havia muitas alternativas senão a de ser jagunço também. Ao sair do bando de seu aliciador, o de Zé Bebelo, acaba desertando e se juntando ao bando de Joca Ramiro e de seu amigo Diadorim. Deste sertão-mundo que Riobaldo narra, havia vários chefes de jagunços em disputa pelo poder. Numa dessas cizânias – o julgamento de Zé Bebelo por traição, aliado das tropas do Governo, tropas essas que certamente protegem e garantem os privilégios do mundo de Bentinho – e que queria ‘pacificar’ o sertão e se tornar deputado. Derrotado pelo bando do coronel Joca Ramiro, este o absolve, desde que Zé Bebelo desapareça de vez do Sertão. Tal sentença serve de pretexto para o bando de Ricardão que pretende se enriquecer e se tornar o chefe político na região, juntamente com o bando de outro aliado do coronel Ramiro, o do traiçoeiro, dissimulado e vingativo Hermógenes, em que ambos passam a conspirar e assassinam o coronel Joca Ramiro.

Deflagra-se então uma espécie de Guerra Civil no Sertão pela traição comentida na disputa pelo poder entre os bandos de jagunços. Riobaldo, com a acefalia do bando de Joca Ramiro, assume a liderança e pouco a pouco a sua personalidade vai se impondo, até o pacto com o Diabo. Desde então ele já havia recebido o apelido de Tatarana ou Urutu-Branco, respeitado pelo resto do bando como um exímio atirador. Este pacto com o Diabo, talvez seja o que muitos terão que fazer para derrotar os inimigos mais poderosos que se encontram atualmente no poder, uma vez que até aqui esta estória se assemelha e muito com as traições e lutas que começarão a existir a partir de agora.

Nossos historiadores, ao analisar nossas derrotas políticas, nunca apontaram a Guerra Civil como solução para unirmos estes dois mundos, o de Bentinho com o de Riobaldo. Geralmente, eles nos revelam apenas os erros que foram cometidos, tal como os comentaristas de futebol, que expressam as falhas dos jogadores durante a partida, depois que o jogo termina.

De fato, entre uma Guerra Civil fratricida e a possibilidade de união e pacificação do país, se depois de vencidas as batalhas, sempre foram uma incógnita em nossa violenta história política por não terem acontecidas em diversas ocasiões. Todos os nossos líderes sempre preferiram deixar o poder a promovê-la, e em nome do realismo político. Talvez porque, na verdade, eles acabam perdendo o poder quando ainda poderiam reagir, abortando as tentativas de golpes enquanto houvesse tempo.

Acreditamos ainda que estamos longe das condições históricas para que esta ideia se realize. Embora as nações que de fato nos dominaram, para ficarmos apenas em dois exemplos, como a Inglaterra no século XIX e os norte-americanos a partir de meados do século XX, fizeram suas Guerras Civis e se potencializaram enquanto nações. Mas são nações com passados históricos completamente diferentes do nosso. E dotadas de uma elite com um projeto de país e de poder. Neste aspecto sempre nos faltou um projeto de nação claro e crível para lutarmos por ele.

Tanto Riobaldo quanto Bentinho terminaram seus dias de forma diferente. Riobaldo, na sua travessia, se tornou um ribeirinho beira-corgo, e passou a viver para nos contar sua história e ser lembrado, enquanto que Bentinho, já na sua estagnação senil, continuou vivendo para escrever sua história e não ser esquecido.

Creio que muitos passarão a viver numa dessas situações diante dos últimos e recentíssimos acontecimentos em nosso país.
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(*) Dom Casmurro, Abril Cultural, 1982, Capítulo II, pág. 178 & Capítulo LXIV, pág. 261.
(**) Livraria José Olympio Editora, 12ª. Edição, 1978, págs. 450/451.
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Jota Botelho

2 Comentários

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  1. Adorei o artigo. E fica uma

    Adorei o artigo. E fica uma sugestão de análise às nuances da traição da Dilma ao programa para o qual foi eleita. A entrega dos anéis para a preservação dos dedos dos programas sociais. O “ser ou não ser” que deve ter corroido a alma da presidente.

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