Adeus ao desenvolvimento, por Silvio Caccia Bava

Um editorial sobre como os países da América do Sul voltaram à condição de economias subordinadas aos interesses norte-americanos

Por Silvio Caccia Bava

No Le Monde Diplomatique

Durante décadas, desde a criação pelas Nações Unidas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 1948, o continente sul-americano vem discutindo suas possibilidades de desenvolvimento associadas a processos de industrialização e elaboração de tecnologias próprias.

Quando da criação da Cepal, Raúl Prebisch liderava o debate, propondo um projeto nacional desenvolvimentista baseado no modelo de industrialização para substituição de importações. Celso Furtado participava dessa visão e discutiu a industrialização tardia da região, abrindo campo para o debate sobre o subdesenvolvimento e o aprofundamento da desigualdade. Seu Plano de Metas atribuía ao Estado um papel estratégico para o desenvolvimento.

A doutrina cepalina assumia que o Estado é o indutor do processo e do tipo de desenvolvimento. Por meio de investimentos em infraestrutura, o Estado oferecia condições para a iniciativa privada empreender a industrialização do país e afirmava seu papel de regulação da economia e do modelo de desenvolvimento.

A estratégia de substituição de importações fez o Brasil crescer uma média de 6,31% ao ano de 1930 a 1980, uma das maiores taxas mundiais do período. Historiadores identificam a época como a Era Desenvolvimentista. No mesmo período, a desigualdade se aprofundou porque, entre outros fatores, as elites empresariais não aceitavam uma tributação correspondente aos seus ganhos.1

O Brasil construiu empresas estratégicas e competitivas nacional e internacionalmente, como a Vale do Rio Doce, a Petrobras e a Telebras, com grande capacidade técnica, financeira e organizacional.

Desde meados dos anos 1970, com a ascensão do neoliberalismo em escala mundial, a situação dos países periféricos, ou subdesenvolvidos, foi se modificando para pior. Os termos de troca com os países centrais do capitalismo se deterioraram, sua autonomia foi progressivamente reduzida e o Estado foi atacado em nome da liberdade de ação do capital.

No Brasil, a ditadura que foi de 1964 a 1985 resistiu ao neoliberalismo, contrapondo a ele um projeto de desenvolvimento nacional abraçado pelos militares e calcado na estratégia de tornar o país uma potência intermediária, regional.

No entanto, a partir dos anos 1980 o Brasil passou a viver um processo de estagnação econômica que continua até hoje.2 De 1985 a 1994, o PIB cresceu apenas 2,8% ao ano e o crescimento do PIB per capita foi de apenas 1% ao ano.

Tornava-se urgente a criação de iniciativas conjuntas entre os países da região para intensificar suas trocas comerciais e fazer face, em conjunto, ao avanço das desregulações do mercado impostas pelo neoliberalismo. Era preciso defender a incipiente industrialização onde ela já existia e criar maiores capacidades de negociação internacional em relação aos Estados Unidos e aos demais países centrais do capitalismo.

A Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) foi criada em 1980, sendo um primeiro passo para a integração econômica regional. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela se uniram na perspectiva de fortalecer a integração econômica da região, tendo como meta a criação de um mercado comum latino-americano.

A partir dos anos 1990, a pressão dos países centrais e dos organismos multilaterais aumentou. Globalmente, eles impuseram as regras estabelecidas pelo chamado Consenso de Washington, que demandou abertura comercial, desregulamentação cambial e financeira, “flexibilização” das relações de trabalho e desmonte das políticas sociais de caráter universal. O impeachment de Collor retardou sua adoção no Brasil, a qual teve início no governo Fernando Henrique Cardoso.

Nesse cenário, uma maior articulação entre Brasil e Argentina permitiu a criação do Mercosul, em 1991, incorporando também Paraguai e Uruguai. A estratégia era intensificar as trocas comerciais entre os países participantes e buscar uma melhor negociação do bloco regional com outros países e regiões. De 1990 a 1994, o comércio entre os países-membros aumentou 180%, atraindo a participação de outras nações na condição de membros associados: Bolívia (1996), Chile (1996), Peru (2003), Equador (2004) e Colômbia (2004). Em 2012, a Venezuela entrou como membro pleno e foi suspensa indefinidamente em 2016 pelos novos governantes de direita. A situação atual paralisa as negociações, já em estado avançado, de um acordo comercial do Mercosul com a União Europeia.

O sucesso da iniciativa de construção de um bloco regional, assim como a rejeição por parte dos governos sul-americanos da proposta dos Estados Unidos de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), em 2005, abriu uma perspectiva de maior autonomia regional e de construção de um mundo multipolar, estratégia perseguida também em outros continentes com a formação de blocos regionais, inspirados na União Europeia, criada em 1993.

A defesa das possibilidades de desenvolvimento e de uma maior integração regional passam a andar juntas. Nenhum país sozinho consegue negociar melhores condições de desenvolvimento com os países centrais do capitalismo, especialmente com os Estados Unidos.

O sucesso do Mercosul e o interesse de outros países do continente em participar levaram, em 2008, muito em razão de um esforço diplomático do Brasil, à criação da Unasul, uma associação de doze países da América do Sul que soma o Mercosul e a Comunidade Andina, com a perspectiva de formar um bloco regional à semelhança da União Europeia. A proposta foi ratificada em 2010 e sua estratégia foi de integração econômica da região, mas também de uma maior integração social e política. Foram criados o Banco do Sul, o Parlamento Sul-Americano, o Conselho de Defesa, entre outras iniciativas.

