Ajuste Fiscal sem Legitimidade Democrática
por Fernando Nogueira da Costa
Os neoliberais ironizam os economistas que “acreditam que a geração de superávits primários é um expediente para enriquecer rentistas e não para impedir a escalada da dívida pública”. Ora, isso é um sofisma, pois, por definição, a geração do superávit primário visa, essencialmente, pagar a elevação dos encargos financeiros da dívida pública, provocada pela alta desenfreada do juro básico.
Essa política é pautada às vésperas de reuniões do COPOM-BCB por gente de O Mercado através de púlpitos oferecidos pela “grande” imprensa econômica brasileira. E os neoliberais ainda condenam “a ameaça à suposta independência do Banco Central”. Eles têm sim consciência de que essa instituição beneficia, sistematicamente, a renda do capital financeiro em desfavor da renda do trabalho.
Depois da tentativa de obter a meta de superávit primário para pagar os juros, sobra pouco do OGU para O Governo investir — e O Mercado não investe por conta própria! Sobra então para as empresas estatais, especialmente a Petrobras, puxar o investimento. Quando elas são paralisadas, vem a depressão!
Esse diagnóstico sobre o problema-chave da atual Grande Depressão brasileira não isenta de responsabilidade a mudança do regime fiscal após a explosão da bolha de commodities em setembro de 2011. Seu maior símbolo foi a generalização da desoneração fiscal de folha de pagamentos sem a contrapartida em investimentos, exigindo apenas a manutenção dos empregos. Isso aumentou o custo unitário do trabalho em relação à produtividade e a relação salário / câmbio. Os industriais alegam que houve “esmagamento da margem de lucro operacional” e ainda tiveram perda de rentabilidade não-operacional e mesmo de capital financeiro, com a marcação-a-mercado após a retomada da alta de juros em abril de 2013. A fácil sabedoria ex-post prova ter sido equivocada a avaliação da equipe econômica de Guido Mantega.
O diagnóstico foi que a relação dívida líquida / PIB estava em patamar muito confortável — abaixo de 35% — e com tendência de queda. Face ao futuro afrouxamento monetário, então, poderia se afrouxar a política fiscal de meta em superávit primário. Na época, não se avaliou, adequadamente, o efeito sobre as expectativas dos especuladores da elevação da relação dívida bruta / PIB, devido à capitalização dos bancos públicos, para suas atuações anticíclicas. Este era o indicador pelo qual o FMI comparava os estados das economias no mundo.
A elevação do grau de fragilidade financeira, após a retomada do crescimento da taxa de juros básica (Selic), afetou muito as (falsas) expectativas dos investidores internacionais. Eles passaram a especular se o governo brasileiro se manterá, de fato, solvível. Querem duvidar de sua capacidade de pagamento do que deve. É falso o pressuposto de que ele não seja solvável e solvente já que possui ativos muito superiores ao passivo, além do poder de ser um emissor monetário em última instância. A dívida pública oferece risco soberano. Porém, quando “o soberano” é um usurpador, cresce a desconfiança…
Desde o século XIX, quando ocorreu o debate entre “papelistas” (defensores da necessidade de liquidez dos produtores de café) e “metalistas” (defensores do poder aquisitivo internacional dos importadores através do padrão-ouro), tem acontecido tentativas de “amarrar cachorro com linguiça” nesta terra de Tropicalização Antropofágica Miscigenada.
Depois de poucas tentativas-e-erro com o padrão-ouro (1906-1914 e 1926-1929), monetaristas propuseram n vezes transformar a programação monetária — oferta de moeda crescer apenas para validar o aumento do produto real, mas não a elevação nominal — em cláusula-pétrea da Constituição brasileira. Surgem também, periodicamente, propostas de dar independência ao Banco Central do Brasil “para evitar o financiamento monetário de O Governo”.
Agora, o estapafúrdio é colocar um teto para manutenção real dos gastos públicos, ignorando o ciclo econômico. Se a taxa de inflação cair, mesmo se a economia estiver em uma grande depressão provocada por “armadilha de liquidez”, quando, devido às expectativas pessimistas, o setor privado não gasta, o gasto público não poderá substituir o gasto privado para a retomada do crescimento! Em outras palavras, a receita do Dr. Keynes ficará proibida! A Teoria Geral entrará no Index Librorum Prohibitorum de acordo com a Constituição brasileira!
Um estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP/FGV) refaz a trajetória das despesas da União, caso vigorasse antes a regra da despesa pública não poder crescer acima da inflação do ano anterior, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O estudo tem por objetivo fazer uma simulação do impacto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) a partir de dados já conhecidos, e não em projeções que até o momento se baseiam em meros palpites hipotéticos.
Se estivesse valendo desde 2007, ou seja, há nove anos, mesmo período de vigência previsto na PEC, pois a proposta prevê que o teto valha por 20 anos, mas permite revisão a partir do nono ano, teria exigido corte de despesas de R$ 430,3 bilhões no Orçamento da União do ano de 2015 e de R$ 1,82 trilhão desde 2007. Este montante representa 30,8% do PIB do ano passado. O corte de R$ 430,3 bilhões teria representado redução de 31,8% da despesa primária total de 2015 e 19,6% do total do orçamento (que inclui as despesas financeiras), ou 7,3% do PIB do ano passado. Em outras palavras, em vez de uma atuação anticíclica face a crise mundial explodida em setembro de 2008, teria ocorrido uma Grande Depressão no Brasil!
A implementação do teto não será possível sem, de alguma forma, cortar despesas obrigatórias. A PEC não diz diretamente, na prática, como se pretende lidar com a redução de despesas obrigatórias, isto é, gastos não passíveis de cortes por disposições legais, caso de grande parte da despesa com pessoal e aposentadorias.
É tão risível essa proposta que não dá para levar a sério “o gênio” que a formulou… E os carneirinhos que a aprovarão. E os colunistas da “grande” imprensa brasileira que a defendem. Não falam sem rodeios que pretendem implementar o programa eleitoral derrotado democraticamente em 2014. Até serem derrotados, novamente, em 2018. O risco maior é, sob essa perspectiva de derrota, o golpe se estender até a impugnação do candidato com maior chance de derrota-los ou o cancelamento da própria eleição.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. http://fernandonogueiracosta.wordpress.com / E-mail: [email protected].
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