A urgência que a hora presente reclama, por Arnaldo Cardoso

Nesta mesma semana aberta com sinais de esperança, veio a público o aviltante crime cometido por dois seguranças de um supermercado contra um jovem negro, de 17 anos

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A urgência que a hora presente reclama

por Arnaldo Cardoso

Com os dias se tornando cada vez mais sufocantes no Brasil para os que aspiram a um ambiente de liberdade e dignidade para a condução de suas vidas, a última segunda-feira (2) deu lugar a dois eventos que, cada um a seu modo – entrevista com o jornalista Glenn Greenwald na TV Cultura e ato Direitos Já! no TUCA, em São Paulo – representaram uma lufada de ar, um respiro para a difícil caminhada que precisamos empreender para sair da rota de destruição em que nos metemos desde as jornadas de junho de 2013, seguidas da eleição presidencial de 2014 pela qual Dilma Rousseff foi conduzida ao seu segundo mandato que insuflou uma oposição derrotada a agir deliberadamente, com os mais sórdidos meios, para minar as bases de legitimação do governo, produzindo o golpe de 2016 até a eleição do atual governo.  

O movimento Direitos Já! que na segunda-feira reuniu no icônico espaço de resistência à ditadura militar, um arco de líderes políticos de todo o país e representantes da sociedade civil, aposta na unidade em torno da afirmação de valores como a defesa da democracia, da dignidade humana e da importância de conter o desmonte da educação e pesquisa em curso no país, para orientar ações que intentem frear a destruição em curso e resgatar um projeto de nação.    

Entre os vários discursos feitos naquela noite, foi Flávio Dino, governador do Maranhão que fez questão de registrar que “com muita honra eu sou aquele que o Bolsonaro considera o pior governador do Brasil”, quem abordou um dos mais sérios aspectos da crise que vivemos, o da perda da empatia com o próximo, empatia que nos faz respeitar a dignidade humana do outro e assim reciprocamente ser respeitado, bem como desejar e buscar coletivamente a redução da pobreza e da dor dos mais vulneráveis.

Primeiramente Flávio Dino apontou que o que unia aquelas diferentes personalidades presentes era “uma narrativa em comum quanto ao passado deste país” referindo-se ao enfrentamento da ditadura, ao combate à tortura, a campanha Diretas Já, culminando com a construção do pacto civilizacional da constituinte de 1986.

É no trecho que segue de seu discurso que se encontra o ponto alto de sua análise e que mereceu entusiasmado aplauso dos presentes no teatro lotado, com suas paredes chamuscadas pelo fogo como testemunhas de outro momento sombrio de nossa história. “A pré-condição para isto aqui dar certo não está no plano da razão, da empiria, da teoria revolucionária ou não, da doutrina. O pressuposto principal para este movimento dar certo está naquilo que o padre Júlio Lancelotti se referiu aqui, está no plano do sentimento, sobretudo em relação aos mais pobres deste país, aqueles que são detentores de tantos direitos e que precisam ser visibilizados para que os direitos cheguem até eles. Esse não é um problema teórico, é um problema de coração, de sentimento, é um problema de fé, de amor, é preciso amar o Brasil, mas acima de tudo é preciso amar as pessoas ‘como se não houvesse amanhã’”.

Na sequência, citando trecho do discurso anterior de Ciro Gomes, Flávio Dino recolocou a questão “Onde nós erramos?” apontando em seguida desafios para que aquelas lideranças presentes se reúnam em torno de um projeto de nação contrário ao que está sendo conduzido sob o comando do atual presidente.

No outro evento mencionado que teve lugar na mesma noite da segunda-feira, o jornalista norte-americano residente no Brasil, Glenn Greenwald foi entrevistado no programa Roda Viva no qual respondeu a 38 perguntas das quais apenas 6 se referiram diretamente ao conteúdo revelado pelo The Intercept Brasil  dos bastidores da Operação Lava Jato, destacadamente as condenáveis comunicações entre procuradores liderados por Deltan  Dallagnol e o ex-juiz Sérgio Moro, revelando o comprometimento político dos membros do Poder Judiciário envolvidos na operação.   

Nas redes sociais a audiência e repercussão da entrevista foi imensa e, no dia seguinte, variados analistas concordaram que o que se viu foi uma aula de jornalismo dada pelo premiado Glenn Greenwald aos integrantes da bancada do Roda Viva, explicitando a debilidade de significativa parte da mídia nacional. Em análise no jornal GGN o experiente jornalista Luís Nassif, sugeriu que a entrevista sirva de material para aulas em cursos de jornalismo no país.  

Em postagem numa rede social Jether Bineli avaliou: “A incapacidade de compreender a prática do jornalismo, os limites do jornalismo, a responsabilidade do jornalismo e as questões éticas associadas a esta forma cultural, moderníssima, de dizer do mundo e discutir o presente, performada nas perguntas de “jornalistas” brasileiros, dos grandes, e quiçá principais veículos do território, é o diagnóstico perfeito de “certa esfera pública” (diria Antônio Gramsci, hegemônica) e o resultado dela sobre o Estado, a sociedade e a história desta terra.”

Esses dois eventos foram saudados por muitos grupos da sociedade como sinalizadores de que, depois de muitas indagações sobre quando a linha divisória do insuportável seria reconhecida como já atravessada, a reação está se mostrando possível e não poderá ser retardada. O que está em jogo é mais que projetos políticos-partidários.

Nesta mesma semana aberta com sinais de esperança, veio a público o aviltante crime cometido por dois seguranças de um supermercado contra um jovem negro, de 17 anos que, flagrado praticando pequeno furto foi levado para uma pequena sala e torturado durante quarenta minutos, sob chicote e insultos.

O jornalista Leonardo Sakamoto em seu blog no UOL publicou ótimo artigo em que ao condenar o abjeto crime de tortura contra o jovem, lembrou outros vários casos em que jovens pobres, especialmente negros, sob a sanha punitivista de “cidadãos de bem” foram brutalmente agredidos, em alguns casos mortos, em vez de processados e julgados nas formas da lei em casos de delitos, o que dá mostras do quanto o racismo estrutural além de outros males de nossa sociedade ainda precisam ser combatidos e o quanto nos afastam da realização dos valores do  “pacto civilizacional” inspirador da Constituição de 1988 mencionado pelo governador maranhense Flávio Dino. 

Nossos problemas enquanto sociedade são antigos mas a gravidade do momento em que vivemos se dá pelo fato do país estar sendo governado por defensores do autoritarismo, da tortura, e contra os mais potentes recursos para o enfrentamento das trevas, ferindo de morte a Constituição Federal e um projeto de nação mais justa, próspera e fraterna que, mesmo acumulando erros vinha sendo perseguido.

Esse projeto não pode ser abandonado.

Arnaldo Cardoso é cientista político e professor universitário.

Redação

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