Em 2008, os Estados Unidos reativaram sua IV Frota, um impressionante conjunto de forças navais e aéreas, mais poderoso que qualquer força militar da região, com a tarefa de patrulhar as águas do Atlântico Sul, numa clara demonstração de força e poder. A estratégia de recuperar o controle da América Latina se explicitou em várias frentes, com tentativas de golpe e deposição de presidentes, como ocorreu na Venezuela em 2002, na Bolívia em 2008, no Equador em 2010, no Paraguai em 2012, com a deposição do presidente Lugo, e no Brasil em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff.

Os esforços de desestabilização dos governos democráticos populares articularam as tradicionais oligarquias locais contra os governos democráticos e populares e também atuaram nas eleições presidenciais da região, apoiando fortemente campanhas na sociedade civil para a criminalização das esquerdas e a eleição de candidatos de direita.

O desmonte do bloco regional em construção se deu pelos governos eleitos de direita da Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Paraguai, Peru e Equador, que se retiraram da Unasul e acabaram de criar o Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul), em substituição àquela. Em comum, partilham a cartilha neoliberal e um alinhamento incondicional às políticas dos Estados Unidos.

Os países da América do Sul voltaram à condição de economias subordinadas aos interesses norte-americanos. Seus regimes autoritários reforçam a atuação predatória das empresas multinacionais, que extraem do continente suas riquezas naturais e seus produtos primários, inibindo qualquer iniciativa de industrialização ou de políticas autônomas. É o novo colonialismo.

 

Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil

Redação

4 Comentários

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  1. On the threshold to Claviceps Purpurea, eu estava na esquina a observar o fluxo e as crateras abertas pelas águas pluviais nas ruas e avenidas desse triste país. Muitos dos carros que dobram à direita alunissam na cratera. O que eu posso fazer além de observar? Muito pouco. Se tivesse um spray, eu escreveria:

    “Cuidado, meu Bem, há perigo na esquina . Eles venceram e o sinal tá fechado prá nós, que somos jovens pobres e desempregados. Atenção ao oiaar o asfalto”.

    Não há mais espetinhos e lanches e bares na rua. Tudo se foi e a mulher me informa que as empresas de transporte coletivo urbanos dispensarão as trocadoras. Desemprego estrutural. O que essas pobres Mulheres vão fazer de suas vidas?

    Mas o problema não é o Bolsonaro, ele é só um sintoma. O problema é o capital

  2. 40 anos de Redemocracia. Este ‘papo’ desenvolvido na matéria era o argumento de Canalhas e Hipócritas ‘Socialistas AntiCapitalistas’ em Palanques de Diretas Já, lá nos anos de 1980. A entrega do país aos interesses estrangeiros seriam combatidos. Também haveria luta intransigente por Diretas Já. Tancredo Neves e José Sarney, subprodutos da ‘Digestão Política’, são revelados na Privada Nacional. 4 décadas de erros, prolongando 88 anos de Caudilhismo Esquerdo Fascista Ditatorial Assassino. Até 1930, antes de Golpe Civil-Militar que extingue Eleições Diretas e Facultativas e faz surgir as Elites Parasitárias que prolongaram esta mediocridade até hoje (MEC / OAB / UNE / Sindicalismo Pelego de Contribuições Obrigatórias / USP, Universidades Federais como UnB,…) éramos cabeça e não rabo. Navios Lotados de miseráveis e desesperados do Terceiro Mundo, vindos da Alemanha, Italia, Ucrania, Suiça, Russia, EUA, França, Japão,… chegavam aos Portos Brasileiros fugidos do Nazismo, Fascismo, Ditaduras, Totalitarismo, Pobreza em busca da Nação que mais crescia no Planeta. Terra da Liberdade e Democracia. Terra de Olavo Bilac, Cruz e Souza, Lima Barreto, Tarsila do Amaral, Osvaldo Cruz, Emilio Ribas, Machado de Assis, Landell de Moura, Carlos Chagas, Luiz Gama, Rui Barbosa, Santos Dumont, Mario de Andrade, Di Cavalcanti,…Destruímos tudo isto juntamente com a Democracia, Progresso e Representação Direta do Povo Brasileiro, numa Quartelada de Baixissima Patente de um Caudilhismo Fascista Esquerdopata QuintoMundista. Nossa Elites, desde então, dizem não compreender a Latrina Histórica destes 88 anos. Por que será? País de muito fácil explicação.

      1. Sabe ler? Realmente, interpretação de texto é uma dificuldade entre Brasileiros. Em 5 séculos formamos uma das maiores Nações da Terra, que tornava-se uma das principais Democracias e Economias, até 1930. Golpe Civil-Militar Fascista Ditatorial Absolutista Assassino interrompeu esta ascensão. E a Elite que ascendeu juntamente ao Caudilhismo manteve esta Indústria do Atraso por 88 anos. Coincidência FFLCH da USP, de Juca Kfouri, Gianotti, FHC ser um Projeto do Fascista? País de muito fácil explicação. Ou é preciso desenhar?

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